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Relatórios
 

De janeiro de 2003 a julho de 2004, o Brasil recebeu $3,2 bilhões de dólares em empréstimos do Banco Mundial (BIRD) e do Banco Interamericano (BID). Durante esse mesmo período, as instituições públicas brasileiras pagaram $6,9 bilhões de dólares a esses bancos. Ou seja, o Brasil enviou para o exterior $3,7 bilhões a mais do que recebeu.

 

A Contra-Reforma Agrária do Banco Mundial

* Marcelo Resende e **Maria Luisa Mendonça

 Nas últimas décadas, foi construída em diversas partes do mundo a idéia de que o território rural não era significativo para o desenvolvimento. Os processos de êxodo rural se baseiam na imagem dos centros urbanos como os principais geradores de renda e de oportunidades econômicas.

 Porém, as maiores regiões concentradoras de recursos naturais - como água, terra, minério e biodiversidade - estão no meio rural e passaram a ser o centro das políticas de agências financeiras multilaterais, especialmente do Banco Mundial.  Não é aleatório que, hoje, os principais projetos do Banco estejam voltados para o campo.

 Basta verificar o empréstimo recente do Banco Mundial, de $505 milhões de dólares já liberados e dos $695 milhões a serem liberados nos próximos meses para o Brasil. Esse fato é preocupante, já que o Banco Mundial geralmente apóia projetos que beneficiam grandes empresas, como a construção de um porto graneleiro em Santarém (Pará) para o escoamento da soja exportada pela Cargill. O projeto inclui ainda a pavimentação de rodovias ligando o estado do Mato Grosso ao porto da Cargill no Pará. Essa política estimula a destruição ambiental na Amazônia, onde extensas áreas de floresta estão sendo substituídas por áreas de monocultivo de soja e arroz, pela criação de gado em grande escala e pela retirada clandestina e predatória de madeira.

 Sob o pretexto de “ajuda econômica”, o Banco Mundial influencia a concepção de desenvolvimento e as políticas econômicas dos países periféricos. Na medida em que o Banco exige uma contrapartida dos governos, o orçamento do Estado fica comprometido com os financiamentos de seus projetos.

 De janeiro de 2003 a julho de 2004, o Brasil recebeu $3,2 bilhões de dólares em empréstimos do Banco Mundial (BIRD) e do Banco Interamericano (BID). Durante esse mesmo período, as instituições públicas brasileiras pagaram $6,9 bilhões de dólares a esses bancos. Ou seja, o Brasil enviou para o exterior $3,7 bilhões a mais do que recebeu (Folha de São Paulo, 04/08/2004).

 No Brasil, a ideologia do Banco passou a ter maior impacto no governo FHC, que estabeleceu uma política agrária denominada “Novo Mundo Rural”, centrada basicamente em três princípios: (1) o assentamento de famílias sem terra enquanto uma política social compensatória; (2) a “estadualização” dos projetos de assentamento, repassando responsabilidades inerentes à União para estados e municípios; (3) a substituição do instrumento constitucional de desapropriação pela propaganda do “mercado de terras”, o que significa a compra e venda negociadas da terra.

 Durante o governo FHC, o Banco Mundial iniciou a mercantilização da reforma agrária, com três linhas de financiamento: Cédula da Terra, Banco da Terra e Credito Fundiário de Combate à Pobreza. Essa política consiste, basicamente, no financiamento da compra da terra pelos trabalhadores, que ficam com uma dívida para pagar em até 20 anos. Ao mesmo tempo, os latifundiários são “premiados” com o pagamento à vista do imóvel. Esses programas contrariam o instrumento de desapropriação, como manda a Constituição brasileira, que indeniza os proprietários com Títulos da Dívida Agrária (TDAs) em até vinte anos.

 No governo FHC, essas três linhas de financiamento (Cédula da Terra, Banco da Terra e Crédito Fundiário de Combate à Pobreza) gastaram em torno de R$ 1.5 bilhões de reais e atingiram 74.585 famílias, conforme quadro abaixo:

 

LINHAS DE FINANCIMENTO

FINANCEIRO

PERÍODO

NÚMERO DE FAMÍLIAS

Cédula da Terra

R$450 milhões de reais

97 a 2002

15.267 famílias

Banco da Terra

R$928.2 milhões de reais

98 a 2002

51.808 famílias

Crédito Fundiário

R$19.6 milhões de reais

2001 a 2003

  7.510 famílias

Total

R$ 1.397,8 bi

 

74.585 famílias

Fontes: MDA/INCRA

OBS: Estes dados são parciais, já que o MDA até o momento não divulgou dados completos.

