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Relatórios


Toda a ação do governo federal na questão energética tem sido no sentido de criar as melhores condições e remover todos os obstáculos para os investimentos do grande capital no setor, garantindo às empresas a possibilidade de lucros astronômicos com a produção e venda de energia elétrica no Brasil.

 

Ditadura na barranca dos rios brasileiros:

perseguição e criminalização de militantes da luta contra as barragens

 Eduardo Luiz Zen*

 Recentemente, temos presenciado uma forte ofensiva das empresas do setor elétrico contra militantes sociais e defensores dos direitos humanos das populações atingidas por barragens. Na medida em que a resistência das comunidades ribeirinhas contra o atual modelo energético vai se tornando mais forte, intensifica-se também as ações de força da polícia contra os atingidos, não só nas reintegrações de posse dadas pela justiça, mas principalmente nas ações violentas para dispersar manifestações em rodovias, nas invasões e destruição de acampamentos e até nas audiências públicas oficiais para discutir as barragens, quando os atingidos são impedidos de se expressar ou expulsos de forma violenta do local da audiência. A ação policial tem aumentado de maneira significativa também nas ações de despejos, quando os atingidos se recusam a abandonar suas terras e casas, que ficarão embaixo dos lagos das barragens. Nestes casos, a polícia se encarrega de expulsar a família de sua casa, que logo é demolida ou incendiada, como forma de impedir que os moradores retornem.

 Em 2004 uma comunidade inteira atingida pela barragem de Candonga, em Minas Gerais, passou por esta situação. Na vila de São Sebastião do Soberbo, dezenas de famílias resistiram durante semanas contra as investidas da polícia militar com apoio da Polícia Federal para efetuar o despejo de todos. No final, com aumento do efetivo policial ocupando a vila, as famílias não puderam conter as retroescavadeiras que destruíram suas casas. Perto dali, no dia 8 de março de 2005, 35 pessoas ficaram feridas durante a realização de uma audiência pública para discutir a construção da barragem de Jurumirim, no município de Rio Casca. Mulheres e crianças foram espancadas pela polícia, que também manteve presos por um dia, seis pessoas apontadas como líderes do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). No estado do Pará, tropas do Exército com autorização para agirem como polícia, chegaram a ser utilizadas no mês de março de 2005, para “proteger” as instalações da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, Pará, que há duas décadas expulsou 30 mil pessoas de suas terras, a maioria sem reparação até hoje. Mais recentemente, no dia 5 de outubro de 2005, 50 policiais invadiram e destruíram completamente um acampamento de agricultores próximo ao Rio Canoas, na região atingida pela barragem de Campos Novos em Santa Catarina. Após esta ação, a tropa dirigiu-se a outro acampamento localizado próximo ao canteiro de obras da usina, onde houve confronto e um agricultor foi preso.

 Estes são apenas alguns exemplos do tratamento que as populações ribeirinhas recebem, quando estão organizadas e em luta pela garantia dos seus direitos. Mas o que mais chama atenção na tática do governo e das empresas do setor elétrico para combater a organização e resistência das populações atingidas por barragens são as perseguições políticas, difamação, ameaças e tentativa de criminalização das lideranças e apoiadores desta luta.

 Um levantamento preliminar feito na bacia do Rio Uruguai, sul do país, mostrou que, nesta região, 107 atingidos por barragens respondem a processos civis ou criminais demandados pelas empresas construtoras ou por outros agentes a seu serviço. As principais lideranças do MAB na região sul do Brasil respondem sozinhas a mais de 15 processos cada uma. Os autos dos processos judiciais somam mais de 30 mil páginas. Para 36 atingidos processados em ações criminais são pedidas penas que vão de 1 a 30 anos de prisão por participarem do movimento e 9 pessoas respondem a ação onde se pede indenização de R$ 1 milhão de reais por danos na Usina de Campos Novos. Além disso, advogados e apoiadores do MAB também estão na lista de processados, como forma de coagi-los a pararem de apoiar a luta dos atingidos.

