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Relatórios


As mortes maternas são responsáveis por 6% dos óbitos de mulheres entre 10 e 49 anos, e está entre as primeiras causas de morte da população no Brasil. Estima-se que ocorram, anualmente, 3.000 óbitos de mulheres no ciclo gravídico-puerperal, variando largamente os coeficientes entre os diversos Estados e Regiões. Os coeficientes de morte materna vêm se mantendo estáveis a partir de 1990 em patamares incompatíveis com o nível de desenvolvimento econômico alcançado pelo país.

 

Situações paradigmáticas de violação ao direito à saúde

*Eleonora Menicucci de Oliveira e **Lúcia Maria Xavier

 

 O Brasil, ao aderir o Pacto Internacional Sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, deu um passo importante para a realização dos Direitos Humanos Sociais, Econômicos e Culturais.

 Desde 1988, o Brasil instituiu a Saúde como um direito de todos e todas, devendo o Estado garantir a sua plena realização. E, para isso, implantou o Sistema Único de Saúde, que tem como premissas a universalização do acesso, a integralidade da atenção, a eqüidade, a descentralização da gestão, a hierarquização dos serviços e o controle social.

 A transformação econômica e das relações de trabalho, a persistência de bolsões de miséria e fome, a falta de políticas governamentais e de infraestrutura básica, a degradação do meio ambiente, o crescimento da violência no campo e na cidade, as ameaças permanentes de surtos epidêmicos e endemias crônicas afetam diretamente as condições de vida trazendo desequilíbrio à saúde.

 Permanecem distorções e carências nos níveis de assistência, apesar da expansão dos serviços municipais de saúde em algumas regiões do país. E há ainda maior concentração dos gastos públicos nas regiões sul e sudeste do país para a manutenção de unidades hospitalares.

 As mortes maternas são responsáveis por 6% dos óbitos de mulheres entre 10 a 49 anos, e está entre as 10 primeiras causas de morte da população no Brasil. Estima-se que ocorram, anualmente, 3.000 óbitos de mulheres no ciclo gravídico-puerperal, variando largamente os coeficientes entre os diversos Estados e Regiões. Os coeficientes de morte materna vêm se mantendo estáveis a partir de 1990 em patamares incompatíveis com o nível de desenvolvimento econômico alcançado pelo país.

 O racismo tem sido um fator importante na determinação dos modos de nascer, viver e morrer da população brasileira, com índices visivelmente piores para a população negra. Afetando seu acesso a bens sociais como saneamento básico, alimentação balanceada, habitação, emprego, serviços de atenção à saúde e também aceitação social. Isso se traduz em maior mortalidade infantil e materna e menor esperança de vida, por exemplo. O racismo influencia também a progressão de doenças, grande parte delas evitáveis, mas que não têm recebido a devida atenção das políticas públicas.

 Existe uma ausência total de políticas públicas preventivas de degradação ambiental e para remediação de áreas e populações já contaminadas.

 Existe uma ausência de política nacional em saúde das trabalhadoras e dos trabalhadores que especifique as atribuições do SUS nesta área nas três esferas do governo, e que incorpore as relações de gênero, raça/etnia.

 O SUS ainda apresenta dificuldades quanto ao:

a) Acesso:

- Existência anacrônica de dois sistemas de saúde funcionando: o público e o privado. Serviços privados conveniados com o SUS, sendo alguns deles quase que totalmente financiados pelos recursos públicos, enquanto outros serviços públicos são na prática terceirizados pela famosa porta dupla, ou seja, no mesmo prédio público convivem dois serviços com portas de acesso diferenciadas de acordo com o poder econômico das usuárias e dos usuários. Esse quadro, se por um lado evidencia a discriminação no acesso, por outro explicita o exercício da violação dos direitos humanos à saúde, previsto constitucionalmente e regulamentado pela Lei 8080/90.

- Dos  55.226 estabelecimentos de saúde, 38%  estavam situados na região sudeste, sendo que 14% destes possuem internação, 73% não possuem internação  e 13% estão voltados para a diagnose e terapia.  Os serviços de apoio à diagnose e terapia estão concentrados nas regiões sul (20%) e sudeste 55%. Dos 7.241 estabelecimentos, somente  3% estão na  região norte.

