Pagina Principal  

Relatórios
 

Foi o atual Secretario Geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, quem nos ensinou: “É possível saber com razoável precisão como será a ALCA. A ALCA será como o NAFTA. E naquilo que for diferente será diferente para ser mais favorável aos Estados Unidos”.  

A Campanha Contra a ALCA no Brasil

* Ricardo Gebrim

 

 A Campanha Nacional contra a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) desenvolveu a maior atividade pedagógica desde os anos 50, quando a luta pelo petróleo uniu a sociedade brasileira em torno de uma bandeira comum. Foram milhares de palestras, atos, reuniões que culminaram com a realização do Plebiscito Popular em 2002. Durante os três dias de votação, 157 mil militantes e ativistas trabalharam voluntariamente em mais de 4 mil municípios, dos 27 estados da federação, para coletar 10 milhões, 149 mil e 542 votos em 41.758 urnas.

 O resultado não deixou margem para dúvidas. 95,94% dos votantes consideraram que o Brasil não devia permanecer nas negociações da ALCA. Como disse Dom Demétrio da CNBB: “fazem uma pesquisa com menos de mil pessoas e vendem o resultado como sendo a opinião pública. O que dizer sobre a opinião de mais de 10 milhões?” 

 Durante a preparação do Plebiscito, entre dezenas de materiais pedagógicos, lançamos uma cartilha em que a capa trazia um desenho com o famoso “Cavalo de Tróia”.  A mensagem era óbvia e didaticamente simbolizava o tipo de perigo que a ALCA representa.

 Logo após a realização do Plebiscito, o PT ganha as eleições presidenciais e a confiança de que Lula romperia com as negociações da ALCA cresce em toda a sociedade. Afinal, o PT integrava a Campanha Brasileira contra a ALCA  e chegava ao governo respaldado por 10 milhões de votos exigindo a imediata saída das negociações. Mais do que nunca, estavam dadas as possibilidades concretas de inviabilizar o projeto anexionista dos EUA para o nosso continente.

 A primeira frustração das entidades que integram a Campanha se deu no primeiro mês de governo. Ainda em janeiro, sem sequer assegurar a mínima transparência, Lula envia as propostas negociadoras do Brasil, elaboradas durante o governo de Fernando Henrique Cardoso pelos setores mais entreguistas do empresariado nacional. Ficava claro que ao optar pela manutenção da política econômica do governo anterior, Lula não romperia com as negociações, apostando no caminho protelatório.

 Desde a posse de Lula, enquanto as entidades da Campanha Contra a ALCA exigiam a imediata retirada das negociações, o governo brasileiro defendia a política de ganhar tempo e inviabilizar o processo negociador. Construíram a proposta de uma ALCA “light”, “à la Carte” , “desidratada” ou em “dois pisos”, apostando que esta seria a melhor forma de arrastar ao máximo as negociações, possibilitando o fortalecimento do Mercosul.

 O momento decisivo para o sucesso da estratégia brasileira seria a Cúpula Ministerial de Miami. Até então, tudo indicava que o processo negociador estava paralisado e os EUA haviam perdido a iniciativa.

 Tentando inutilmente ser recebidos pelo Presidente Lula, os representantes da Campanha Contra a ALCA estiveram no Itamaraty, para entregar mais três milhões de assinaturas de um abaixo-assinado exigindo a convocação de um plebiscito oficial. Durante a audiência, alertaram o Ministro das Relações Exteriores sobre o previsível resultado da Cúpula Ministerial de Miami. Era evidente que permanecer negociando, significava ir se enredando cada vez mais na teia de compromissos de um processo com conteúdo estratégico já definido.  As entidades avisaram que ‘a medida  em que o Brasil permanecesse na negociação, o texto do acordo iria se cristalizando e o país iria assumindo compromissos provisórios. Conseqüentemente, o texto final seria apresentado como sendo o melhor possível e o Executivo, comprometido em sua palavra e sofrendo enorme pressão externa do capital financeiro e de suas agências reguladoras, seria obrigado a articular e desencadear toda sua força política para fazer o Congresso aprovar o texto final, com o velho argumento de que é preciso honrar os contratos e compromissos.