 A maioria dos processos se devem a ações coletivas de pressão do MAB, como marchas, bloqueios de estradas e ocupação de canteiro de obras de barragens. Grande parte das mobilizações resultaram em conquistas concretas, como reassentamento para centenas de famílias que estavam sendo excluídas pelas empresas construtoras, mostrando que os manifestantes estavam certos nas suas reivindicações, enquanto as empresas construtoras insistiam em negar a reparação dos direitos que estavam usurpando. 

 Toda esta tentativa de criminalização tem como objetivo geral enfraquecer a luta contra as barragens. Para isso, os processos judiciais cumprem o papel de intimidar os atingidos ou seus apoiadores, para que abandonem a organização e parem de lutar. Os processos também mantêm os dirigentes ocupados, levando-os a usarem parte significativa de seu tempo em se defenderem, quando poderiam estar organizando a resistência. A criminalização também busca desqualificar os atingidos perante a opinião pública, tachando-os de marginais e bandidos. Para isso, as empresas construtoras contam com valioso apoio da mídia. Em última instância, o objetivo final dos processos é levar à prisão os principais dirigentes e militantes da luta contra as barragens.

 Grande parte das acusações aos processados são apologia e incitação ao crime, ameaça, danos materiais, entre outros. No entanto, o que mais chama a atenção são as acusações de “formação de quadrilha voltada à prática de extorsão”. Na cabeça de parte do judiciário brasileiro, movimento social é o mesmo que “quadrilha”. O exercício de pressão política de forma coletiva e organizada para garantir seus direitos seria igual a “prática de extorsão”. Esta foi a análise da juíza Adriana Lisboa, quando decretou a prisão preventiva de 10 lideranças do MAB na região da barragem de Campos Novos, Santa Catarina, ocorrida em março de 2005. Para ela, se os atingidos estão organizados e se mobilizam em busca de reassentamento, é porque formaram uma quadrilha e estão a extorquir a empresa que constrói a barragem.

 As prisões decretadas pela juíza Adriana Lisboa foram solicitadas pelo promotor de justiça de Campos Novos, Ricardo Paladino, com o argumento de evitar a realização de manifestações por ocasião do 14 de março, Dia Internacional de Luta Contra as Barragens e também, do 22 de março, quando se comemora o Dia Internacional da Água. A operação militar para efetivar as prisões ocorreu na madrugada de sábado, dia 12 de março de 2005, e envolveu cerca de 60 policiais militares. Neste dia foram presos cinco pequenos agricultores e foram apreendidos 16 veículos, entre os quais 6 fuscas, 1 chevette, 1 moto, 1 caminhão boiadeiro e 1 ônibus escolar, utilizados para “o cometimento de ilícitos”, segundo o promotor Ricardo Paladino. Em função da apreensão, 55 crianças da rede estadual que se beneficiavam do transporte escolar não puderam ir à escola nos dias seguintes.

 Outro trabalhador rural foi preso na segunda-feira dia 14 de março, quando se dirigiu à delegacia de Campos Novos, atendendo a solicitação deixada no sábado por policiais que não o localizaram em sua casa, que foi arrombada e parcialmente destruída.

 Chama a atenção o número do efetivo policial destacado para realizar as prisões e a busca e apreensão. Eram 20 viaturas com cerca de 60 policiais fortemente armados, que chegaram de madrugada percorrendo as pequenas propriedades onde moram os agricultores. Arrombaram portas, destruíram móveis, quebraram veículos, estragaram barracos de lona e rasgaram faixas com os dizeres “águas para a vida, não para a morte”. A juíza Adriana Lisboa decretou apreensão das armas em mãos dos agricultores. Assim consta nos autos da operação policial a apreensão das seguintes “armas”: 1 resma com 500 folhas de papel A4; 56 cadernos de formação n.º 5 “A organização do MAB”; 8 cadernos n.º 6 “A crise do modelo energético”; diversos panfletos informativos referentes ao MAB; 1 caixa de giz branco; 3 canetas esferográficas azuis e 1 preta; 1 caixa de som com aparelho CD, amplificador e tweeters. A aparelhagem de som era utilizada durante as manifestações populares.

