As mortes maternas são
responsáveis por 6% dos óbitos de mulheres entre 10 e 49
anos, e está entre as primeiras causas de morte da população
no Brasil. Estima-se que ocorram, anualmente, 3.000 óbitos de
mulheres no ciclo gravídico-puerperal, variando largamente os
coeficientes entre os diversos Estados e Regiões. Os
coeficientes de morte materna vêm se mantendo estáveis a
partir de 1990 em patamares incompatíveis com o nível de
desenvolvimento econômico alcançado pelo país.
Situações
paradigmáticas de violação ao direito à saúde
*Eleonora
Menicucci de Oliveira e **Lúcia Maria Xavier
O
Brasil, ao aderir o Pacto
Internacional Sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
deu um passo importante para a realização dos Direitos
Humanos Sociais, Econômicos e Culturais.
Desde
1988, o Brasil instituiu a Saúde como um direito de todos e
todas, devendo o Estado garantir a sua plena realização. E,
para isso, implantou o Sistema Único de Saúde, que tem como
premissas a universalização do acesso, a integralidade da
atenção, a eqüidade, a descentralização da gestão, a
hierarquização dos serviços e o controle social.
A
transformação econômica e das relações de trabalho, a
persistência de bolsões de miséria e fome, a falta de políticas
governamentais e de infraestrutura básica, a degradação do
meio ambiente, o crescimento da violência no campo e na
cidade, as ameaças permanentes de surtos epidêmicos e
endemias crônicas afetam diretamente as condições de vida
trazendo desequilíbrio à saúde.
Permanecem
distorções e carências nos níveis de assistência, apesar
da expansão dos serviços municipais de saúde em algumas
regiões do país. E há ainda maior concentração dos gastos
públicos nas regiões sul e sudeste do país para a manutenção
de unidades hospitalares.
As
mortes maternas são responsáveis por 6% dos óbitos de
mulheres entre 10 a 49 anos, e está entre as 10 primeiras
causas de morte da população no Brasil. Estima-se
que ocorram, anualmente, 3.000 óbitos de mulheres no ciclo
gravídico-puerperal, variando largamente os coeficientes
entre os diversos Estados e Regiões. Os coeficientes de morte
materna vêm se mantendo estáveis a partir de 1990 em
patamares incompatíveis com o nível de desenvolvimento econômico
alcançado pelo país.
O
racismo tem sido um fator importante na determinação dos
modos de nascer, viver e morrer da população brasileira, com
índices visivelmente piores para a população negra.
Afetando seu acesso a bens sociais como saneamento básico,
alimentação balanceada, habitação, emprego, serviços de
atenção à saúde e também aceitação social. Isso se
traduz em maior mortalidade infantil e materna e menor esperança
de vida, por exemplo. O racismo influencia também a progressão
de doenças, grande parte delas evitáveis, mas que não têm
recebido a devida atenção das políticas públicas.
Existe
uma ausência total de políticas públicas preventivas de
degradação ambiental e para remediação de áreas e populações
já contaminadas.
Existe
uma ausência de política nacional em saúde das
trabalhadoras e dos trabalhadores que especifique as atribuições
do SUS nesta área nas três esferas do governo, e que
incorpore as relações de gênero, raça/etnia.
O
SUS ainda apresenta dificuldades
quanto ao:
a)
Acesso:
-
Existência anacrônica de dois sistemas de saúde
funcionando: o público e o privado. Serviços privados
conveniados com o SUS, sendo alguns deles quase que totalmente
financiados pelos recursos públicos, enquanto outros serviços
públicos são na prática terceirizados pela famosa porta
dupla, ou seja, no mesmo prédio público convivem dois serviços
com portas de acesso diferenciadas de acordo com o poder econômico
das usuárias e dos usuários. Esse quadro, se por um lado
evidencia a discriminação no acesso, por outro explicita o
exercício da violação dos direitos humanos à saúde,
previsto constitucionalmente e regulamentado pela Lei 8080/90.