- Dos 486 mil leitos em hospitais vinculados ao SUS, 2,8 por mil habitantes ou 65% estão em hospitais da rede privada, 26% da pública e 9% da universitária.  A oferta de leitos por mil habitantes é maior no centro-sul, com valores mais elevados na Região Centro-Oeste (3,3 leitos), com destaque para Goiás (4,3). O valor mais baixo é da Região Norte (1,9), sendo que a menor oferta ocorre no Amazonas (1,6). Verifica-se tendência de maior disponibilidade nas capitais dos Estados, com exceção de Palmas, Rio de Janeiro, São Paulo e Campo Grande, com coeficientes abaixo das respectivas médias estaduais. A rede privada está concentrada nas  Regiões Sul e Sudeste, com, respectivamente, 80% e 74% do total de leitos destas áreas. Já os leitos de UTI do SUS somam 11 mil; metade está em hospitais privados, 27% em universitários e 23% em públicos.

- Falta de cobertura pública para atenção básica à saúde, com destaque para o pré-natal e parto.

- Não implantação do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher - PAISM.

- Os serviços de urgência e emergência acabam por constituir a porta de entrada do sistema de saúde.

- Falta de acesso a medicamentos gratuitos pelo SUS.

- Falta de política voltada para doenças de cunho étnico/racial, especialmente para a população afrodescendente.

b) Financiamento:

- Dotação Orçamentária insuficiente para a saúde, decorrência do atual modelo econômico vigente.

- Sistema Tributário perverso e inadequado para garantir as ações de saúde constitucionalmente previstas.

c) Controle Social:

- Dificuldade e fragilidade para o exercício do controle social por parte dos agentes envolvidos no sistema (usuários/profissionais/gestores), sobretudo pela ambigüidade na questão da representação política nos diferentes conselhos de saúde: municipal, estadual e nacional.

- Ausência de formação e capacitação das conselheiras e dos conselheiros.

- Na maioria das vezes existe por parte do Estado um desrespeito na implementação das decisões tiradas pelos diferentes conselhos de saúde e conferências.

 Apresentamos as situações de violação no campo da saúde da mulher, especificamente a morte materna no município de Barreiros/Palmares e outras violações em Recife, Pernambuco, e a contaminação de trabalhadores e ex-trabalhadores da Shell S/A, além de moradores por agroinseticidas em Paulínea, São Paulo.

2-Situações paradigmáticas de violações  dos direitos humanos na área da saúde

2.1-Morte Materna no município de Barreiros, Pernambuco

 As cinco mulheres deste estudo ora apresentado estavam com a seguinte distribuição por faixa etária, estado civil e número de gestações, partos e abortos: AEM,  36 anos, casada, Gesta XI, Para X (todos os partos normais/transpelvianos) Aborto 0; MCSG, 18 anos, gesta I , para 0 , aborto 0, casada; MJSS, 42 anos, casada, gesta XIV, Para XI, trabalhadora rural; MRM, 35 anos, casada, Gesta II, Para I (parto cesariana há cerca de 4 anos), Aborto 0; MFS, 19 anos, solteira, Gesta II, Para I. Portanto, todas encontravam-se no período gestacional (grávidas, puérperas no intervalo de até 1 ano após o parto e nascimento) e são entendidos como óbitos em mulheres grávidas.

 As fontes utilizadas para esse estudo foram informações oriundas de entrevista domiciliar com conteúdo que abordou desde as condições sócio-econômicas, história reprodutiva e de saúde e dos possíveis fatos que levaram à morte, a cópia da declaração de óbito, algumas páginas de cópias do prontuário das mulheres com história de morte materna.

 Da análise dos cinco óbitos maternos identificou-se que todos eles tiveram o primeiro atendimento no Hospital/maternidade João Alfredo (instituição privada conveniada com o SUS), localizado no município de Barreiros – PE.

 Destas cinco mulheres, uma chegou a óbito no Hospital/maternidade João Alfredo antes de sua transferência; as demais chegaram à Casa de Saúde Santa Rosa, localizada no município de Palmares –PE, onde chegaram a óbito. É importante destacar que as transferências se deram de maneira irregular, ou seja, as mulheres em estado gravíssimo foram transferidas em ambulância sem acompanhamento médico. Ressaltamos que é de responsabilidade dessa categoria profissional, inclusive legal, acompanhar pessoas que se encontrem em estado grave quando em situação de transporte por ambulância. Nesse estudo identificou-se que os cinco óbitos  ocorreram por causas obstétricas diretas envolvendo eclampsia e as hemorragias (rotura uterina de corpo e segmento e de colo de útero?), sendo todas elas presumíveis com possibilidades de serem evitáveis.