 A entidades alertaram o governo brasileiro quanto ao  temor de que os EUA assumissem a defesa da ALCA “light”, jogando o Brasil e o Mercosul num grande impasse. Porém, nossos argumentos foram desprezados. Prevalecia a idéia de que Miami repetiria o fracasso da OMC em Cancun.

 Encabeçados pelo Ministro da Agricultura, os defensores da ALCA no Brasil finalmente saíram do anonimato. A chamada ‘quinta coluna” exerceu fortes pressões para que o Brasil não inviabilizasse a reunião de Miami.

 Pois bem, desde a cúpula de Miami a situação se definiu.

 A tática brasileira de permanecer nas negociações da ALCA e “empurrar com a barriga” para ganhar tempo, chegou ao seu limite. Na verdade, ao sustentar uma ALCA “light”, que mantém o calendário original proposto pelos EUA, a proposta do governo brasileiro acabou dando novas energias a um processo negociador que se aproximava do fracasso.            Ao manter a essência do projeto norte-americano, limitando-se a alargar os prazos e reduzir momentaneamente os conteúdos, o Brasil deixou a porta aberta para as desproporcionais negociações bilaterais e plurilaterais. Com a ALCA “light”, o governo dos EUA poderá ficar mais liberado para negociar em condições de maior desigualdade, isolando os países que demonstrarem resistência. A proposta brasileira deu novo impulso ao CAFTA (Tratado de Livre Comércio com a América Central) e isolou a postura soberana da Venezuela.

 Logo após a 8a. Reunião Ministerial da ALCA, realizada em Miami, Robert Zoellick, o poderoso Secretário do Comércio de Bush, festejou os resultados com a seguinte frase: “Passamos da ALCA teórica para a ALCA prática”.  Suas palavras deixaram evidente a constatação de que o Brasil havia sido vítima de sua própria armadilha. O cavalo de madeira foi trazido para dentro dos muros de Tróia.

 Os fatos confirmaram nossa advertência. Tentar jogar com as regras da negociação é debater-se na teia de aranha.             A especialização internacional da produção torna cada vez mais desfavoráveis as relações de intercâmbio para os países pobres. Pressionados pela dívida externa e pelas receitas dos organismos multilaterais de financiamento, em especial o FMI, nossos países são impotentes para enfrentar isoladamente esse processo.  A proposta brasileira enfraquece toda a capacidade de construção de alternativas em nosso continente. Enfraquece até mesmo a resistência da Campanha contra a ALCA nos EUA, que aposta na possibilidade de impedir a aprovação do CAFTA  (Acordo de Livre Comércio com a América Central) na votação do Congresso.              

 O que os defensores da ALCA “light” se esquecem é que a ALCA é um processo negociador que corresponde ‘a interesses estratégicos bem definidos. Para se concretizar ela pode ser fatiada ou ser construída em etapas. O que importa para os EUA  é assegurar suas regras essenciais. Ainda que aparentemente esvaziada num primeiro momento, os resultados serão os mesmos, pois obedecem ao mesmo projeto: garantir a abertura irrestrita dos mercados para melhorar o desempenho de algumas grandes corporações estadunidenses. A versão “light” da ALCA também se insere na lógica de criar mecanismos de compromisso internacional que permitem ‘as grandes corporações processar e multar os governos nos casos em que seus interesses sejam afetados pela defesa de direitos ambientais ou sociais.    

 Mesmo que admitíssemos a idéia absurda de que a ALCA se encerraria no estágio “light”, nos termos já negociados na última rodada de Puebla, o Brasil ficaria comprometido, por acordo internacional, a manter o seu mercado interno sempre aberto para as exportações dos EUA e de outros países do continente americano. Segundo estudo realizado pela UNICAMP (Universidade de Canpinas), as empresas brasileiras se veriam expostas à vigorosa concorrência das grandes corporações, com todo seu poder tecnológico, financeiro e comercial. O Brasil teria que abrir mão de uma série de instrumentos de política governamental, tornando-se incapaz de implementar um projeto nacional de desenvolvimento. O resultado é previsível: mais desemprego e miséria.