-
Dos 55.226
estabelecimentos de saúde, 38%
estavam situados na região sudeste, sendo que 14%
destes possuem internação, 73% não possuem internação
e 13% estão voltados para a diagnose e terapia.
Os serviços de apoio à diagnose e terapia estão
concentrados nas regiões sul (20%) e sudeste 55%. Dos 7.241
estabelecimentos, somente 3% estão na região
norte.
-
Dos 486 mil leitos em hospitais vinculados ao SUS, 2,8 por mil
habitantes ou 65% estão em hospitais da rede privada, 26% da
pública e 9% da universitária.
A oferta de leitos por mil habitantes é maior no
centro-sul, com valores mais elevados na Região Centro-Oeste
(3,3 leitos), com destaque para Goiás (4,3). O valor mais
baixo é da Região Norte (1,9), sendo que a menor oferta
ocorre no Amazonas (1,6). Verifica-se tendência de maior
disponibilidade nas capitais dos Estados, com exceção de
Palmas, Rio de Janeiro, São Paulo e Campo Grande, com
coeficientes abaixo das respectivas médias estaduais. A rede
privada está concentrada nas
Regiões Sul e Sudeste, com, respectivamente, 80% e 74%
do total de leitos destas áreas. Já os leitos de UTI do SUS
somam 11 mil; metade está em hospitais privados, 27% em
universitários e 23% em públicos.
-
Falta de cobertura pública para atenção básica à saúde,
com destaque para o pré-natal e parto.
-
Não implantação do Programa de Assistência Integral à Saúde
da Mulher - PAISM.
-
Os serviços de urgência e emergência acabam por constituir
a porta de entrada do sistema de saúde.
-
Falta de acesso a medicamentos gratuitos pelo SUS.
-
Falta de política voltada para doenças de cunho étnico/racial,
especialmente para a população afrodescendente.
b)
Financiamento:
-
Dotação Orçamentária insuficiente para a saúde, decorrência
do atual modelo econômico vigente.
-
Sistema Tributário perverso e inadequado para garantir as ações
de saúde constitucionalmente previstas.
c)
Controle Social:
-
Dificuldade e fragilidade para o exercício do controle social
por parte dos agentes envolvidos no sistema (usuários/profissionais/gestores),
sobretudo pela ambigüidade na questão da representação política
nos diferentes conselhos de saúde: municipal, estadual e
nacional.
-
Ausência de formação e capacitação das conselheiras e dos
conselheiros.
-
Na maioria das vezes existe por parte do Estado um desrespeito
na implementação das decisões tiradas pelos diferentes
conselhos de saúde e conferências.
Apresentamos
as situações de violação no campo da saúde da mulher,
especificamente a morte materna no município de
Barreiros/Palmares e outras violações em Recife, Pernambuco,
e a contaminação de trabalhadores e ex-trabalhadores da
Shell S/A, além de moradores por agroinseticidas em Paulínea,
São Paulo.
2-Situações
paradigmáticas de violações
dos direitos humanos na área da saúde
2.1-Morte
Materna no município de Barreiros, Pernambuco
As
cinco mulheres deste estudo ora apresentado estavam com a
seguinte distribuição por faixa etária, estado civil e número
de gestações, partos e abortos: AEM,
36 anos, casada, Gesta XI, Para X (todos os partos
normais/transpelvianos) Aborto 0; MCSG, 18 anos, gesta I ,
para 0 , aborto 0, casada; MJSS, 42 anos, casada, gesta XIV,
Para XI, trabalhadora rural; MRM, 35 anos, casada, Gesta II,
Para I (parto cesariana há cerca de 4 anos), Aborto 0; MFS,
19 anos, solteira, Gesta II, Para I. Portanto, todas
encontravam-se no período gestacional (grávidas, puérperas
no intervalo de até 1 ano após o parto e nascimento) e são
entendidos como óbitos
em mulheres grávidas.
