Dentre
todos os obstáculos à efetivação do direito à comunicação,
um merece destaque: o não reconhecimento pela maioria
esmagadora da sociedade brasileira do direito à comunicação
como um direito humano, indispensável para o desenvolvimento
das pessoas e da sociedade
Direito
à comunicação: ainda um horizonte longínquo
Diogo
Moysés e João Brant
O
direito à comunicação é um dos pilares centrais de uma
sociedade democrática. Assumir a comunicação como um
direito fundamental significa reconhecer o direito de todo ser
humano de ter voz, de se expressar. Significa dizer que cabe
ao Estado garantir isso a todos os cidadãos, mais do que
exercer por sua própria conta essa comunicação. O direito
à comunicação é mais do que direito à informação e
liberdade de expressão: é o direito de produzir e veicular
informação, de possuir condições técnicas e materiais
para dizer e ser ouvido, de ser protagonista de um sistema de
comunicação plural. É, acima de tudo, compreender a
comunicação como um bem público, que pertence ao conjunto
da sociedade.
Dentre
todos os obstáculos à efetivação do direito à comunicação,
um merece destaque: o não reconhecimento pela maioria
esmagadora da sociedade brasileira do direito à comunicação
como um direito humano, indispensável para o desenvolvimento
das pessoas e da sociedade.
Enquanto
a luta pela garantia de outros direitos sociais parte do
pressuposto já enraizado na sociedade de que tais questões são
de fato direitos humanos, o direito à comunicação, uma
evolução dos conceitos de liberdade de expressão e do
direito à informação, ainda carece de maior lastro social,
inclusive nos movimentos sociais e nas organizações civis.
Concentração,
obstáculo à liberdade de expressão
Em
2004, mantém-se inalterada a concentração dos meios de
comunicação de grande audiência e circulação nas mãos de
poucos conglomerados, ou melhor, nas mãos de poucas famílias.
Permanecemos sem qualquer mecanismo legal para combater o
monopólio ou o oligopólio do setor de telecomunicações.
Ao
contrário de diversos países, não há, no Brasil, qualquer
instrumento que impeça a propriedade cruzada de meios de
comunicação, ou seja, a posse e a concessão de veículos de
comunicação de diferentes naturezas numa mesma área geográfica.
Em muitos estados brasileiros, os concessionários das redes
de televisão líderes de audiência (todas elas afiliadas da
Rede Globo) também são proprietários dos jornais locais de
maior circulação. A ausência de mecanismos que impeçam o
monopólio da informação regional constitui um dos grandes
obstáculos para o desenvolvimento da democracia.
Essa
concentração, hoje o maior obstáculo para a plena realização
da liberdade de expressão, pode ser traduzida em números:
apenas seis redes privadas nacionais de televisão aberta e
seus 138 grupos regionais afiliados controlam 667 veículos de
comunicação. Seu vasto campo de influência se capilariza
por 294 emissoras de televisão VHF que abrangem mais de 90%
das emissoras nacionais. Somam-se a elas mais 15 emissoras
UHF, 122 emissoras de rádio AM, 184 emissoras FM e 50 jornais
diários.
Da
mesma forma, não há qualquer mecanismo que impeça o monopólio
da audiência de televisão por uma única emissora (como
existe mesmo nos EUA, por exemplo). No Brasil, a Rede Globo
permanece soberana, mantendo níveis de audiência sempre
acima dos 50% dos televisores ligados.
O fato deve ser considerado grave, visto que a televisão
permanece como a principal mediadora nas relações políticas,
sociais e culturais dos brasileiros (98% da população de 10
a 65 anos assiste à televisão).
Pluralidade
inexistente
Passados
quase dois anos das eleições presidenciais, o governo Lula
ainda não demonstrou a intenção de estabelecer políticas
que incentivem a pluralidade de vozes e pensamentos no sistema
brasileiro de comunicação. Não há uma legislação que
responsabilize o Estado brasileiro pelo fortalecimento e
viabilização de veículos de pequena circulação/alcance e
de caráter público e comunitário.
As
verbas publicitárias do Governo Federal continuam a ser
distribuídas tendo como único critério os índices de audiência
ou circulação, o que reforça a concentração e a tendência
à oligopolização. Os recursos investidos em anúncios pela
administração federal somam mais de R$ 563 milhões,
e representam hoje boa parte da verba publicitária do país.
Anunciando, o governo não está somente dando publicidade a
seus atos, mas está financiando a existência de alguns veículos.
Portanto, uma política de apoio à pluralidade deve
necessariamente passar pela redefinição de critérios para a
distribuição de verbas publicitárias.
A
ausência destes mecanismos aliada à não existência do
direito de antena no Brasil praticamente elimina a
possibilidades dos movimentos sociais significativos
comunicarem-se, direta ou indiretamente, com o conjunto da
sociedade.
Ausência
de regulamentação
Não
houve no último período qualquer alteração significativa
na legislação que sinalizasse para a garantia do direito à
comunicação. Os principais pontos da Constituição Federal
permanecem sem regulamentação. Entre eles estão justamente
o que impediria o oligopólio dos meios de comunicação (art.
220) e o que criaria exigências mínimas de programação
para as emissoras de rádio e televisão (art. 221).
A
ausência de regulamentação também atinge o artigo 223, que
estabelece o princípio da complementariedade entre os
sistemas público, privado e estatal na radiodifusão. Hoje,
como antes, as emissoras de rádio e televisão são
majoritariamente controladas por empresas privadas. Nas
principais cidades brasileiras, são cinco canais de televisão
comerciais, somente um público ou estatal operando pelo
sistema VHF. Somos, ainda em 2004, um país em que a TV
comercial prepondera sem limites.
Devemos
considerar que continuamos a ter um processo de outorga e
renovação de concessões sem o mínimo de transparência. No
Brasil, apenas a partir de 1997 as escolhas passaram a ser
feitas por meio de licitação. Antes vigorava a mais completa
ausência de critérios. No entanto, tendo em vista que quase
a totalidade do espectro eletromagnético foi definida a
partir dos critérios anteriores, os esforços da sociedade
devem procurar estabelecer formas de controle público sobre
as concessões. Mas, infelizmente, ainda não há discussão
sobre mecanismos transparentes e democráticos para conter
abusos cometidos pelas emissoras de rádio e televisão, não
há controle público do conteúdo do serviço prestado e não
há participação da sociedade nos assuntos relacionados ao
tema.
Dois
anos de CCS
O
Conselho de Comunicação Social (CCS), previsto na Constituição
de 1998 como órgão auxiliar do Congresso Nacional, chega em
2004 com dois anos de vida. Instalado em 2002, o CCS
revelou-se um frágil instrumento para a democratização das
comunicações, principalmente por duas razões: por seu caráter
meramente consultivo e pelo fato de sua composição ser
definida pela mesa diretora do Congresso, o que produziu
idiossincrasias como a ocupação da cadeira destinada à
sociedade civil pelo representante de um dos maiores
conglomerados de comunicação do país.
Porém,
a instalação do CCS produziu alguns debates importantes,
como o sobre o projeto de autoria da deputada Jandira Feghali,
que regulamenta parte do artigo 221 da Constituição,
estabelecendo percentuais mínimos de regionalização da
programação cultural, artística e jornalística e da produção
independente nas emissoras de rádio e TV. O projeto, que
circula há 13 anos no Congresso, recebeu parecer favorável
do CCS, mas encontra-se novamente estacionado no Senado em função
das pressões das redes de televisão.
Comunicação
Comunitária
Também
no campo da comunicação comunitária não tem havido
mudanças na situação dos últimos anos. Estima-se que haja
hoje cerca de 15 mil emissoras de baixa potência em
funcionamento no Brasil, a imensa maioria não legalizadas.
Por um lado, a legalização das rádios comunitárias se dá
em ritmo extremamente lento, havendo mais de sete mil
processos aguardando análise no Ministério das Comunicações.
Por outro, a Anatel continua a tratar com rigor excessivo os
casos de rádios não-legalizadas, e conta com a Polícia
Federal para promover a apreensão dos equipamentos e
fechamento dessas emissoras. Em 2002, somente na Justiça
Federal Criminal, havia cinco vezes mais processos sobre
radiodifusão – a imensa maioria sobre fechamento e apreensão
de equipamentos de rádios comunitárias – do que sobre tráfico
internacional de entorpecentes.
É
notável que ao invés de políticas de estímulo à apropriação
do direito à comunicação pela população – o que ao fim
e ao cabo levaria ao estímulo à criação de rádios comunitárias
– o que tem acontecido é uma política de combate a esses
veículos, a partir da pressão exercida pelos veículos
comerciais.
A
dubiedade do Governo Federal
A
atuação do Governo Federal é marcada por uma postura dúbia.
Por um lado, o Ministério das Comunicações não se propõe
a enfrentar a situação de concentração e oligopolização.
A pasta não tem hoje uma agenda política clara, limitando-se
a conduzir lentamente o processo de implantação do Serviço
Brasileiro de Televisão Digital e a debater, junto com a
ANATEL, a implantação do Serviço de Comunicações
Digitais, que utilizará os recursos do FUST (Fundo de
Universalização dos Serviços de Telecomunicações). Esse
quadro é resultado, entre outros fatores, do fato de que o
Ministério das Comunicações não vem sendo tratado como
estratégico por parte da Presidência, tendo sido cedido aos
partidos políticos aliados.
Por
outro lado, do Ministério da Cultura partiram algumas
iniciativas importantes, como o apoio à flexibilização da
propriedade intelectual e a formulação da proposta da Lei
Geral do Audiovisual, uma importante iniciativa que busca o
fortalecimento da produção independente, a afirmação da
diversidade cultural e a criação de barreiras para a exploração
irrestrita do mercado brasileiro pela indústria estrangeira.
No entanto, o projeto peca por isolar a regulação da área
do audiovisual, deixando de lado a regulação sobre a
infra-estrutura das comunicações e sobre o restante da
radiodifusão. Além disso, mantém a lógica das agências
reguladoras, que tem sua diretoria indicada pela Presidência
da República sem nenhuma garantia de representatividade ou de
participação popular.
Inclusão
digital e software livre
No
campo da inclusão digital, o Brasil vive hoje um momento de
transição, em que se busca unificar políticas antes
dispersas. Não há indicadores que consolidem as iniciativas
nos âmbitos municipal e federal, o que torna difícil uma
avaliação de impacto não localizada. Um avanço importante
é a política da Casa Civil e do ITI (Instituto Nacional de
Tecnologia da Informação) de apoio à adoção de software
livre, que tem promovido a migração de vários ministérios
para plataformas livres e oficializado o uso desse tipo de
software nas diversas políticas de inclusão digital.
Cenário
internacional
No
plano internacional, os acordos de livre comércio tocam em três
áreas que afetam diretamente o campo da comunicação no
Brasil: propriedade intelectual, diversidade cultural e serviços
de telecomunicações. A pressão dos países ricos pela
manutenção das estruturas rígidas de propriedade
intelectual é fundamental para a sustentação de suas indústrias
culturais exportadoras. Assim, o governo norte-americano
persiste rechaçando qualquer proposta que flexibilize a
propriedade intelectual ou que proponha mecanismos de proteção
à diversidade cultural.
A
proposta dos EUA é de considerar a comunicação como
“serviços audiovisuais”, tratando-a como mercadoria, e não
como um direito universal. A postura do governo brasileiro nos
fóruns internacionais, em especial nas negociações da Alca,
tem sido a de enfrentar os modelos propostos pelos Estados
Unidos. No entanto, o setor de serviços tem sido usado muitas
vezes por parte do Brasil como contrapeso nas negociações, o
que enfraquece a possibilidade de combater essa concepção
mercantilista. É também o que acontece nas negociações com
a União Européia, em que tem aceitado a abertura dos serviços
de telecomunicações como moeda de troca para algumas concessões
européias na área da agricultura.
Sociedade
civil
Na
luta pela efetivação do direito à comunicação, se
destacam algumas iniciativas da sociedade civil. O FNDC (Fórum
Nacional pela Democratização da Comunicação) tem, no último
período, dado especial atenção aos debates sobre o Sistema
Brasileiro de Televisão Digital. Em 2004, também se
fortaleceu a campanha “Quem financia a baixaria é contra a
cidadania”, promovida pela ONG TVer e pela Comissão de
Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.
No
segundo semestre de 2004, iniciou-se ainda a articulação da
CRIS Brasil, integrada com a Campanha CRIS Internacional
(Communication Rights in the Information Society). Participam
diversas entidades, como a Rits, Intervozes, GT de Comunicação
da ABONG, Rede DAWN, Epcom, GTA, ASA, entre outras, que
apontaram como principais focos de atuação a constituição
de um sistema público de comunicação, a promoção da
diversidade cultural, a atuação sobre as questões de
propriedade intelectual e, finalmente, a apropriação social
das Tecnologias de Informação e Comunicação.
Diogo Moysés e João
Brant são integrantes do Intervozes – Coletivo Brasil
de Comunicação Social
Dados do Epcom –
Instituto de Estudos e Pesquisa em Comunicação. A
pesquisa foi publicada em 2002. Desde então, houve
transferência de afiliadas de uma para outra emissora,
mas não houve alterações no quadro geral.
Secom – Secretaria de
Comunicação da Presidência da República
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