 De acordo com pesquisas realizadas por acadêmicos, organizações sociais e denúncias de trabalhadores, esses programas apresentaram os seguintes problemas:

- Aumento do valor da terra e pagamento a vista, como forma de premiar o latifúndio.

- Inviabilidade econômica, impossibilidade do pagamento dos empréstimos e endividamento dos trabalhadores rurais. As áreas adquiridas, muitas de má qualidade, não reuniram condições de permitir a geração de renda suficiente para o pagamento da dívida.

- Aquisição de terras sem registro e improdutivas, portanto aptas ao programa de reforma agrária.

- A compra da terra é feita por associações de trabalhadores, sem autonomia na escolha das áreas. Essas associações muitas vezes são organizadas pelos próprios latifundiários e políticos locais.

- Condições precárias de sobrevivência e abandono das áreas. Ao invés de aliviar a pobreza, a situação financeira dos participantes no programa se agravou.

- Denúncias de corrupção envolvendo administrações municipais, políticos e sindicatos, que teriam sido favorecidos nas transações de compra e venda de terras.

 Com o início do governo Lula, o conjunto dos atores sociais do campo depositou suas esperanças na reversão desse processo. A expectativa era de que a reforma agrária estaria no centro da agenda política, como uma forma de gerar empregos, de garantia da soberania alimentar e como base de um novo modelo de desenvolvimento.

 Inicialmente, o Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) anunciou a suspensão do programa Banco da Terra e a avaliação do Crédito Fundiário. Até o presente momento, essa avaliação não foi divulgada e o programa só foi suspenso temporariamente. 

 No presente momento, o que assistimos é a continuidade e ampliação das políticas do Banco Mundial para o meio rural. Em novembro de 2003, o MDA anunciou o “Plano Nacional de Reforma Agrária: Paz, Produção e Qualidade de Vida no Meio Rural”. Uma das principais metas do plano, com a previsão de atingir 130.000 famílias, é a continuidade das linhas de financiamento do Crédito Fundiário que segue a lógica do “mercado de terras”.

 No governo Lula, o MDA manteve a administração do programa na Secretaria Nacional de Reordenamento Agrário e passou a chamá-lo de “Programa Nacional de Credito Fundiário”, com três linhas de financiamento: Combate à Pobreza Rural, Nossa Primeira Terra e Consolidação da Agricultura Familiar.

 

Como era o programa no governo FHC como está no governo LULA?

 

Quadro Comparativo:

Governo FHC

 

Governo LULA

Novo Mundo Rural

=

Plano Nacional de Reforma Agrária

Secretaria Nacional de Reforma Agrária

=

Secretaria Nacional de Reordenamento

Sistema de Crédito

=

Agrário

Programa Nacional de Crédito Fundiário

 Linhas de Financiamento:

1-Cédula da Terra

2-Banco da Terra

           3-Crédito fundiário de Combate ‘a Pobreza

=

Linhas de Financiamento:

1-Combate à Pobreza

2- Nossa Primeira Terra

3- Consolidação da Agricultura Familiar

  

 Como podemos observar, o Cédula da Terra, o Banco da Terra e o Crédito Fundiário do governo FHC estão contidos no atual Programa Nacional de Crédito Fundiário do MDA. Esses mesmos programas somente mudaram de nome, passando a se chamar Combate à Pobreza, Nossa Primeira Terra e Consolidação da Agricultura Familiar.

 Ou seja, são os mesmos programas apenas com pequenas modificações, mas a concepção central da mercantilização da terra permanece igual. De acordo com essa concepção, o Estado abre mão da sua obrigação de promover a desconcentração fundiária através da redistribuição da terra.

 A questão central está na privatização da terra através de financiamentos do Banco Mundial e da substituição da reforma agrária constitucional—baseada na desapropriação de latifúndios que não cumprem sua função social—pela propaganda do “mercado de terras”. Atualmente, as principais políticas para o meio rural estão baseadas na ideologia do Banco Mundial.