As
fontes utilizadas para esse estudo foram informações
oriundas de entrevista domiciliar com conteúdo que abordou
desde as condições sócio-econômicas, história reprodutiva
e de saúde e dos possíveis fatos que levaram à morte, a cópia
da declaração de óbito, algumas páginas de cópias do
prontuário das mulheres com história de morte materna.
Da
análise dos cinco óbitos maternos identificou-se que todos
eles tiveram o primeiro atendimento no Hospital/maternidade João
Alfredo (instituição privada conveniada com o SUS),
localizado no município de Barreiros – PE.
Destas
cinco mulheres, uma chegou a óbito no Hospital/maternidade João
Alfredo antes de sua transferência; as demais chegaram à
Casa de Saúde Santa Rosa, localizada no município de
Palmares –PE, onde chegaram a óbito. É importante destacar
que as transferências se deram de maneira irregular, ou seja,
as mulheres em estado gravíssimo foram transferidas em ambulância
sem acompanhamento médico. Ressaltamos que é de
responsabilidade dessa categoria profissional, inclusive
legal, acompanhar pessoas que se encontrem em estado grave
quando em situação de transporte por ambulância. Nesse
estudo identificou-se que os cinco óbitos ocorreram por causas obstétricas diretas envolvendo
eclampsia e as hemorragias (rotura uterina de corpo e segmento
e de colo de útero?), sendo todas elas presumíveis com
possibilidades de serem evitáveis.
Todas
as cinco mulheres não haviam realizado o acompanhamento de pré-natal
e identificamos que em duas consultas já havia sinal clínico
de pressão arterial elevada em uma delas (citamos A E M).
Dissemos isto posto que identificamos um número abaixo do
limite mínimo de 6 consultas, orientado pela Normatização Técnica
de Assistência Pré Natal: duas gestantes fizeram apenas 2
consultas, duas fizeram apenas 4 consultas e uma não fez
nenhuma.
Em
relação ao término da gestação, 4 gestantes
encontravam-se com IG acima de 37 semanas e abaixo de 42
semanas. Apenas 1 gestante encontrava-se com IG de 25 semanas.
Três das mulheres morreram antes do parto. Duas mulheres
encontravam-se com IG compatível de termo; morreram depois do
parto, sendo uma delas cerca de 10 horas de pós parto, e a
outra 2 dias após a cesariana. Já entre as três que
morreram antes do parto, uma estava com 25 semanas, talvez com
descolamento prematuro de placenta, e as outras duas estavam a
termo com diagnóstico de rotura uterina.
Ao
se estudar a evitabilidade da morte em relação à assistência
hospitalar, analisou-se aspectos desde o processo da admissão
de cada mulher.
Em
três das mulheres, as condições de saúde na admissão no
Hospital/maternidade João Alfredo eram boas ou regulares,
indicando que, em nível hospitalar estas mortes,
provavelmente, seriam evitáveis se tivessem recebido assistência
como está previsto pela Constituição Federal Brasileira,
Normatização do Processo de Assistência do Ministério da
Saúde e qualificação profissional. Já duas delas chegaram
em estado grave, porém não receberam assistência adequada
para estabilizar o quadro grave em que se encontravam.
Tanto
no Hospital/maternidade João Alfredo como na Casa de Saúde
Santa Rosa identificamos que os atendimentos estavam
absolutamente inadequados. Lembrando, por exemplo, que
os documentos estudados revelaram, diante de um quadro
de eclampsia, esquema de ataque (Sulfato de Magnésio)
não realizado e manutenção incompatível para as
necessidades identificadas da mulher, levando-nos a entender
que os profissionais destas duas instituições encontram-se
necessitando urgentemente de avaliação e reciclagem
profissional. O Hospital/maternidade João Alfredo, principalmente,
necessita de uma intervenção imediata, pois as provas de
irresponsabilidade profissional são gritantes.