 Todas as cinco mulheres não haviam realizado o acompanhamento de pré-natal e identificamos que em duas consultas já havia sinal clínico de pressão arterial elevada em uma delas (citamos A E M). Dissemos isto posto que identificamos um número abaixo do limite mínimo de 6 consultas, orientado pela Normatização Técnica de Assistência Pré Natal: duas gestantes fizeram apenas 2 consultas, duas fizeram apenas 4 consultas e uma não fez nenhuma.

 Em relação ao término da gestação, 4 gestantes encontravam-se com IG acima de 37 semanas e abaixo de 42 semanas. Apenas 1 gestante encontrava-se com IG de 25 semanas. Três das mulheres morreram antes do parto. Duas mulheres encontravam-se com IG compatível de termo; morreram depois do parto, sendo uma delas cerca de 10 horas de pós parto, e a outra 2 dias após a cesariana. Já entre as três que morreram antes do parto, uma estava com 25 semanas, talvez com descolamento prematuro de placenta, e as outras duas estavam a termo com diagnóstico de rotura uterina.

 Ao se estudar a evitabilidade da morte em relação à assistência hospitalar, analisou-se aspectos desde o processo da admissão de cada mulher.

 Em três das mulheres, as condições de saúde na admissão no Hospital/maternidade João Alfredo eram boas ou regulares, indicando que, em nível hospitalar estas mortes, provavelmente, seriam evitáveis se tivessem recebido assistência como está previsto pela Constituição Federal Brasileira, Normatização do Processo de Assistência do Ministério da Saúde e qualificação profissional. Já duas delas chegaram em estado grave, porém não receberam assistência adequada para estabilizar o quadro grave em que se encontravam.

 Tanto no Hospital/maternidade João Alfredo como na Casa de Saúde Santa Rosa identificamos que os atendimentos estavam absolutamente inadequados. Lembrando, por exemplo, que  os documentos estudados revelaram, diante de um quadro de eclampsia, esquema de ataque (Sulfato de Magnésio)  não realizado e manutenção incompatível para as necessidades identificadas da mulher, levando-nos a entender que os profissionais destas duas instituições encontram-se necessitando urgentemente de avaliação e reciclagem profissional.  O Hospital/maternidade João Alfredo, principalmente, necessita de uma intervenção imediata, pois as provas de irresponsabilidade profissional são gritantes.

 Finalmente, entendemos que estas mulheres foram vítimas de assistência de péssima qualidade. A atenção básica (pré-natal) junto às gestantes encontra-se precária. Apontamos a necessidade de aumentar a cobertura obstétrica na atenção básica. Esta situação, infelizmente, pode ser estendida para todo o país, quando ainda temos uma das mais altas taxas de mortalidade materna do mundo: 158 por 1000 nascidos vivos. Uma tragédia nacional, absolutamente evitável.

 Todo o relatado configura atos que violam o que está  garantido - o direito à saúde previsto pela Constituição Federal e pela Declaração dos Direitos Humanos.

 Diante desta situação, monitorar esse dever – que é do Estado - e garantir o direito, é da responsabilidade do Comitê Estadual de Estudos da Mortalidade Materna, que deverá encaminhar suas solicitações de intervenção às demais autoridades competentes.

2.2.Contaminação por  diversos agroquímicos no Município de Paulínea/São Paulo pela Empresa Shell do Brasil S/A

 Na década de 70, a empresa Shell Brasil S/A implantou sua unidade industrial de formulação de defensivos agrícolas no município de Paulinea, Estado de São Paulo, em área contígua a um bairro residencial denominado “Recanto dos Pássaros”, que já existia previamente à instalação da empresa. Segundo a atual proprietária da planta, a Basf, temos resumidamente, no histórico dessa fábrica, os seguintes acontecimentos: 

-         1974 – Aquisição do terreno pela Shell.

-         1977 – Início de operações (formulação e síntese de organofosdorados).