 Os policiais militares instalaram terror psicológico nos familiares daqueles com prisão preventiva decretada que não eram encontrados. Mantiveram mulheres e crianças detidas em suas próprias residências por horas ameaçando-as e injuriando-as de diversas formas. Muitos dos agricultores foram presos quando trabalhavam a roça de onde tiram o sustento de suas famílias, sendo agredidos física e moralmente pelos policiais militares catarinenses.

 Os pequenos agricultores, sem serem informados dos motivos de sua prisão e dos crimes que lhes eram imputados, depois de passarem pela delegacia de Campos Novos, foram conduzidos até o Presídio Regional de Joaçaba, distante cerca de 120 km da região. Neste caso, a ação penal contra os “criminosos” só seria proposta em 21 de março, dez dias após a prisão para justificar a mesma, ou seja, sequer havia processo criminal contra os presos.

 Vinte e três dias após a prisão, considerando o fato de que os denunciados informaram “que não pretendem promover atos contra a ordem pública”, as prisões dos seis presos foram revogadas. Os quatro outros “procurados” da justiça ficaram cerca de 15 dias detidos entre o fim de abril e o início de maio de 2005, quando se apresentaram espontaneamente para serem presos, e após seriam soltos pelas mesmas razões.

 É importante destacar que a mesma Juíza que decretou as prisões tem hoje em mãos um relatório da Fundação de Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (Fatma), responsável pelo licenciamento da Usina de Campos Novos, onde consta levantamento de documentação caso a caso de 237 famílias atingidas que participavam dos protestos do MAB, comprovando  oficialmente que são atingidas e que, portanto, devem receber reparações. No entanto, a juíza Adriana Lisboa nada faz para exigir que os proprietários da barragem, o Banco Bradesco, o Grupo Votorantin, entre outros, indenizem as famílias. Quando decretou as prisões, chegou a descrever as famílias como “garimpadas em outras localidades para reivindicarem direitos que não possuem”. Depois que recebeu o relatório da Fatma, sem voltar atrás na sua tentativa de desqualificar as reivindicações dos atingidos e em resposta ao insistente pedido da comunidade para que tome providências e garanta os direitos das famílias, respondeu que no Brasil não há lei que obrigue as empresas construtoras de barragens a reparar os afetados pelo seu empreendimento e que portanto ela não pode fazer nada.

 Os fatos ocorridos em Campos Novos são apenas um dos desdobramentos de um processo bem mais amplo, que levam o MAB a denunciar à sociedade brasileira a existência de uma verdadeira ditadura na barranca dos nossos rios. Esta ditadura se materializa na retirada e expropriação dos meios de vida e subsistência das populações não-proprietárias que são afetadas por uma represa; na negação sistemática dos direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais destas populações; na incapacidade total do Ministério Público e do poder judiciário em garantir estes direitos; na utilização da violência policial e até de tropas do Exército para guarnecer os canteiros de obras e dispersar manifestações populares contra as barragens; na perseguição política, tentativas de criminalização e prisões arbitrárias de militantes sociais e líderes que organizam a resistência das populações. Além disso, os processos de licenciamento ambiental das obras são marcados por irregularidades e fraudes, onde impera a política do fato consumado em desacordo com a legislação vigente no país. As decisões sobre as liberações das obras não são técnicas e nem acontecem em ambiente democrático, são decisões políticas tomadas por governos submissos aos interesses das grandes empresas.

 É importante levar em conta também que o Brasil não possui uma legislação adequada que defina o que é o atingido por barragem. Também não há qualquer marco legal capaz de abranger as especificidades do deslocamento de populações para dar lugar aos lagos das barragens. Apesar dos inúmeros estudos e debates técnicos e científicos feitos sobre o conceito de atingido e das insistentes tentativas do MAB nas negociações com o governo federal, este não demonstra qualquer interesse em regulamentar a questão. Nota-se que uma proposta formulada pelo próprio governo, através de uma comissão interministerial formada por 15 ministérios para tratar do assunto, circula há mais de dois anos pelo Ibama, Ministério das Minas e Energia e Casa Civil. No entanto, até o momento não foi regulamentada e parece não haver interesse para isso. Neste caso, pesa o medo do governo federal em afugentar investidores, que poderiam ficar assustados com a obrigatoriedade de repararem todas as famílias atingidas pelos seus empreendimentos, o que certamente aumentaria os custos das obras.

