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Relatórios


Em abril de 2004, a Ordem dos Advogados do Brasil decidiu ingressar no Supremo Tribunal Federal (STF) com ação para obrigar o Congresso Nacional a instalar Comissão para realizar auditoria da dívida externa. O Brasil enviou ao exterior, de 1979 a 2003, a título de juros e amortizações da dívida externa, US$ 170 bilhões a mais do que recebeu de empréstimos, e a dívida se multiplicou por quase cinco, tendo chegado a US$ 235 bilhões em 2003.

 

A Dívida Pública impede a Garantia dos Direitos Fundamentais

*Maria Lucia Fattorelli Carneiro

Introdução

 A Dívida Pública é o centro dos problemas nacionais. A maioria dos recursos públicos têm sido destinados ao pagamento dos juros escorchantes dessa questionável dívida, impossibilitando a realização de investimentos promotores de crescimento econômico ou o desenvolvimento das políticas sociais. As consequências são graves para toda a sociedade. A evidência mais recente é a falta de recursos para um salário mínimo digno, mas encontram-se comprometidos todos os serviços essenciais de saúde, educação, segurança, moradia, saneamento, reforma agrária, infra-estrutura e demais serviços públicos.

 O Brasil apresenta indicadores sociais alarmantes. Segundo a ONU, 47% da população sobrevive com menos de R$ 2 por dia e passa fome. Grande parte deste número é formada por crianças, que não têm acesso ‘a educação, saúde ou assistência social. O Brasil possui 13 milhões de desempregados, que não encontram trabalho em um quadro de pouquíssimos investimentos públicos e altas taxas de juros, determinadas pela nossa elevadíssima dívida pública.

 Em 2003, o Governo Federal destinou R$ 132 bilhões para o pagamento das dívidas externa e interna, enquanto apenas destinou R$ 70,8 bilhões à soma dos gastos com todas as áreas sociais listadas no quadro abaixo.

 Ou seja: foi destinada à dívida uma quantia maior que a soma de todos os gastos sociais listados, que incluem áreas fundamentais, como saúde, educação, assistência e reforma agrária.

 Assim, nos dias de hoje, a Dívida é o principal impedimento à garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, como, por exemplo, os definidos pelo Art. 6o da Constituição Federal:

 

“São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”

 

 A rudeza desta política econômica teve seu ápice com a decisão do governo, em maio de 2004, de propor um salário mínimo de R$ 260, alegando que não poderia pagar um benefício maior aos aposentados - que recebem de acordo com o valor do mínimo -  ao mesmo tempo em que destina a maior parte de seu orçamento para o pagamento da dívida.

 O salário mínimo de R$ 260 representa mais um claro desrespeito à Constituição, que estabelece, em seu Atigo 7o, que os trabalhadores urbanos e rurais têm direito ao salário mínimo "capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”. O salário necessário para o atendimento a essas necessidades era, segundo o Dieese, de R$ 1.532,18 em setembro de 2004, ou seja, 6 vezes maior que o valor proposto pelo governo.

 Por outro lado, os indicadores econômicos têm sido motivo de comemoração pelas autoridades governamentais, especialmente o cumprimento do “superávit primário” – isto é, o desvio de recursos para o pagamento da dívida - de 5,82% do PIB nos primeiros 8 meses de 2004, superando a arrojada meta de 4,25% acordada com o FMI! Aí está a raiz dos problemas sociais, pois para cumprir esse superávit recorde, o governo tem aumentado a carga tributária, de um lado, retirando recursos da sociedade e dificultando o funcionamento de vários setores da economia, e, de outro lado, tem cortado gastos em todas as áreas sociais.

Auditar a Dívida: questão de soberania

 A Auditoria da Dívida é um mecanismo que permite enfrentar esse problema de forma soberana, trazendo à tona toda a verdade sobre esse processo de endividamento que historicamente vem espoliando nossas riquezas e aprofundando as injustiças. Enquanto não equacionarmos o problema da dívida pública, continuaremos assistindo todos os dias à quebra de direitos fundamentais dos cidadãos, e o empobrecimento do nosso potencialmente rico país.

 Antes de tomarmos qualquer posição frente ao endividamento, precisamos saber: Como surgiu toda essa dívida pública? Quanto já pagamos, e quanto ainda devemos? Realmente devemos? Quem contraiu tantos empréstimos? Onde foram aplicados os recursos? Esse endividamento significou algum benefício para o povo brasileiro? O que foi feito diante de tantas ilegalidades e ilegitimidades desse processo? Essas são algumas perguntas que o grupo de estudos da “Auditoria Cidadã da Dívida” – Campanha Jubileu Sul - procura responder. O objetivo da auditoria é dissecar o processo de endividamento do País, revelar a verdadeira natureza da Dívida e, a partir daí, promover ações no sentido de reduzir o montante das Dívidas Interna e Externa.

