Os
meios de comunicação, e a publicidade em particular,
constroem o imaginário da mulher perfeita pelo corpo
perfeito. Uma mulher jovem, loira, magra, alta, de seios
voluptuosos, de cabelos longos. Ao mesmo tempo em que, em
nossa voraz sociedade de consumo, comer e comprar são atos
compulsivos que aliviam as dores da existência, o
reconhecimento das mulheres na sociedade é diretamente
relacionado a seu peso e proximidade do padrão de beleza.
O
direito das mulheres a seu corpo
*Miriam
Nobre
A
expressão “nosso corpo nos pertence” tem sido uma das
bandeiras centrais do movimento feminista desde os anos 1970.
Ela expressa a vontade de autonomia das mulheres, de ter
desejos e exercê-los sem o controle dos homens de sua família,
do Estado ou das instituições religiosas. Ela recobre o
questionamento à imposição de padrões de beleza, de normas
na sexualidade e na reprodução. Aparentemente a mudança de
costumes, a maior presença das mulheres na vida pública e
avanços tecnológicos como a pílula anti-concepcional teriam
feito desta bandeira uma realidade. Mas, para quantas? E, por
quanto tempo? Qual a atualidade do debate em relação ao
direito das mulheres de decidirem sobre seu corpo? O que temos
visto nos últimos anos é que as pressões dos homens, das
instituições religiosas e do Estado se somam às ofertas e
exigências do mercado.
O
mercado se apropria de elementos tradicionais da construção
do gênero feminino, como a identidade de cada mulher ser
construída em relação ao outro num movimento permanente de
tentar agradá-lo, como no caso da maternidade e da prostituição.
Vende-se
um corpo perfeito
Os
meios de comunicação, e a publicidade em particular,
constroem o imaginário da mulher perfeita pelo corpo
perfeito. Uma mulher jovem, loira, magra, alta, de seios
voluptuosos, de cabelos longos.
Seios
grandes podem ser comprados em miligramas de silicone. Segundo
o secretário geral da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica,
em entrevista à Folha de São Paulo, a quantidade de
adolescentes que colocam prótese de silicone aumentou 300%
nos últimos dez anos. Nesta reportagem uma jovem comentava
sua cirurgia: “meus pais não queriam deixar, mas o corpo é
meu, não é deles”.
Seria
uma leitura simplista associar a fala desta jovem à bandeira
“nosso corpo nos pertence”, pois seria desconsiderar a máquina
que move o negócio da cirurgia plástica no Brasil. Somos o
segundo país em cirurgias plásticas no mundo, atrás apenas
dos Estados Unidos. Em 2003 foram realizados 400 mil
procedimentos no país. O crescimento do mercado também se dá
por sua expansão para as mulheres do meio popular mediante
parcelamentos, consórcios, ou dívidas com agiotas.
E
os riscos não são só estes. Em novembro de 2002, a
faxineira Maria de Oliveira morreu em decorrência de complicações
em uma cirurgia de redução da mama. Entre 2000 e 2002 cinco
mulheres morreram em conseqüência de lipoaspiração feita
pelo médico Marcelo Caron, em Goiânia e Brasília.
Histórias
como estas revelam a ansiedade com que mulheres de todas as
classes sociais têm vivido a relação com seu corpo. Ao
mesmo tempo em que em nossa voraz sociedade de consumo comer e
comprar são atos compulsivos que aliviam as dores da existência,
o reconhecimento das mulheres na sociedade é diretamente
relacionado a seu peso e proximidade do padrão de beleza.
Segundo
a Organização Mundial de Saúde, as jovens sofrem com
transtornos alimentares como bulimia, anorexia, doenças que
estão entre as principais causas de mortes das jovens. No início,
as jovens se sentem controlando seu corpo, podendo comer e
vomitar ou se recusando a comer e, aos poucos, se percebem
prisioneiras da obsessão de ser magra.
Outra
reação extrema na busca do “peso ideal” são as
cirurgias de redução do estômago. Entre 1978 e 1993 foram
realizadas 15 cirurgias no Brasil. Em 1999, foram 900 e em
2001, 3 mil.
As
cirurgias de redução do estômago lembram as cirurgias de
retirada de parte do cérebro de pessoas diagnosticadas como
doentes mentais no século XIX. E uma companhia americana
patenteou um tratamento para obesos à base de eletrochoques.
Os dois exemplos nos fazem pensar na forma como o diferente é
tratado em nossa sociedade, na simplificação da ciência com
a relação de causa e efeito, no poder médico. Tudo isto
somado à ideologia da eficiência, eficácia e soluções
imediatas, típicas do neoliberalismo.
Quais
as motivações das mulheres para se submeterem a intervenções
cirúrgicas, em condições tão mais precárias quanto menor
a renda que dispõem? E os tratamentos extremos para perder
peso, rugas, marcas do tempo ou qualquer sinal de
individualidade que as distanciem da mulher-ícone do momento?
A forma como é olhada pelo outro, manter uma relação
afetiva e até mesmo programas de controle de peso dos funcionários
por empresas estão entre as respostas.
Compram-se
embriões
Pelo
senso comum e pelas regras da sociedade patriarcal, uma mulher
só é uma mulher completa se ela é mãe. O feminismo resgata
que a reprodução, o cuidado com o outro, são fundamentais
para a humanidade, enquanto que a sociedade capitalista
considera apenas a produção e o mercado, relegando a reprodução
como a “parte da vida inválida de ser vivida”. O
feminismo pôs em debate a função social da maternidade, a
responsabilidade do poder público em garantir serviços de saúde
de pré-natal e parto, creche e educação, entre outras políticas.
Ao mesmo tempo, as mulheres devem decidir se querem ou não
ter filhos e o momento de tê-los.
Uma
ideologia que cimenta nossas relações sociais de poder é a
naturalização de tudo que envolve a reprodução e a
maternidade. Omitem-se assim os custos e o trabalho da reprodução
que são designados às mulheres. É impossível saber se o
desejo de uma mulher ser mãe é uma vontade própria, de dar
um herdeiro para seu marido, ou garantir que alguém cuidará
dela na velhice. Estas e outras, são motivações que se
referem às condições como ela vive e ‘a práticas sociais
hegemônicas. Este desejo construído e naturalizado é
manipulado pelas clínicas de reprodução assistida.
Encontra-se
em discussão no Senado e na Câmara a Lei de Biossegurança e
o Projeto de Lei sobre reprodução assistida. Um intenso
debate, mesmo que restrito a especialistas e religiosos, tem
acontecido sobre o destino de milhares de embriões
excedentes, que são produzidos na reprodução assistida.
Chama-se atenção para o uso potencial destes embriões em
pesquisas sobre o uso de células-tronco ou clonagem. Isto nos
faz pensar que a gravidez pode não ser o principal produto
deste negócio.
Impressiona,
porém, que os debates sobre ética tratem apenas do destino
dos embriões e quase nada seja dito sobre as mulheres que se
submetem a intervenções dolorosas, hormônios em altas
dosagens, procedimentos de risco, para se tornarem poedeiras
de embrião, verdadeiras fábricas de matéria viva de alto
valor comercial. Este silêncio se explica pela despolitização
do debate sobre a maternidade. É como se fosse um ultraje
questionar, ou mesmo discutir, o desejo das mulheres de serem
mães biológicas. Submeter seu corpo a estas intervenções e
riscos também não se refere a um controle de seu corpo, pelo
contrário, é entregá-lo ao poder médico.
Esta
hipocrisia dá hemorragia
A
ideologia de reforço à maternidade biológica se converte em
ataques ao direito das mulheres de decidirem sobre contracepção.
A negociação do uso da camisinha ainda não é prática
corrente, ainda mais em condições desiguais, como entre
adolescentes e homens mais velhos. Assim, as mulheres
continuam expostas às doenças sexualmente transmissíveis e
à AIDS. O crescimento dos casos de AIDS tem sido bem maior
entre as mulheres do que entre os homens, em especial na faixa
dos 35 a 49 anos. Na faixa etária de 13 a 19 anos, a epidemia
de AIDS já é maior entre as mulheres.
A
primeira grande tarefa da sociedade e das políticas públicas
é ampliar o uso de preservativos. Mas o uso de preservativo não
é totalmente seguro e muitas mulheres, em particular donas de
casa, não conseguem negociar com seus parceiros o uso da
camisinha. Se elas engravidarem contra sua vontade terão que
se defrontar com o fato de que no Brasil o aborto é
considerado crime com penas de até três anos de reclusão. O
Código Penal de 1940 prevê como exceções apenas as situações
de estupro e de risco de vida para a mãe.
Segundo
estimativas do Ministério da Saúde, acontecem no Brasil
cerca de 800 mil abortos por ano e cerca de 250 mil mulheres são
internadas em hospitais públicos em decorrência de seqüelas
de abortos realizados em condições precárias e com práticas
arriscadas.
Em
junho de 2004, o ministro Marco Aurélio de Mello, do Supremo
Tribunal Federal (STF), concedeu liminar garantindo a antecipação
terapêutica do parto de fetos com anencefalia (má-formação
fetal que torna inviável a sobrevivência após o parto). O
ministro prefere não falar em aborto, pois há consenso médico
de que em todos os casos de anencefalia há óbito do feto no
período neonatal. Porém, a pressão dos setores contra o
direito ao aborto tem sido tão forte que o ministro decidiu
convocar uma audiência pública antes do julgamento final no
STF. A primeira nos 194 anos de existência do Tribunal.
A
alegação destes setores é de que a prática abre caminho
para o extermínio de pessoas com deficiências. Este
argumento não parece sem fundamento no contexto das
tecnologias de reprodução assistida, onde se escolhe o sexo
do bebê e se antevê que na concepção se determinariam
outras características físicas. No entanto, a forma de
enfrentar este risco não é restringindo o direito das
mulheres nem aliená-las de seu corpo. Neste caso, como no
caso da reprodução assistida, impressiona que as mulheres não
contam, como se seu bem-estar ou sofrimento não fizessem
parte do problema. O sistema patriarcal prefere anular as
mulheres que por sua insistente vontade de existir como seres
pensantes e autônomos são fontes de riscos e problemas para
eles.
Para
aqueles que crêem na emancipação humana, o caminho para que
todas as mulheres tenham responsabilidade consigo mesmas, com
sua comunidade e com as gerações futuras é que elas tenham
condições de direito e de fato de decidir. Isto pressupõe não
só que o aborto deixe de ser crime como seja regulamentado,
com acesso garantido pelo Sistema Único de Saúde.
Esta
foi uma das propostas aprovadas na I Conferência Nacional de
Políticas para as Mulheres, realizada em Brasília em julho
de 2004. Participaram na Conferência duas mil mulheres
eleitas delegadas em conferências que ocorreram nos 27
estados brasileiros.
Compram-se
moças bonitas
Uma
visão liberal da bandeira nosso corpo nos pertence é de que
as mulheres podem dispor de seu corpo mesmo para vendê-lo na
prostituição. Toda nossa solidariedade com as mulheres
prostitutas não nos impede de ser críticas à instituição
da prostituição e a visões de que a sexualidade é mais um
mercado de trabalho.
Novamente,
se pensa nas motivações das mulheres que recorrem à
prostituição de forma isolada, desconsiderando os sistemas
de aliciamento da indústria da prostituição, cada vez mais
poderosos no turismo sexual e no tráfico de mulheres. Ambos vêm
ganhando força em uma divisão internacional e sexual do
trabalho, em que a exportação de pessoas é vista como mais
um recurso para países exportadores de commodities
assegurarem o acesso a divisas que mantém o ciclo de sua
inserção subordinada no mercado internacional.
O
Serviço à Mulher Marginalizada tem divulgado uma série de
denúncias que dão rosto aos números do terceiro maior negócio
clandestino do mundo, o tráfico de mulheres. Em maio deste
ano, Carina Carla do Nascimento, de 19 anos, aceitou a
proposta de um agenciador de mão-de-obra para trabalhar como
agente de turismo na Cidade do México, ganhando bem mais do
que seu salário de recepcionista. Carina, como outras “moças
bonitas” com idades entre 18 e 20 anos eram recrutadas, sem
saber, para trabalhar em casas de prostituição. Em 13 de
julho de 2004, Carina recusou se prostituir e, em represália,
colocaram cinco gramas de cocaína em sua bebida matando a de
overdose.
Em
19 de setembro de 2004 morreram cinco garotas, duas delas
menores de idade, no naufrágio de uma embarcação no Rio
Negro. Este acidente revelou uma nova rota de tráfico de
jovens mulheres e adolescentes vinculadas aos pacotes de pesca
esportiva na região amazônica. A Polícia Civil do Amazonas
relata que meninas de 14 a 17 anos são aliciadas por quantias
entre R$ 800 a $ 1.500,00 para programas com turistas
brasileiros e estrangeiros que gastam em média US$ 3.900 num
pacote de pesca na região.
Não
podemos aceitar um argumento cínico de que elas estão melhor
assim do que passando fome com suas famílias. Queremos que as
pessoas vivam melhor com o acesso à terra, ‘a condições
de produzir, com emprego, acesso à saúde, educação, habitação,
lazer e sonhos para o futuro. Não queremos que a manutenção
das pessoas na miséria garanta o fornecimento de meninas para
a prostituição e meninos para o tráfico de drogas ou o
trabalho escravo.
Nosso
corpo nos pertence guarda um sentido revolucionário: a extensão
e a profundidade das transformações necessárias para que
esta bandeira seja real para todas as mulheres do mundo são
imensas. Podemos começar pela nossa reflexão militante,
pelos termos em que pensamos a realidade, construímos
propostas e agimos para concretiza-las.
*Miriam
Nobre integra a equipe técnica da SOF-Sempreviva Organização
Feminista e a coordenação internacional da Marcha Mundial
das Mulheres.
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