 Até o momento, o governo não divulgou uma avaliação oficial dos programas do Banco Mundial e muitas perguntas continuam sem resposta. Por exemplo:

- Qual o índice de inadimplência?

- Quantas pessoas não conseguem pagar as dívidas e abandonaram suas terras? 

- Qual o retorno econômico de cada um dos projetos?

- A renda obtida é suficiente para o pagamento dos empréstimos, para pagar a terra e para investimentos em produção?

- Já foi feita uma auditoria desses projetos? Qual o resultado?

- As denúncias de casos de corrupção apresentadas por organizações sociais foram investigadas? Como o governo irá responder?

- Como fica a situação dos atuais inadimplentes em relação às penalidades contratuais?

 Outra meta do plano do governo, que visa facilitar a implementação do “mercado de terras”, é o cadastramento e georeferenciamento do território nacional, com a regularização de 2,2 milhões de imóveis rurais e a titulação de 500.000 posseiros. Esse programa acaba com o conceito de terras públicas e comunitárias e pode contribuir com o aumento da concentração fundiária.

 Através da venda das posses, a titulação pode beneficiar latifundiários e grileiros, além de fortalecer os governos estaduais na concessão de terras públicas e devolutas para madeireiros e grandes empresas agrícolas. Na região amazônica e no cerrado, o georeferenciamento pode facilitar a privatização da terra e a expansão da monocultura em grande escala. O projeto permite ainda que o Banco Mundial tenha acesso a dados estratégicos sobre a malha fundiária brasileira.

 O território rural brasileiro possui uma imensa diversidade cultural e social, que inclui comunidades de acampados e assentados de reforma agrária, assalariados rurais, produtores familiares (parceiros, meeiros, posseiros e arrendatários), proprietários rurais minifundistas, populações tradicionais (ribeirinhas, pescadores artesanais, quilombolas), garimpeiros, povos indígenas, atingidos por barragens, comunidades extrativistas (quebradeiras de coco, seringueiros), entre outros.

 O programa de georeferenciamento deveria estar centrado nas demandas do conjunto dos atores sociais do campo, com a regularização das comunidades quilombolas, extrativistas e ribeirinhas, a aquisição de áreas para reassentamento dos atingidos por barragens, a demarcação e homologação das terras indígenas. Deveria também proporcionar aos posseiros o direito de uso da terra, com todas as condições sociais e econômicas asseguradas, ao invés da emissão do título de propriedade, que permite a venda e posterior reconcentração da terra. Dessa forma, se preservariam as terras dos posseiros como áreas públicas, de uso comunal.

 Ainda em relação à proposta de georeferenciamento do território rural, seria mais fácil e menos oneroso para o Estado estabelecer um prazo para que todos os latifundiários apresentassem o laudo de produtividade, o registro do imóvel e a área georeferenciada. Dessa forma, o ônus da prova seria invertido e passaria a ser de responsabilidade dos proprietários. Afinal, a aplicação de tal medida atingiria apenas 70 mil imóveis acima de 1.000 hectares, entre um total de mais de 4 milhões de imóveis. Estes 70 mil imóveis abrangem 43,6% da área total de terras cadastradas pelo INCRA.

 Apesar do Plano Nacional de Reforma Agrária dar prioridade às políticas do Banco Mundial, as organizações sociais esperam que o governo Lula cumpra seu compromisso de realização de uma ampla reforma agrária nos moldes constitucionais. Para isso, algumas das medidas necessárias seriam a revogação da medida provisória que impede a desapropriação de terras ocupadas, o estabelecimento do limite máximo das propriedades no Brasil e a desapropriação de todos os imóveis que não cumprem sua função social. 

 Neste contexto, é incompreensível que a responsabilidade pela formulação de políticas para o campo, incluindo o uso e a ocupação do território, seja delegada a uma instituição financeira internacional como o Banco Mundial. É necessário que o país possua políticas públicas compatíveis com a complexidade das demandas históricas, das experiências e formulações dos movimentos sociais protagonistas deste território, que lutam pela democratização da terra e por soberania.

  

*Marcelo Resende é geógrafo, ex-presidente do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e membro da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.

**Maria Luisa Mendonça é jornalista e membro da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.