 A história demonstra que a auditoria já foi um instrumento utilizado no Brasil, em 1931, por Getúlio Vargas, quando se obteve uma significativa redução do montante da dívida, conforme ensina o professor Reinaldo Gonçalves no texto “Lições da Era Vargas”, inserido no livro “Auditoria da Dívida Externa: Questão de Soberania”, editora Contraponto, 2003. 

 A auditoria da Dívida Externa está prevista na Constituição Federal do Brasil de 1988, no artigo 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, até hoje não cumprido. No ano 2000, mais de seis milhões de brasileiros participaram do Plebiscito da Dívida Externa e votaram NÃO à continuidade do pagamento da dívida sem antes realizar a auditoria prevista na Constituição Federal.

 Em abril de 2004, a Ordem dos Advogados do Brasil decidiu ingressar no Supremo Tribunal Federal (STF) com ação para obrigar o Congresso Nacional a instalar Comissão para realizar auditoria da dívida externa.

 Enquanto não ocorre a auditoria oficial, o grupo de trabalho da “Auditoria Cidadã” tem acessado documentos e realizado estudos, visando a resgatar o processo histórico e, simultaneamente, tem acompanhado o comportamento do endividamento e seus mecanismos na atualidade, especialmente o risco-país e os sucessivos acordos com o FMI. Todos os trabalhos realizados são amplamente divulgados por meio de publicações didáticas, tais como boletins, cartilhas, vídeo e livro, além da página na internet www.divida-auditoriacidada.org.br.

De onde vem esta dívida?

 Inúmeros são os questionamentos que o grupo da Auditoria Cidadã vem levantando, e que mereceriam ser aprofundados. Durante a década de 70, contratos haviam sido assinados pelos governos militares da época admitindo-se juros flutuantes, o que permitiu aos credores aumentarem livremente as taxas de juros. Na virada da década de 70/80, estas saltaram de patamares em torno de 5% ao ano para mais de 20% ao ano, provocando a multiplicação do valor da dívida externa. Esse aumento unilateral das taxas de juros é considerado ilegal pelo Direito Internacional.

 Assim, o Brasil enviou ao exterior, de 1979 a 2003, a título de juros e amortizações da dívida externa, US$ 170 bilhões a mais do que recebeu de empréstimos, e a dívida se multiplicou por quase cinco, tendo chegado a US$ 235 bilhões em 2003. Caso os credores não tivessem aumentado abusivamente as taxas de juros, a quantia que enviamos para o exterior teria sido suficiente para quitarmos a dívida em 1989, e ainda seríamos credores de US$ 100 bilhões.

 Relatório da Comissão Especial do Senado, de 1987, resgatado pela “Auditoria Cidadã”, de autoria do então senador Fernando Henrique Cardoso[1], analisou este processo, e reconheceu a co-responsabilidade dos credores internacionais pelo endividamento:

“O engajamento dos países em desenvolvimento nesse processo foi possibilitado, obviamente, pelos bancos internacionais, que concediam os empréstimos; endossado pelo FMI, que acompanhava a avaliava, anualmente, as economias dos seus membros; e, encorajado pelos governos dos países credores, que deram apoio político à estratégia de crescimento econômico com financiamento externo. Torna-se evidente, desta perspectiva, que a crise da dívida externa do Terceiro Mundo envolve a co-responsabilidade dos devedores e dos credores.” (página 6)

Em 1989, buscando o cumprimento da determinação Constitucional, foi formada outra Comissão, desta vez mista, formada por deputados federais e senadores. O  Senador Severo Gomes foi inicialmente designado relator, sendo posteriormente substituído pelo Deputado Luiz Salomão. O Relatório Final não chegou a ser votado na Comissão Especial, por falta de quorum. Em plenário, foi derrotado.

  É preciso destacar que o Senador Severo Gomes, em seu Relatório Parcial[2] fez uma brilhante análise das cláusulas dos acordos celebrados entre o governo brasileiro e os credores estrangeiros, demonstrando claramente a ilegalidade, a inconstitucionalidade e até grave ofensa ao patrimônio moral nacional. Mostrou que os acordos de renegociação da Dívida Externa deveriam ter sido submetidos à aprovação do Congresso Nacional, o que não aconteceu. Dentre outros absurdos, merecem destaque as cláusulas de “Renúncia à alegação de nulidade” e  Renúncia antecipada a qualquer alegação de soberania”.