Finalmente,
entendemos que estas mulheres foram vítimas de assistência
de péssima qualidade. A atenção básica (pré-natal) junto
às gestantes encontra-se precária. Apontamos a necessidade
de aumentar a cobertura obstétrica na atenção básica. Esta
situação, infelizmente, pode ser estendida para todo o país,
quando ainda temos uma das mais altas taxas de mortalidade
materna do mundo: 158 por 1000 nascidos vivos. Uma tragédia
nacional, absolutamente evitável.
Todo
o relatado configura atos que violam o que está
garantido - o direito à saúde previsto pela Constituição
Federal e pela Declaração dos Direitos Humanos.
Diante
desta situação, monitorar esse dever – que é do Estado -
e garantir o direito, é da responsabilidade do Comitê
Estadual de Estudos da Mortalidade Materna, que deverá
encaminhar suas solicitações de intervenção às demais
autoridades competentes.
2.2.Contaminação
por diversos
agroquímicos no Município de Paulínea/São Paulo pela
Empresa Shell do Brasil S/A
Na
década de 70, a empresa Shell Brasil S/A implantou sua
unidade industrial de formulação de defensivos agrícolas no
município de Paulinea, Estado de São Paulo, em área contígua
a um bairro residencial denominado “Recanto dos Pássaros”,
que já existia previamente à instalação da empresa.
Segundo a atual proprietária da planta, a Basf, temos
resumidamente, no histórico dessa fábrica, os seguintes
acontecimentos:
-
1974 – Aquisição do terreno pela Shell.
-
1977 – Início de operações (formulação e síntese
de organofosdorados).
-
1984 – Início da formulação de herbicidas
-
1989 – Início da síntese de inseticidas piretróides
-
1992 – Início da síntese do “Torque” (produto
acaricida)
-
A Shell formulou organoclorados até 1990.
-
Em 1996 a fábrica foi comprada pela Cyanamid.
-
Em Julho de 2000 a fábrica foi adquirida pela Basf.
Entre
os diversos agroquímicos que passaram a ser ali formulados,
incluíam os inseticidas organoclorados Aldrin, Endrin e DDT e
a produção de inseticidas organofosforados. Durante seu período
de operação, a Shell utilizou dois incineradores e um poço
de queima que, por
mais de uma década, queimaram resíduos sólidos
diversos (varrição geral, restos de embalagem, material de
manutenção, equipamentos de segurança individual dos
operadores etc), além da queima dos resíduos organoclorados
sólidos e líqüidos da fábrica de ionol e amostras
descartadas do laboratório de análises químicas.
Convém
ressaltar que os incineradores foram desativados após 16 anos
de uso por não atenderem aos padrões técnicos de emissão
exigidos pela Companhia de Saneamento Ambiental do Estado de São
Paulo - Cetesb. Durante este período, a empresa contaminou o
lençol freático nas proximidades do Rio Atibaia, um
importante manancial da região, com os organoclorados aldrin,
endrin e dieldrin. Três vazamentos destes componentes químicos
foram oficialmente registrados durante os anos de produção.
A
comercialização destes produtos foi interrompida no Brasil
em 1985, através da portaria 329 de 2 de setembro de 1985 do
Ministério da Agricultura, sendo ainda permitida a
comercialização de iscas para formigas e cupinicida
destinados a reflorestamentos elaborados à base de aldrin.
Entretanto, a fabricação para exportação continuou até
1990. Em 1998, através da portaria n.º 12 do Ministério da
Saúde, estes produtos foram completamente proibidos. Hoje os
“Drins” também são banidos pela Organização das Nações
Unidas (ONU) por estarem associados à incidência de câncer
e a disfunções dos sistemas reprodutor, endócrino e imunológico.
Em
1994, quando a Shell estava prestes a vender a área para a
Cyanamid Química, foi realizado um levantamento do passivo
ambiental da unidade para que a transação fosse concluída.
Nesse processo foi identificada uma rachadura numa piscina de
contenção de resíduos que havia contaminado parte do lençol
freático. A empresa realizou uma auto-denúncia junto ao
Ministério Público que deu origem a um termo de ajustamento
de conduta, condição imposta pela compradora, a Cyanamid.
Nesse sentido, a Shell teve que se encarregar da construção
de uma barreira hidráulica para evitar o avanço da contaminação
do lençol freático.
Entretanto,
a empresa ainda não
havia admitido qualquer contaminação com drins, nem
vazamentos para fora do seu terreno. Entre os poluentes
encontrados no solo e nas águas subterrâneas, nesse primeiro
estudo, destacam-se alguns solventes orgânicos: benzeno,
xileno, ethilbenzeno; poluentes organoclorados: 1,2
DCE-dicloetano, TCE-tetracloro etano, BHC-benzenohexaclorado,
aldrin, endrin, dieldrin; e poluentes inorgânicos: níquel,
cobre, zinco e chumbo.
Em
1996, a Shell encomendou dois laudos técnicos sobre a
contaminação do lençol freático fora da área da empresa
aos laboratórios do Instituto Adolpho Lutz, de São Paulo, e
Lancaster, dos Estados Unidos. O laboratório brasileiro não
detectou a presença de contaminantes, mas o norte-americano
confirmou a presença de drins na água do subsolo. A Shell
manteve em sigilo o relatório do laboratório Lancaster até
março de 2000, alegando que o seu resultado foi um “falso
positivo”.
Na
época, a agência ambiental paulista, Cetesb, recolheu, pela
primeira vez, amostras de poços e cisternas do bairro, que
foram analisados pela própria Cetesb, pelo laboratório
Ceimic, contratado pela Shell e pelo laboratório Tasca, pago
pela Prefeitura de Paulínea. Os exames constataram a presença
de dieldrin na água.
Em
dezembro de 2000, novas amostras foram coletadas pela Cetesb, Instituto Adolfo Lutz e Laboratório Ceimic. As análises
comprovaram a contaminação da água dos poços com níveis
até 11 vezes acima do permitido na legislação brasileira.
Diante de tais resultados, pela primeira vez, a Shell admitiu
ser a fonte da contaminação das chácaras das redondezas.
A
estocagem e o manuseio de matérias-primas, produtos e resíduos,
realizados de forma inadequada (áreas ao ar livre sem sistema
de controle de poluentes e desprovidas de piso e sistemas de
contenção), aliada à própria disposição inadequada de
resíduos no solo, inclusive cinzas do incinerador, resultaram
na imediata poluição do ar, solo e, posteriormente, das águas
subterrâneas da área.
Em
fevereiro de 2001 a empresa de consultoria holandesa Haskoning
orientou a Shell a realizar um monitoramento mais abrangente,
que detectou a presença de metais pesados (níquel, cobre,
zinco, chumbo, alumínio e arsênico), poluentes
organoclorados (drins) e óleos minerais.
O
caso ganha, definitivamente, espaço na imprensa. Em fevereiro
de 2001, cerca de 100 moradores da região fizeram uma vigília
de vários dias em frente à fábrica.
Inicia-se
uma etapa de avaliações da saúde dos moradores vizinhos da
fábrica. A Prefeitura de Paulínea contratou o laboratório
de toxicologia da Faculdade de Medicina da Universidade
Estadual Paulista (Unesp) para realizar os respectivos exames
de análises clínicas. Divulgados em agosto de 2001, os
exames indicaram que 156 pessoas – 86% dos moradores do
bairro – apresentavam pelo menos um tipo de resíduo tóxico
no organismo. Desses, 88 apresentam quadro clínico compatível
com intoxicação crônica, 59 apresentavam tumores hepáticos
e da tireóide e 72 estavam
contaminados por drins. Das 50 crianças de até 15
anos de idade avaliadas, 27 manifestavam quadro clínico de
contaminação crônica. A empresa contestou tais resultados,
que considerou inconsistentes e incompletos.
