Passaram-se
mais de dois anos, 75% do mandato e o tal Plano Nacional
de Reforma Agrária não saiu do papel, de novo.
Até agora, menos de cem mil famílias foram realmente
assentadas. Milhares de famílias se amontoam decepcionadas debaixo de
lonas pretas ao longo das estradas, esperando.
O Incra continua desaparelhado. Foram contratados
apenas 130 dos 1.300 servidores prometidos. Não há
compra direta dos produtos dos assentados.
Os convênios de assistência técnica são a
conta-gotas. O
Plano está morto.
A
novela da reforma agrária e a falta de compromisso real
João
Pedro Stedile
Vou
contar mais um capítulo da novela da reforma agrária, sempre
postergada. Embora ninguém tenha coragem de ser contra -
afinal todos os países modernos garantiram o direito
republicano do acesso à terra à sua população, ainda nos séculos
XIX e XX, e fizeram suas reformas agrárias -,
quero contar apenas alguns capítulos recentes dessa
novela.
I-
A promessa
Durante
as eleições de 2002, os movimentos camponeses e os
militantes em geral que atuam nos movimentos e pastorais
sociais no campo se empenharam com todas suas energias para
eleger o Presidente Lula.
Havia a convicção de que a vitória do presidente
Lula liberaria as forças do campo, e que com seu compromisso
histórico teríamos finalmente a oportunidade de fazer a
reforma agrária.
Vínhamos
de oito anos de neoliberalismo na agricultura, garantido pelo
governo FHC, que só aumentou a concentração da propriedade
da terra. As
fazendas com mais de mil hectares agregaram nesse período
mais 30 milhões de hectares ao seu patrimônio, além de
outras conseqüências sociais, como aumento do desemprego, do
êxodo rural e da pobreza no campo.
Além
da simbologia e do compromisso histórico de Lula, havia o
compromisso formal do programa de governo, distribuído
fartamente, que se comprometia com uma ampla reforma agrária.
A reforma agrária do governo Lula estaria baseada
num plano nacional de reforma agrária, que contribuiria para
democratizar a propriedade da terra e a fixação do homem no
campo. E promoveria um novo modelo de desenvolvimento rural,
baseado na soberania alimentar, no mercado interno e na precaução
em relação a sementes transgênicas, que seriam evitadas. O
programa justificava ainda que a reforma agrária
seria fundamental para o governo alcançar a meta de geração
de 10 milhões de novos empregos, em apenas quatro anos.
II-
O plano nacional de reforma agrária
O
governo levou todo o ano de 2003 para apresentar um plano
nacional de reforma agrária, que somente saiu da gaveta
porque os movimentos fizeram uma manifestação em Brasília.
Finalmente, contrariando a oposição clara do Ministério da
Fazenda e de outros ministros do agronegócio, o presidente
assinou a meta que previa o assentamento de 400 mil
famílias de sem-terra, nos quatro anos, priorizando as famílias
acampadas. O
Plano previa ainda utilizar o imposto como forma de pressão,
regionalizar as desapropriações, estimular as cooperativas,
a assistência técnica e se comprometia com a compra
direta dos produtos dos assentados. O Plano foi
assinado pelo presidente da República em 21 de
novembro de 2003 na presença de 5 mil sem-terras, televisão
e muitas testemunhas. Festa
entre os movimentos camponeses.
III-
A Marcha dos sem-terra a Brasília
Passaram-se
mais de dois anos, 75% do mandato e o tal Plano não saiu
do papel, de novo. Até
agora, menos de cem mil famílias foram realmente assentadas.
Milhares de famílias se amontoam decepcionadas debaixo
de lonas pretas ao longo das estradas, esperando.
O Incra continua desaparelhado. Foram contratados
apenas 130 dos 1.300 servidores prometidos. Não há
compra direta dos produtos dos assentados.
Os convênios de assistência técnica são a
conta-gotas. O
Plano está morto.
O
MST decide então fazer uma marcha de Goiânia a Brasília,
com mais de 11 mil militantes de todo o Brasil.
Caminhamos 17 dias, 240 quilômetros com muita disciplina e
sacrifício. Chegamos a Brasília no dia 17 de maio de 2005.
Nos reunimos ao longo da marcha com 15 ministros.
Mil promessas e afagos.
E durante uma tarde e noite ficamos no Palácio, para
arrancar mais um compromisso.
O
governo assinou conosco os seguintes compromissos:
manter a meta dos 400 mil;
liberar recursos para a reforma agrária que tinha
sido cortados pelo Ministério da Fazenda; priorizar o
assentamento das famílias acampadas; publicar portaria que
ajustasse os índices de produtividade que são ainda da
década de 70; reestruturar o Incra para melhorar seu
desempenho; liberar cestas básicas; reformular o crédito
rural; e ajustar um programa do BNDES para a agroindústria
dos assentados.
Voltamos
para a casa felizes. A marcha foi vitoriosa. A imprensa de
direita chiou. Os sem-terra arrancaram tudo o que queriam. O palácio é refém
do MST. Ledo
engano. Passaram-se
mais três meses e o governo cumpriu apenas dois dos
sete compromissos.
Compromisso
assinado pelo Ministro Rosseto a mando do Presidente da
Republica.
IV-
A velhinha de Taubaté morre!
Em
quem os sem terra devem acreditar: no programa da campanha,
assinado pelo ministro Palloci, no Plano Nacional de Reforma
Agrária, que é lei; no
documento dos sete compromissos? E a quem devemos reclamar?
O Papa já morreu. O bispo, Dom Tomás (Balduíno,
presidente da CPT) não acredita mais no governo.
O padre desanimou.
Frei Betto também já desistiu. Só tínhamos a
velhinha de Taubaté para ir nos consolar. Mas aí o (Luís Fernando) Veríssimo a enterrou.
Certamente
a novela vai continuar por muitos capítulos,
mas uma coisa é certa: os sem-terra estão cansados de
serem enrolados. E
convidamos as autoridades tão
identificadas com os pobres, e que se emocionam
facilmente, a
irem visitar qualquer um dos 500 acampamentos, com mais de 130
mil famílias acampadas em todo o Brasil.
Recomendem a elas em quem devem acreditar.
João Pedro Stedile é
membro da direção do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST) e da Via Campesina Brasil
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