-         1984 – Início da formulação de herbicidas

-         1989 – Início da síntese de inseticidas piretróides

-         1992 – Início da síntese do “Torque” (produto acaricida)

-         A Shell formulou organoclorados até 1990.

-         Em 1996 a fábrica foi comprada pela Cyanamid.

-         Em Julho de 2000 a fábrica foi adquirida pela Basf.

 Entre os diversos agroquímicos que passaram a ser ali formulados, incluíam os inseticidas organoclorados Aldrin, Endrin e DDT e a produção de inseticidas organofosforados. Durante seu período de operação, a Shell utilizou dois incineradores e um poço de queima que,  por  mais de uma década, queimaram resíduos sólidos diversos (varrição geral, restos de embalagem, material de manutenção, equipamentos de segurança individual dos operadores etc), além da queima dos resíduos organoclorados sólidos e líqüidos da fábrica de ionol e amostras descartadas do laboratório de análises químicas.

 Convém ressaltar que os incineradores foram desativados após 16 anos de uso por não atenderem aos padrões técnicos de emissão exigidos pela Companhia de Saneamento Ambiental do Estado de São Paulo - Cetesb. Durante este período, a empresa contaminou o lençol freático nas proximidades do Rio Atibaia, um importante manancial da região, com os organoclorados aldrin, endrin e dieldrin. Três vazamentos destes componentes químicos  foram oficialmente registrados durante os anos de produção.

 A comercialização destes produtos foi interrompida no Brasil em 1985, através da portaria 329 de 2 de setembro de 1985 do Ministério da Agricultura, sendo ainda permitida a comercialização de iscas para formigas e cupinicida destinados a reflorestamentos elaborados à base de aldrin. Entretanto, a fabricação para exportação continuou até 1990. Em 1998, através da portaria n.º 12 do Ministério da Saúde, estes produtos foram completamente proibidos. Hoje os “Drins” também são banidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) por estarem associados à incidência de câncer e a disfunções dos sistemas reprodutor, endócrino e imunológico.

 Em 1994, quando a Shell estava prestes a vender a área para a Cyanamid Química, foi realizado um levantamento do passivo ambiental da unidade para que a transação fosse concluída. Nesse processo foi identificada uma rachadura numa piscina de contenção de resíduos que havia contaminado parte do lençol freático. A empresa realizou uma auto-denúncia junto ao Ministério Público que deu origem a um termo de ajustamento de conduta, condição imposta pela compradora, a Cyanamid. Nesse sentido, a Shell teve que se encarregar da construção de uma barreira hidráulica para evitar o avanço da contaminação do lençol freático.

 Entretanto, a empresa  ainda não havia admitido qualquer contaminação com drins, nem vazamentos para fora do seu terreno. Entre os poluentes encontrados no solo e nas águas subterrâneas, nesse primeiro estudo, destacam-se alguns solventes orgânicos: benzeno, xileno, ethilbenzeno; poluentes organoclorados: 1,2 DCE-dicloetano, TCE-tetracloro etano, BHC-benzenohexaclorado, aldrin, endrin, dieldrin; e poluentes inorgânicos: níquel, cobre, zinco e chumbo.

 Em 1996, a Shell encomendou dois laudos técnicos sobre a contaminação do lençol freático fora da área da empresa aos laboratórios do Instituto Adolpho Lutz, de São Paulo, e Lancaster, dos Estados Unidos. O laboratório brasileiro não detectou a presença de contaminantes, mas o norte-americano confirmou a presença de drins na água do subsolo. A Shell manteve em sigilo o relatório do laboratório Lancaster até março de 2000, alegando que o seu resultado foi um “falso positivo”.

 Na época, a agência ambiental paulista, Cetesb, recolheu, pela primeira vez, amostras de poços e cisternas do bairro, que foram analisados pela própria Cetesb, pelo laboratório Ceimic, contratado pela Shell e pelo laboratório Tasca, pago pela Prefeitura de Paulínea. Os exames constataram a presença de dieldrin na água.

 Em dezembro de 2000, novas amostras foram coletadas pela Cetesb,  Instituto Adolfo Lutz e Laboratório Ceimic. As análises comprovaram a contaminação da água dos poços com níveis até 11 vezes acima do permitido na legislação brasileira. Diante de tais resultados, pela primeira vez, a Shell admitiu ser a fonte da contaminação das chácaras das redondezas.