Segundo
o médico Dr. Igor Vassilief, presidente da Associação
Brasileira de Toxicologia e professor da Unesp, um dos casos
marcantes foi o de uma menina de sete anos com níveis altíssimos
de chumbo no sangue, peso e altura abaixo da média e baixo
desempenho escolar. A empresa negou que tivesse manipulado
metais na unidade de Paulínea.
Os
médicos da Vigilância Sanitária e Ambiental do município
de Paulínea, responsáveis pela avaliação da saúde dos
moradores do bairro, Dr. Igor Vassilief e Dra. Cláudia
Guerreiro, foram denunciados pela Shell junto ao Conselho
Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) com a
alegação de que os referidos profissionais estariam levando
a população ao pânico. Esta denúncia foi arquivada por
falta de indícios de má prática ou e ausência de quaisquer
outras irregularidades disciplinares.
A
empresa, por sua vez, contratou um professor da Universidade
Estadual de Campinas - Unicamp, Dr. Flávio Zambrone,
para elaboração de um parecer próprio a respeito do
estado de saúde dos moradores. Tal laudo concluiu que não
havia nenhum caso de contaminação no bairro. A Associação
dos Moradores do Bairro Recanto dos Pássaros, da mesma forma,
denunciou junto ao Cremesp o assistente técnico da empresa.
Tal denúncia foi julgada procedente e o médico envolvido
(Dr. Zambrone) responde a processo por descumprimento do Código
Brasileiro de Ética Médica.
Em
setembro de 2001, o Greenpeace enviou um relatório sobre o
caso para os diretores da FTSE 4 Good, um índice ligado à
bolsa de valores de Londres para investimento socialmente
responsável, que lista empresas de acordo com seu
comportamento ético.
Em
dezembro de 2001, a justiça do Estado de São Paulo, região
de Paulínea, determinou que a Shell removesse os moradores
das 66 chácaras do bairro Recantos dos Pássaros. Ela também
deveria garantir os tratamentos médicos necessários. A
empresa, juntamente com a Cetesb, são alvos de ação civil pública
movida pela prefeitura de Paulínea, Ministério Público e
pela associação dos moradores do bairro.
Na
seqüência, a Shell começou a comprar as propriedades dos
moradores dispostos a vendê-las, já tendo adquirido parte
das 66 chácaras, por preços não condizentes com o valor
real, segundo depoimentos de alguns dos proprietários.
Em
fevereiro de 2003, toda a região do bairro adjunto à planta
da empresa sofreu uma grande inundação, proveniente da cheia
do Rio Atibaia, potencializando os riscos de exposição e
intoxicação da população. Toda a área foi interditada
pela defesa civil de Paulínea, com a remoção de todos os
moradores que ali ainda se encontravam, com exceção de três
famílias que recusavam-se a abandonar seus lares.
Em
junho de 2002, a câmara dos deputados promoveu uma audiência
pública em Brasília para discutir a situação dos
ex-funcionários da Shell S/A, com a participação de
representantes dos ex-trabalhadores, do sindicato dos químicos
unificados de Campinas, da Shell e de seu consultor médico.
Na
mesma época, um ex-funcionário da empresa confirma a existência
de quatro aterros clandestinos dentro da área da fábrica,
onde a Shell depositava cinzas do incinerador e resíduos
industriais. Na seqüência, a Cetesb admite que errou ao não
solicitar uma avaliação das condições do solo e da água
do Recanto dos Pássaros.
Durante
seu período de funcionamento, na planta industrial da Shell,
estiveram expostos aos contaminantes ali presente, 844
trabalhadores, segundo o Sindicato dos Químicos Unificados.
Em
setembro de 1982, foi apresentado no Congresso Nacional de
Prevenção de Acidentes de Trabalho, um estudo de autoria do
médico do trabalho da Shell em Paulínea, Dr. Reinaldo
Farina, sobre avaliação de análises de colinesterase,
indicador de intoxicação por inseticidas organofosforados.