 Porem, o pior efeito da versão “light” é seu caráter desmobilizador. Transforma a ALCA  num processo aparentemente aceitável, legitimando sua existência e permitindo que gradualmente se agreguem os aspectos mais ofensivos da estratégia norte-americana. Foi nosso companheiro de lutas e atual Secretario Geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, quem nos ensinou: “É possível saber com razoável precisão como será a ALCA. A ALCA será como o NAFTA. E naquilo que for diferente será diferente para ser mais favorável aos Estados Unidos”.

 Ao defender a ALCA “light”, ou em dois pisos, como prefere chamar o Itamaraty, deixamos de ser o principal pólo de resistência no processo negociador, aceitando o “presente de grego” e trazendo o “Cavalo de Tróia” para dentro de nossos muros.

 Não se pode admitir ingenuidades neste debate.  A ALCA somente se viabiliza se assegura um conjunto de medidas jurídicas e políticas que determinam o esvaziamento dos Estados nacionais e transferem o poder político para uma esfera controlada por grandes grupos econômicos. Seja a ALCA fatiada ou integral, é da sobrevivência de nossa nação que estamos tratando.

 A situação se agravou com a proposta brasileira de impulsionar um “Acordo de Livre Comércio” entre o Mercosul e a União Européia. Como explica a declaração da Campanha Continental contra a ALCA: “Em troca de supostos ganhos para alguns poucos setores
agro-exportadores, nossos governos dos países do Mercosul estão oferecendo a entrega de setores chave de nossas economias à competição desigual com a as grandes empresas transnacionais européias, em áreas como bens industriais, pesca e transporte marítimo, seguros, serviços ambientais – inclusive água e saneamento -, serviços financeiros e de telecomunicações, compras governamentais, normas mais restritas de propriedade intelectual que impedirão a transferência de tecnologia e facilitarão a biopirataria e a
apropriação indevida do conhecimento associado ao uso da biodiversidade, garantias jurídicas adicionais aos investidores europeus, etc.”

 A iniciativa do governo brasileiro em negociar “a toque de caixa” um acordo com a União Européia, sem assegurar qualquer transparência, abre um perigoso precedente, impulsionando o processo de construção da ALCA, uma vez que os EUA poderão exigir as mesmas condições concedidas aos europeus.

 Chegamos numa fase decisiva dessa luta. Essa foi a constatação do III Encontro Hemisférico de Luta contra a ALCA, realizado entre os dias 26 a 29 de janeiro de 2004, em Havana, Cuba. Ao analisar o atual momento da luta contra a ALCA, os 1.042 representantes das organizações sociais do continente, concluíram que, através da chamada ALCA “light”  e dos acordos bilaterais de “livre comércio”, o projeto do governo dos EUA mudou sua forma e procedimento, mas manteve sua essência. Com as negociações envolvendo a União Européia, fica claro que nossa luta deve se voltar contra o conceito deturpado de “Livre Comércio”, esclarecendo nossos povos sobre os perigos envolvidos nessas negociações.

 No Encontro de Havana, consolidamos uma ampla Coordenação Continental da campanha, aprovamos uma estratégia comum e definimos um Plano de Ação. Foi um verdadeiro salto de qualidade na articulação e capacidade de luta dos movimentos sociais.

 Nosso desafio é retomar a campanha contra a ALCA com toda a intensidade. Temos a enorme e urgente tarefa de retomar os cursos massivos que expliquem o perigo da ALCA “light”, o absurdo do Acordo com a União Européia e os riscos contidos nas negociações na OMC. É importante promover o debate sobre a ilusão do “livre comércio”, resgatar a discussão sobre um Projeto Popular para Brasil.

 O governo Lula não pode cometer um erro estratégico desta natureza. As regras negociadas na ALCA não são nada mais que a legalização dos princípios neoliberais. Em outras palavras, através da ALCA e dos demais acordos de “livre comércio”, as grandes corporações econômicas querem consolidar o neoliberalismo, impedindo que nossas nações contem com instrumentos políticos para retomar o caminho da soberania e do desenvolvimento. É o nosso destino enquanto nação que está em jogo. Numa luta desta envergadura não podemos admitir vacilações.

 

* Ricardo Gebrim é presidente do Sindicato dos Advogados de São Paulo.