 A estocagem e o manuseio de matérias-primas, produtos e resíduos, realizados de forma inadequada (áreas ao ar livre sem sistema de controle de poluentes e desprovidas de piso e sistemas de contenção), aliada à própria disposição inadequada de resíduos no solo, inclusive cinzas do incinerador, resultaram na imediata poluição do ar, solo e, posteriormente, das águas subterrâneas da área.

 Em fevereiro de 2001 a empresa de consultoria holandesa Haskoning orientou a Shell a realizar um monitoramento mais abrangente, que detectou a presença de metais pesados (níquel, cobre, zinco, chumbo, alumínio e arsênico), poluentes organoclorados (drins) e óleos minerais.

 O caso ganha, definitivamente, espaço na imprensa. Em fevereiro de 2001, cerca de 100 moradores da região fizeram uma vigília de vários dias em frente à fábrica.

 Inicia-se uma etapa de avaliações da saúde dos moradores vizinhos da fábrica. A Prefeitura de Paulínea contratou o laboratório de toxicologia da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (Unesp) para realizar os respectivos exames de análises clínicas. Divulgados em agosto de 2001, os exames indicaram que 156 pessoas – 86% dos moradores do bairro – apresentavam pelo menos um tipo de resíduo tóxico no organismo. Desses, 88 apresentam quadro clínico compatível com intoxicação crônica, 59 apresentavam tumores hepáticos e da tireóide e 72 estavam  contaminados por drins. Das 50 crianças de até 15 anos de idade avaliadas, 27 manifestavam quadro clínico de contaminação crônica. A empresa contestou tais resultados, que considerou inconsistentes e incompletos.

 Segundo o médico Dr. Igor Vassilief, presidente da Associação Brasileira de Toxicologia e professor da Unesp, um dos casos marcantes foi o de uma menina de sete anos com níveis altíssimos de chumbo no sangue, peso e altura abaixo da média e baixo desempenho escolar. A empresa negou que tivesse manipulado metais na unidade de Paulínea.

 Os médicos da Vigilância Sanitária e Ambiental do município de Paulínea, responsáveis pela avaliação da saúde dos moradores do bairro, Dr. Igor Vassilief e Dra. Cláudia Guerreiro, foram denunciados pela Shell junto ao Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) com a alegação de que os referidos profissionais estariam levando a população ao pânico. Esta denúncia foi arquivada por falta de indícios de má prática ou e ausência de quaisquer outras irregularidades disciplinares.

 A empresa, por sua vez, contratou um professor da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, Dr. Flávio Zambrone,  para elaboração de um parecer próprio a respeito do estado de saúde dos moradores. Tal laudo concluiu que não havia nenhum caso de contaminação no bairro. A Associação dos Moradores do Bairro Recanto dos Pássaros, da mesma forma, denunciou junto ao Cremesp o assistente técnico da empresa. Tal denúncia foi julgada procedente e o médico envolvido (Dr. Zambrone) responde a processo por descumprimento do Código Brasileiro de Ética Médica.

 Em setembro de 2001, o Greenpeace enviou um relatório sobre o caso para os diretores da FTSE 4 Good, um índice ligado à bolsa de valores de Londres para investimento socialmente responsável, que lista empresas de acordo com seu comportamento ético.

 Em dezembro de 2001, a justiça do Estado de São Paulo, região de Paulínea, determinou que a Shell removesse os moradores das 66 chácaras do bairro Recantos dos Pássaros. Ela também deveria garantir os tratamentos médicos necessários. A empresa, juntamente com a Cetesb, são alvos de ação civil pública movida pela prefeitura de Paulínea, Ministério Público e pela associação dos moradores do bairro.

 Na seqüência, a Shell começou a comprar as propriedades dos moradores dispostos a vendê-las, já tendo adquirido parte das 66 chácaras, por preços não condizentes com o valor real, segundo depoimentos de alguns dos proprietários.

 Em fevereiro de 2003, toda a região do bairro adjunto à planta da empresa sofreu uma grande inundação, proveniente da cheia do Rio Atibaia, potencializando os riscos de exposição e intoxicação da população. Toda a área foi interditada pela defesa civil de Paulínea, com a remoção de todos os moradores que ali ainda se encontravam, com exceção de três famílias que recusavam-se a abandonar seus lares.

 Em junho de 2002, a câmara dos deputados promoveu uma audiência pública em Brasília para discutir a situação dos ex-funcionários da Shell S/A, com a participação de representantes dos ex-trabalhadores, do sindicato dos químicos unificados de Campinas, da Shell e de seu consultor médico.

 Na mesma época, um ex-funcionário da empresa confirma a existência de quatro aterros clandestinos dentro da área da fábrica, onde a Shell depositava cinzas do incinerador e resíduos industriais. Na seqüência, a Cetesb admite que errou ao não solicitar uma avaliação das condições do solo e da água do Recanto dos Pássaros.

 Durante seu período de funcionamento, na planta industrial da Shell,  estiveram expostos aos contaminantes ali presente, 844 trabalhadores, segundo o Sindicato dos Químicos Unificados.

 Em setembro de 1982, foi apresentado no Congresso Nacional de Prevenção de Acidentes de Trabalho, um estudo de autoria do médico do trabalho da Shell em Paulínea, Dr. Reinaldo Farina, sobre avaliação de análises de colinesterase, indicador de intoxicação por inseticidas organofosforados. Embora o estudo não tenha analisado a contaminação e exposição pelos inseticidas organoclorados, o mesmo descreve 177 casos de intoxicações subclínicas e um caso de intoxicação clínica pelos  organofosforados entre os trabalhadores da empresa, durante o período de 1978 a 1982, o que indica um grau elevado de exposição.

 É importante ressaltar que o agrotóxico produzido e manipulado por este contingente de trabalhadores foi desenvolvido e patenteado pela própria Shell, cuja criação e formulação é mantida em segredo pela empresa.  Hoje, a antiga planta da Shell pertence à Basf, que a comprou da Cyanamid no ano de 2000.

 Para defender seus direitos e responsabilizar a Shell Brasil S.A. por esse crime de contaminação, os hoje 844 ex-trabalhadores da empresa formaram a Comissão de Ex-Trabalhadores da Shell que, juntamente com a Regional de Campinas do Sindicato Químicos Unificados, vem atuando em várias frentes nesse trabalho, nos campos da saúde, do jurídico e em ações políticas. A Shell se recusa a negociar a realização de exames independentes e confiáveis em seus ex-trabalhadores.

 Preocupado com as denúncias feitas, a princípio pelos moradores e posteriormente pelos ex-funcionários, da ocorrência de contaminações por produtos químicos provenientes da fábrica da Shell Brasil S.A. localizada em Paulínea, a Regional de Campinas do Sindicato Químicos Unificados buscou a empresa para tratar o assunto com a seriedade que ele merece. Junto ao sindicato, dessas tentativas vem participando a Comissão de Ex-Trabalhadores da Shell, formada pelos ex-funcionários da empresa após as denúncias de contaminação virem a público.

 Desde o começo do ano de 2001 o sindicato procurou estabelecer contato direto com a Shell e, depois de muitas tentativas infrutíferas, somente conseguiu algo concreto quando foi marcada uma reunião na sede da entidade, em Campinas, no dia 5 de maio de 2001. Nesse dia foi entregue aos representantes da empresa uma pauta de reivindicações contendo os seguintes pontos:

1) o acesso aos prontuários, exames e estudos de saúde realizados em todos os trabalhadores;

2) a garantia de exames de saúde específicos, de qualidade e confiança dos trabalhadores, dando conta da condição atual de saúde dos mesmos;

3) a listagem de todos os trabalhadores, ex-funcionários ou não, que laboraram na planta de Paulínea;

4) informações sobre substâncias, produtos e resíduos manipulados no Centro Industrial Shell Paulínea - CISP.

 No dia 31 de maio, a Shell, atendendo às reivindicações, informou que: 1) o acesso aos prontuários somente poderia ser feito mediante a apresentação de autorização expressa do trabalhador, com indicação do profissional médico a quem os documentos seriam entregues; 2) somente garantiria a realização de exames após investigação e levantamento de dados que dessem conta da vida laboral do ex-funcionário e, uma vez identificado, seria avaliado em conjunto com o sindicato e Comissão de Ex-Trabalhadores a necessidade ou não da realização de exames; 3) nesse dia a empresa entregou uma lista dos ex-empregados que trabalharam na unidade de Paulínea, desde 1977 até a data atual; 4) forneceu uma listagem das substâncias, produtos e resíduos manipulados e produzidos na sua unidade em Paulínea.

 Posteriormente, no que diz respeito à entrega dos prontuários médicos aos ex-funcionários, a Shell concordou em fornecê-los àqueles que se dirigissem pessoalmente ao consultório médico, independentemente de submetê-los a exames. Soube-se mais tarde, através de declarações entregues a alguns pacientes solicitantes, que tais prontuários médicos não se encontrariam mais em poder da Shell. Convém aqui lembrar que a guarda destes documentos por um período de 20 anos decorre de obrigação prevista na legislação (NR 7).

 A Shell, no entanto, a partir daí, radicaliza quanto a forma de se estabelecer um protocolo único entre a empresa, o sindicato e a comissão para a avaliação clínica dos trabalhadores na medida em que ela, assistida por seu departamento médico, apresentou uma proposta técnica que se figura flagrantemente insuficiente para as necessidades que o caso requer.

 Isto porque, diante da complexidade do tema abordado, demonstra-se primordial definir, científica e metodologicamente, as doenças, lesões, males ou quaisquer alterações - físicas, fisiológicas, metabólicas, psíquicas, mentais ou neurológicas - que possam ser causadas por exposição, inalação, contato, ingestão de drins e derivados, metais pesados, hidrocarbonetos policíclicos, dioxinas e furanos, sem prejuízo de outros elementos que possam interferir, direta ou indiretamente, no diagnóstico suspeito de doenças daí decorrentes. E a Shell, desde então, mantém-se firme na negativa em buscar, conjuntamente, essas definições. Quer impor, de qualquer forma, a sua.

 Buscando se aproximar ao máximo dos objetivos acima, a Regional de Campinas do Sindicato Químicos Unificados, através de seu assistente médico, elaborou um protocolo médico próprio, o qual, além de mais completo e abrangente, prioriza a realização de um trabalho em conjunto, sob o controle e ingerência dos próprios trabalhadores (representados pela Comissão de Ex-Trabalhadores), da entidade sindical e da empresa Shell, sendo essas duas últimas assistidas por seus departamentos médico e por suas assessorias técnicas.

 Diante dos pontos de discordância travados na questão protocolos médicos, o sindicato buscou, ainda no final de 2001, a realização de reunião em conjunto com a Shell, contemplando a feitura de um método de trabalho único e comum, o que até a presente data não se revelou possível por omissão acintosa e deliberada da empresa. Assim outra alternativa não restou ao sindicato que a de mover uma Ação Civil Pública contra a Shell Brasil S.A., protocolada no dia 15 de agosto de 2002 na Justiça do Trabalho em Paulínea.

3-Preocupações e reflexões: Acesso, equidade e integralidade 

 A  Saúde é considerada como um direito do cidadão e da cidadã, independente de raça, cor, credo ou religião, classe social, sexo e orientação sexual. É pautada nos princípios da integralidade, universalidade, equidade, hierarquização e controle social

 O estado  brasileiro, por força da Constituição Federal, tem o dever de promover a saúde nos níveis de prevenção, promoção, cura/reabilitação, garantindo a participação de todos os setores sociais  envolvidos nas ações de saúde.

Os marcos legais e conceituais nacional e internacional dão sustentação ao direito à saúde e ainda o Artigo 12 do Pacto que preconiza que

1.    Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental.

2.    As medidas que os Estados partes do presente Pacto deverão adotar com o fim de assegurar o pleno exercício desse direito incluirão as medidas que se façam necessárias para assegurar:

a)    a diminuição da mortalidade infantil, bem como o desenvolvimento são crianças;

b)    a melhoria de todos os aspectos de higiene do trabalho e do meio ambiente;

c)    a prevenção e tratamento das doenças epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras, bem como a luta contra essas doenças;

d)     a criação de condições que assegurem a todos assistência médica e serviços médicos em caso de enfermidade.  

e)    Diminuição da morte materna no Brasil. 

f)      Punição da empresa Shell 

*Eleonora Menicucci de Oliveira é relatora nacional para o Direito à Saúde

**Lúcia Maria Xavier é Coordenadora de Criola e assessora da Relatoria Nacional para o Direito à Saúde