Embora o estudo não tenha analisado a contaminação e exposição
pelos inseticidas organoclorados, o mesmo descreve 177 casos
de intoxicações subclínicas e um caso de intoxicação clínica
pelos organofosforados
entre os trabalhadores da empresa, durante o período de 1978
a 1982, o que indica um grau elevado de exposição.
É
importante ressaltar que o agrotóxico produzido e manipulado
por este contingente de trabalhadores foi desenvolvido e
patenteado pela própria Shell, cuja criação e formulação
é mantida em segredo pela empresa.
Hoje, a antiga planta da Shell pertence à Basf, que a
comprou da Cyanamid no ano de 2000.
Para
defender seus direitos e responsabilizar a Shell Brasil S.A.
por esse crime de contaminação, os hoje 844 ex-trabalhadores
da empresa formaram a Comissão de Ex-Trabalhadores da Shell
que, juntamente com a Regional de Campinas do Sindicato Químicos
Unificados, vem atuando em várias frentes nesse trabalho, nos
campos da saúde, do jurídico e em ações políticas. A
Shell se recusa a negociar a realização de exames
independentes e confiáveis em seus ex-trabalhadores.
Preocupado
com as denúncias feitas, a princípio pelos moradores e
posteriormente pelos ex-funcionários, da ocorrência de
contaminações por produtos químicos provenientes da fábrica
da Shell Brasil S.A. localizada em Paulínea, a Regional de
Campinas do Sindicato Químicos Unificados buscou a empresa
para tratar o assunto com a seriedade que ele merece. Junto ao
sindicato, dessas tentativas vem participando a Comissão de
Ex-Trabalhadores da Shell, formada pelos ex-funcionários da
empresa após as denúncias de contaminação virem a público.
Desde
o começo do ano de 2001 o sindicato procurou estabelecer
contato direto com a Shell e, depois de muitas tentativas
infrutíferas, somente conseguiu algo concreto quando foi
marcada uma reunião na sede da entidade, em Campinas, no dia
5 de maio de 2001. Nesse dia foi entregue aos representantes
da empresa uma pauta de reivindicações contendo os seguintes
pontos:
1)
o acesso aos prontuários, exames e estudos de saúde
realizados em todos os trabalhadores;
2)
a garantia de exames de saúde específicos, de qualidade e
confiança dos trabalhadores, dando conta da condição atual
de saúde dos mesmos;
3)
a listagem de todos os trabalhadores, ex-funcionários ou não,
que laboraram na planta de Paulínea;
4)
informações sobre substâncias, produtos e resíduos
manipulados no Centro Industrial Shell Paulínea - CISP.
No
dia 31 de maio, a Shell, atendendo às reivindicações,
informou que: 1) o acesso aos prontuários somente poderia ser
feito mediante a apresentação de autorização expressa do
trabalhador, com indicação do profissional médico a quem os
documentos seriam entregues; 2) somente garantiria a realização
de exames após investigação e levantamento de dados que
dessem conta da vida laboral do ex-funcionário e, uma vez
identificado, seria avaliado em conjunto com o sindicato e
Comissão de Ex-Trabalhadores a necessidade ou não da realização
de exames; 3) nesse dia a empresa entregou uma lista dos
ex-empregados que trabalharam na unidade de Paulínea, desde
1977 até a data atual; 4) forneceu uma listagem das substâncias,
produtos e resíduos manipulados e produzidos na sua unidade
em Paulínea.
Posteriormente,
no que diz respeito à entrega dos prontuários médicos aos
ex-funcionários, a Shell concordou em fornecê-los àqueles
que se dirigissem pessoalmente ao consultório médico,
independentemente de submetê-los a exames. Soube-se mais
tarde, através de declarações entregues a alguns pacientes
solicitantes, que tais prontuários médicos não se
encontrariam mais em poder da Shell. Convém aqui lembrar que
a guarda destes documentos por um período de 20 anos decorre
de obrigação prevista na legislação (NR 7).
A
Shell, no entanto, a partir daí, radicaliza quanto a forma de
se estabelecer um protocolo único entre a empresa, o
sindicato e a comissão para a avaliação clínica dos
trabalhadores na medida em que ela, assistida por seu
departamento médico, apresentou uma proposta técnica que se
figura flagrantemente insuficiente para as necessidades que o
caso requer.
Isto
porque, diante da complexidade do tema abordado, demonstra-se
primordial definir, científica e metodologicamente, as doenças,
lesões, males ou quaisquer alterações - físicas, fisiológicas,
metabólicas, psíquicas, mentais ou neurológicas - que
possam ser causadas por exposição, inalação, contato,
ingestão de drins e derivados, metais pesados,
hidrocarbonetos policíclicos, dioxinas e furanos, sem prejuízo
de outros elementos que possam interferir, direta ou
indiretamente, no diagnóstico suspeito de doenças daí
decorrentes. E a Shell, desde então, mantém-se firme na
negativa em buscar, conjuntamente, essas definições. Quer
impor, de qualquer forma, a sua.
Buscando
se aproximar ao máximo dos objetivos acima, a Regional de
Campinas do Sindicato Químicos Unificados, através de seu
assistente médico, elaborou um protocolo médico próprio, o
qual, além de mais completo e abrangente, prioriza a realização
de um trabalho em conjunto, sob o controle e ingerência dos
próprios trabalhadores (representados pela Comissão de
Ex-Trabalhadores), da entidade sindical e da empresa Shell,
sendo essas duas últimas assistidas por seus departamentos médico
e por suas assessorias técnicas.
Diante
dos pontos de discordância travados na questão protocolos médicos,
o sindicato buscou, ainda no final de 2001, a realização de
reunião em conjunto com a Shell, contemplando a feitura de um
método de trabalho único e comum, o que até a presente data
não se revelou possível por omissão acintosa e deliberada
da empresa. Assim outra alternativa não restou ao sindicato
que a de mover uma Ação Civil Pública contra a Shell Brasil
S.A., protocolada no dia 15 de agosto de 2002 na Justiça do
Trabalho em Paulínea.
3-Preocupações
e reflexões: Acesso, equidade e integralidade
A Saúde é considerada como um direito do cidadão e da cidadã,
independente de raça, cor, credo ou religião, classe social,
sexo e orientação sexual. É pautada nos princípios da
integralidade, universalidade, equidade, hierarquização e
controle social
O
estado brasileiro,
por força da Constituição Federal, tem o dever de promover
a saúde nos níveis de prevenção, promoção,
cura/reabilitação, garantindo a participação de todos os
setores sociais envolvidos
nas ações de saúde.
Os
marcos legais e conceituais nacional e internacional dão
sustentação ao direito à saúde e ainda o Artigo 12 do
Pacto que preconiza que
1.
Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o
direito de toda pessoa desfrutar o mais elevado nível possível
de saúde física e mental.
2.
As medidas que os Estados partes do presente Pacto
deverão adotar com o fim de assegurar o pleno exercício
desse direito incluirão as medidas que se façam necessárias
para assegurar:
a)
a diminuição da mortalidade infantil, bem como o
desenvolvimento são crianças;
b)
a melhoria de todos os aspectos de higiene do trabalho
e do meio ambiente;
c)
a prevenção e tratamento das doenças epidêmicas,
endêmicas, profissionais e outras, bem como a luta contra
essas doenças;
d)
a
criação de condições que assegurem a todos assistência médica
e serviços médicos em caso de enfermidade.
e)
Diminuição da morte materna no Brasil.
f)
Punição da empresa Shell
*Eleonora
Menicucci de Oliveira é relatora nacional para o Direito à
Saúde
**Lúcia
Maria Xavier é Coordenadora de Criola e assessora da
Relatoria Nacional para o Direito à Saúde
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