 Toda a ação do governo federal na questão energética tem sido no sentido de criar as melhores condições e remover todos os obstáculos para os investimentos do grande capital no setor, garantindo às empresas a possibilidade de lucros astronômicos com a produção e venda de energia elétrica no Brasil.

 O fato de não haver marco legal ou a definição oficial de um conceito de atingido deixa o caminho livre para as empresas construtoras definirem elas próprias, de acordo com a realidade em cada obra, quem são os atingidos por barragens e qual o tamanho das reparações que serão distribuídas.

 Geralmente, o conceito de atingido definido pela empresa construtora é igual ao proprietário de terra com título de posse devidamente regularizado. Com raras exceções, a empresa construtora da obra declara como passível de reparação alguém mais que não esteja neste critério. Será a própria empresa que vai estabelecer o valor da indenização para os proprietários, que, caso não concordem com ela, poderão ingressar na justiça em processos que demoram décadas para serem concluídos, em grande parte das vezes, muito tempo depois da barragem já estar em funcionamento. A lentidão da justiça e a possibilidade de enfrentar grandes escritórios de advocacia que trabalham a serviço da empresa na disputa judicial fazem com que os proprietários acabem aceitando a oferta da construtora.

 Ocorre que a realidade do interior do Brasil não é necessariamente uma realidade onde todas as terras estejam demarcadas e todos os camponeses que nela trabalhem possuam documentação pessoal que poderia comprovar a posse da terra. Muito pelo contrário. As barrancas dos rios brasileiros, de maneira especial, tem historicamente servido de refúgio para diversas populações tradicionais. Por seu terreno acidentado, geralmente foi na barranca dos rios onde o latifúndio avançou menos e onde concentram-se uma grande quantidade de camponeses, trabalhadores sem terra, posseiros, arrendatários, meeiros, comunidades indígenas e quilombolas, justamente as mais vulneráveis a ação das empresas.

 Grande parte destas populações vivem há gerações na barranca dos rios, tirando seu sustento de pequenos roçados, da pesca, do garimpo e da criação de animais. Na maioria das vezes, possuem poucos bens materiais ou benfeitorias na terra onde vivem. Quando um funcionário da empresa construtora de uma barragem chega no local para avaliar o valor da indenização devida à família e encontra uma casa de pau-a-pique, muito comum no interior do Brasil, irá estabelecer o valor monetário de acordo com o valor material daquele imóvel. Por isso, são tão comuns indenizações de 800, 700, 300, 100 ou mesmo 30 reais distribuídas para os atingidos, que, com esse dinheiro, devem se mudar e reconstruir a vida em outro local.

 Vemos, então, que estão abertos uma disputa e um campo de conflito nas regiões onde se constroem barragens. De um lado, o conceito de atingido definido pela empresa construtora, que geralmente aceita reparar apenas os proprietários regularizados. De outro lado, as populações atingidas que exigem reparações justas para todos os que foram afetados de alguma forma pela barragem, seja a montante ou a jusante do murro, na área alagada ou não.

 É durante este processo que se revela a força das grandes empresas, que contam com o Estado ao seu lado e, através de práticas ditatoriais, tentam destruir a organização dos atingidos. A história tem demonstrado que nessa disputa assume um papel fundamental a capacidade de unidade, organização, articulação e a força das mobilizações e lutas das comunidades atingidas. Somente assim há possibilidades de se garantir minimamente os direitos destas populações e forçar as empresas construtoras a ampliarem o conceito de atingido, garantindo reassentamento para mais famílias e reparações justas para todos. Nas regiões onde não houve resistência organizada das populações, a ditadura foi brutal e o destino das famílias atingidas acabou sendo a miséria da periferia das grandes cidades.



* Eduardo Luiz Zen é mestrando em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e integrante da coordenação do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).