 

Em seu relatório, Severo Gomes propôs:

“- Que a Mesa do Congresso Nacional promova as medidas necessárias, junto ao Supremo Tribunal Federal, para a decretação da nulidade dos acordos relativos à dívida externa que não observaram o mandamento constitucional do referendo do Legislativo.

- Que a Mesa do Congresso Nacional notifique o Poder Executivo para que promova as medidas judiciais cabíveis visando ao ressarcimento dos danos causados ao Brasil pela elevação unilateral das taxas de juros.

- Que o Congresso promova, junto ao Ministério Público, a responsabilização dos negociadores da dívida externa, pelas irregularidades já apuradas nesta fase dos trabalhos.” (Páginas 21/22) 

 Mais dramático ainda é o fato de que as importantes conclusões de ambos os relatórios citados, que denunciavam diversas ilegalidades e ilegitimidades contidas no processo de endividamento brasileiro foram completamente ignoradas pelos negociadores do Acordo da Dívida Externa, celebrado com os Bancos Privados, logo em seguida, de 1990 a 1994, através do qual se trocou a dívida contratual por títulos públicos  - processo denominado “securitização”. Assim, houve a transformação de dívidas altamente questionáveis em títulos ou bônus, negociáveis no mercado, processo que “pulverizou” a dívida, dificultando o processo de renegociação e de  auditoria desses débitos.

Em 1994, o Plano Real iniciou mais um ciclo de endividamento, por ter se ancorado na atração de capitais estrangeiros para o financiamento da enxurrada de importações da época. Para tanto, o governo também se endividou em moeda brasileira, emitindo títulos da Dívida Interna que remuneravam investidores brasileiros e estrangeiros com as taxas de juros mais elevadas do planeta. Devido principalmente a estas taxas de juros altíssimas, durante os oito anos de governo Fernando Henrique Cardoso, a Dívida Interna aumentou de R$ 59,7 bilhões, em 1994, para R$ 687 bilhões em dezembro de 2002, apesar dos volumosos pagamentos. No primeiro ano do governo Lula, a Dívida Interna aumentou para R$ 753 bilhões.

Outra ilegalidade que está nos custando muito caro é o mecanismo do risco-país, que tem se prestado a forçar o governo a seguir o receituário neoliberal e pagar, diariamente, para obter a “confiança dos mercados”. Para emprestar aos países do Terceiro Mundo, os credores estabelecem um adicional de juros sobre o que ganhariam emprestando aos Estados Unidos, país considerado de risco zero, pelo simples fato de poder emitir dólares (moeda aceita para o pagamento das dívidas externas dos países). Os credores alegam que esse adicional de juros serve para compensar o risco de não receberem de volta o que emprestaram para os países em desenvolvimento.

Essa exigência não encontra amparo em normas de direito internacional e também não obedece a uma lógica ou coerência matemática, pois todos os compromissos têm sido cumpridos religiosamente, sendo o Brasil um dos maiores remuneradores do capital estrangeiro durante todos esses anos. Esse “risco” é mais uma criação artificiosa e serve de instrumento apenas para a cobrança desse adicional. Se o risco jamais se implementou, por que continuar a pagar esse adicional? Na verdade, este tem sido um mecanismo de nos espoliar e chantagear: qualquer ameaça de descumprimento das políticas ditadas pelos credores – altas taxas de juros, reformas anti-sociais, privatizações  – o “risco” sobe, e temos de pagar mais para satisfazer o capital.

 Os Contratos de Endividamento

Recentemente, o grupo da Auditoria Cidadã obteve, junto ao Senado Federal, cópias dos contratos de endividamento externo brasileiro. O trabalho partiu da busca de dados iniciada ainda em 2001, visto que o Senado possui competência constitucional para aprovar todos os empréstimos externos contraídos pelo governo brasileiro. O grupo de trabalho recebeu, da Consultoria do Senado, planilha contendo 815 resoluções que versavam sobre financiamento estrangeiros ao país, do período de 1964 a 2001.

Relativamente ao período de 1964 a 1987, verificou-se que não constava, na listagem fornecida pela Consultoria do Senado, nenhum contrato pertencente à esfera da União, a responsável pela maior parcela do endividamento externo brasileiro. Em segundo lugar, muitos contratos de endividamento externo constantes na listagem foram localizados apenas em língua estrangeira, e muitos não foram sequer localizados.

Ao todo, foram localizados nos arquivos do Senado apenas 236 contratos de endividamento correspondentes às 815 resoluções listadas, sugerindo o fato que nem sempre os contratos eram disponibilizados para a análise dos senadores que, contudo, aprovavam as resoluções. Tais contratos encontrados representam US$ 42,7 bilhões, ou apenas 20% do aumento do endividamento ocorrido de 1964 aos dias atuais.

O resultado  da análise dos contratos localizados mostrou que boa parte da dívida não passou pelo crivo do Senado. A parcela de contratos disponibilizados contém cláusulas altamente lesivas à soberania nacional, conforme resumo transcrito para a tabela abaixo, que mostra a participação de cada cláusula dos contratos no valor total financiado.

 

Qual a Saída?

Precisamos romper com esse processo continuado de espoliação urgentemente. Somos um país potencialmente rico – em todos os sentidos. Nossas riquezas humanas, culturais, naturais e econômicas são incompatíveis com esse quadro de degradação social que estamos assistindo. Precisamos trabalhar para que esse potencial se concretize em favor do povo brasileiro, de forma que todos usufruam das riquezas e tenham vida digna. Segundo o "Atlas da Exclusão Social”[3], nos últimos 20 anos, como resultado do processo de endividamento público, as famílias mais ricas do Brasil - que recebem acima de R$ 10.982 mensais - aumentaram brutalmente a sua participação na renda nacional, de 20% para 33%. Por outro lado, nos últimos 10 anos, a renda da classe média caiu 17% e o número de pessoas integrantes de famílias pobres cresceu 18%. As 5 mil famílias mais ricas do Brasil - 0,01% do total – possuem um patrimônio equivalente a 46% do PIB (Produto Interno Bruto).

É por isso que o Brasil já ocupa o vergonhoso quarto lugar do mundo em pior distribuição de renda, perdendo apenas para Serra Leoa, República Sul Africana e Suazilândia. Essa posição é vergonhosa porque o Brasil tem tudo para ser uma grande potência. Até 1998 era a 8ª economia do mundo. Depois de aplicar o receituário neoliberal recessivo e priorizar gastos com dívida, já caiu para a 15a posição. Até onde vamos prosseguir com essa política suicida que só tem empobrecido a nação e aumentado as desigualdades sociais?

Diversos recursos jurídicos previstos no Direito Internacional, tais como “Força Maior” e “Dívida Odiosa” podem ser invocados como justificativa ao não pagamento de dívidas, nos casos em que estas comprometam a vida e desrespeitem os interesses da sociedade, como nos casos de dívida contraída por governos militares, dívidas que contenham cláusulas contratuais incertas – como juros flutuantes - ou ainda que levem ao chamado “Estado de Necessidade”.

É preciso lutar por Justiça e há vários caminhos a seguir nessa luta. Um deles certamente é o desmascaramento do processo de endividamento. O que está em jogo é a nossa verdadeira independência, até hoje não conquistada, pois somos prisioneiros e reféns dessa dívida que nos massacra. Além dessa grave ofensa à nossa soberania, os recursos sangrados pela dívida estão fazendo muita falta no combate à miséria. Estão impedindo os investimentos necessários em saúde, educação, segurança, reforma agrária, geração de empregos; estão ferindo a dignidade do nosso povo.

A Auditoria é um procedimento que pode ser adotado por outros países, de maneira articulada, respeitando-se as peculiaridades de cada país, mas fortalecendo a construção de uma alternativa viável, que efetivamente reduza o montante das dívidas que consideramos ilegais e ilegítimas.

 


* Auditora-fiscal da SRF-MF, presidente do UNAFISCO Sindical - Sindicato Nacional dos auditores fiscais da Receita Federal - e Coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida pela Campanha Jubileu Sul.

[1] SENADO FEDERAL (1987) Relatório da Comissão Especial do Senado Federal para a Dívida Externa – 1987/1988. Relator: Fernando Henrique Cardoso. Biblioteca do Senado, 336.34.B823 RDE

[2] CONGRESSO NACIONAL (1989) Relatório da Comissão Mista Destinada ao Exame Analítico e Pericial dos Atos e Fatos Geradores do Endividamento Externo Brasileiro (Art. 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias). Relator: Severo Gomes. Resumo comentado disponível no sítio www.divida-auditoriacidada.org.br.

[3] POCHMANN, Márcio (2004) Atlas da Exclusão Social - Os Ricos no Brasil, Cortez Editora. Trabalho feito com base em informações dos Censos de 1980 e 2000 e da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios).