Os
procedimentos da escravização moderna não devem nada ao
acaso: são metodicamente padronizados de Alagoas a Mato
Grosso, do Rio de Janeiro ao Pará, da Bahia à Rondônia, do
Maranhão e Piauí ao Tocantins e Goiás, a ponto que se pode
falar em sistema da escravidão moderna. Na ponta da linha,
temos uma população vulnerável, sem acesso à educação,
à terra, a oportunidades de trabalho; no seu caminho, vários
intermediários, agenciadores ou gatos, transportadores, donos
de pensão, corroborando a ilusão de uma promessa
mirabolante, passando para frente uma dívida que só começará
a ser cobrada lá no mato, na outra ponta da linha,
principalmente neste arco do desmatamento onde ocorrem em
torno de 80% dos casos desvendados: Maranhão, Tocantins, Pará,
Mato Grosso.
A
face hedionda do modelo de desenvolvimento ora imposto –
sobre o trabalho escravo
Frei
Xavier Plassat*
Como
ensina a secular experiência indígena e camponesa, a terra
é muito mais que terra. Passados 500 anos de sua brutal invasão,
a terra de trabalho e de fraterna vivência continua reduzida
à terra de negócio e de matança.
Não
foi por acaso que a questão da escravidão tem sido trazida
à luz pelas sucessivas, teimosas e proféticas denúncias da
Comissão Pastoral da Terra desde 1972 e pelo grito do bispo
Pedro Casaldáliga. Tudo indica, desde sempre, um vínculo
estreito e tipicamente brasileiro entre apropriação da terra
e aprisionamento do trabalho.
Cento
e dezessete anos após sua teórica abolição, a escravidão
perdura no Brasil. Esta é uma realidade que não se pode
negar. Os mais de 18 mil trabalhadores retirados da servidão
pelas equipes do Grupo Móvel, desde sua criação em 1995, não
foram resgatados por motivo fútil. Foram, sim, encontrados em
situação subumana, submetidos a condições de trabalho, de
alojamento, de alimentação, de confinamento que, em muitos
casos, eram bem piores que as do gado encontrado no mesmo
local. Temos provas disso todo santo dia. Na CPT, recebemos
diariamente trabalhadores fugitivos dessas fazendas, trazendo
suas denúncias de situações que nos deixam muitas vezes sem
voz.
Em
11 de março de 2003, 115 anos após a Lei Áurea, o Estado
brasileiro assumiu o compromisso de erradicar a escravidão.
Meta presidencial e compromisso que nos engaja a todos, frente
à sociedade nacional. Frente à comunidade internacional também:
simultaneamente ao lançamento do Plano nacional, o presidente
Lula assinou o Termo de Solução Amistosa no caso José
Pereira, pelo qual o Brasil assume responsabilidade pelo
ocorrido no passado e compromissos de mudanças perante a
Corte Interamericana de Direitos Humanos, da OEA. O lançamento
recente - em Brasília - do relatório mundial da OIT “Uma
Aliança Global contra o Trabalho Forçado” confirma a
gravidade e a importância desta questão para a comunidade
internacional. Erradicar depois de tantos anos de acomodação
e aberta tolerância é um desafio e tanto, pois sabemos que
tirar um escravo do cativeiro não erradica a escravidão. Senão,
como explicar que a libertação de tantos escravos nos últimos
anos ainda não tenha resultado em nenhum recuo dessa chaga?
Os
procedimentos da escravização moderna não devem nada ao
acaso: são metodicamente padronizados de Alagoas a Mato
Grosso, do Rio de Janeiro ao Pará, da Bahia à Rondônia, do
Maranhão e Piauí ao Tocantins e Goiás, a ponto que se pode
falar em sistema da
escravidão moderna. Na ponta da linha, temos uma população
vulnerável, sem acesso à educação, à terra, a
oportunidades de trabalho; no seu caminho, vários intermediários,
agenciadores ou gatos, transportadores, donos de pensão,
corroborando a ilusão de uma promessa mirabolante, passando
para frente uma dívida que só começará a ser cobrada lá
no mato, na outra ponta da linha, principalmente neste arco do
desmatamento onde ocorrem em torno de 80% dos casos
desvendados: Maranhão, Tocantins, Pará, Mato Grosso.
Trabalho
escravo não é qualquer situação de trabalho degradante,
embora degradar uma pessoa pelo trabalho já seja meio caminho
andado na sua escravização. É de bom tom hoje em dia glosar
sobre a pretensa falta de conceituação do trabalho escravo.
Jogar dúvidas a esse respeito é fazer de conta que não
temos leis para apontar com clareza o que vem a ser escravidão.
Convenções 29 (de 1930) e 105 (de 1957) da OIT, bem como
nosso Art.149-CP, prontamente atualizado em dezembro de 2003,
trazem com muita clareza o conceito de trabalho escravo
contemporâneo: “Reduzir
alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o
a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer
sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer
restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de
dívida contraída com o empregador ou preposto. E ainda: quem
cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do
trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou
se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador,
com o fim de retê-lo no local de trabalho.” No trabalho
escravo, muito além dos vários ilícitos trabalhistas, é a
liberdade e a dignidade humana, direitos humanos fundamentais
que são comprometidos.
As
situações encontradas são geralmente o produto dos
seguintes ingredientes: promessa enganosa + trabalho forçado
+ condições degradantes + não pagamento de salários + dívida
fabricada + ameaças + impedimento de sair. A dívida
fabricada, frequentemente aumentada pela pressão ostensiva,
senão armada, e o confinamento garantem a sujeição temporária
da mão-de-obra até a conclusão da empreita. “O
fazendeiro e os gatos fazem a cabeça do escravo. Ele acredita
que deve dinheiro no barracão, tem de pagar, pois não é
decente fugir. A fuga (que o fazendeiro chama de calote) é
moralmente condenável. Os escravos das fazendas brasileiras
padecem da síndrome de Lula-Palocci. Eles também acreditam
que não há outro jeito senão pagar”. Ônibus de turismo de
fachada saem diariamente de Alagoas para Mato Grosso
carregando levas de cortadores de cana iludidos; pensões de Açailândia
(Maranhão), Marabá ou Redenção (Pará), Araguaína
(Tocantins), prosperam no fornecimento de braços contratados
para desmatar a Terra do Meio, roçar pastos e juquira no
interior do Pará, Tocantins, Maranhão, ou catar raízes para
lá de Lucas do Rio Verde ou de Sinop (Mato Grosso) para
colher algodão no Baixo Araguaia mato grossense, ou laborar
nas carvoarias do Maranhão, Pará e Tocantins, que abastecem
nossa siderurgia. Peões de trecho (já sem outra referência
a não ser o caminho da fazenda), migrantes temporários do
Nordeste, e peões moradores rivalizam pela obtenção dessas
empreitas miseráveis.
Como
explicar a permanência deste moderno tráfico humano?
Ainda
longe de responder à amplitude da demanda, o indispensável
e, não raro, heróico resgate realizado pelos fiscais do
Grupo Móvel atende a uma necessidade meramente emergencial. Não
trata o problema da escravização. Não ataca o sistema da
escravidão moderna. Este sistema de escravidão moderna
embasa-se em três pilares: a miséria de milhões de
brasileiros, a ganância de milhares de oportunistas sem escrúpulo,
a impunidade selada pela elite que se utiliza deste crime. Ele
se perpetua pela reprodução da miséria da exclusão da
terra e do emprego, pelo império do lucro hoje concedido à
nova menina dos olhos com codinome ‘agronegócio’ e pela
cumplicidade do legislativo e do judiciário em manter impunes
os infratores, vários deles oriundos das suas próprias
fileiras. Identificar
esses três pilares da escravidão é simultaneamente definir
os remédios que poderão romper com este secular ciclo
vicioso.
No
Brasil, 16,5% das famílias com filhos de 5 a 17 anos têm
pelo menos um deles trabalhando. Essa percentagem chega a 27%
no Piauí, 25% no Tocantins e Maranhão, três estados entre
os maiores fornecedores de mão-de-obra escrava. Noventa por
cento dos escravos modernos são analfabetos; 90% vêm do
trabalho infantil; 80% não têm certidão de nascimento; No
Piauí, 36% dos trabalhadores migrantes sustentam família de
mais de oito pessoas, segundo pesquisa feita pela CPT, a qual
também informa que 72 % das famílias de migrantes têm renda
de até um salário mínimo e 99% de até dois; metade destes
trabalhadores migram por absoluta falta de emprego ou de
recursos para sustentar a família. Para permanecer pedem uma
terra e um trabalho (75%). Ou, como cita o Padre Ricardo
Rezende, autor de uma pesquisa sobre o tema recém publicada:
“Ao questionar
um jovem piauiense reincidente notório do trabalho escravo,
se, tendo a oportunidade de ganhar um salário mínimo, o
jovem se manteria em seu município, ouviu a seguinte
resposta: -
Quanto é um salário mínimo? - 160 reais (o valor na época)
- Por trinta reais eu já
ficava.”
No
estado do Tocantins, que ganhou em 2004 o segundo lugar no
ranking brasileiro das libertações realizadas, vejamos por
exemplo esses 60 trabalhadores libertados em abril de 2004 da
fazenda Caracol, estabelecida em terra da União, no município
de Cachoeirinha: eram sem-terra acampados em beira de estrada,
nos acampamentos União e Olho d´Água, há anos esperando o
hipotético cumprimento da promessa de reforma agrária.
Vejamos ainda Rael e Gelquison, menores de idade, e seus 27
companheiros, libertados da escravidão, faltando quatro dias
para celebrar o último Natal. Um gato – diabolicamente
batizado Natalino -
os havia aliciado em Campos Lindos, Tocantins, uma dessas
novas capitais da soja, para catar raiz em nova lavoura de grãos.
Ou, ainda, no Mato Grosso, o trabalhador Cícero, que, junto
com 96 companheiros, saiu de Barra de Santo Antônio, Alagoas,
acreditando na promessa mirífica de poder ganhar até R$ 200
por dia no corte da cana em Lambari d´Oeste, Mato Grosso, e
acabou, após dois meses de trabalho penoso, com miseráveis
R$ 596, menos a dívida da passagem de R$ 200.
Como
não ver o rastro da ganância no desenfreado e predador
desmatamento produzido pelo avanço descontrolado do agronegócio,
incorporando a cada mês milhares de quilômetros quadrados de
cerrados e de florestas, e auto-declarado isento de qualquer
suspeita por conta dos eminentes serviços prestados à balança
comercial do país?
Com
roupagem modernizada, é o velho conhecido latifúndio ditando
suas regras ao resto da sociedade, definindo qual deve ser o
modelo de desenvolvimento agrícola do país (monocultura de commodities
para exportação, erradicando a agricultura camponesa que
mesmo assim teima em abastecer mais de 60% da mesa do
brasileiro), e impondo qual deve ser o patamar da dignidade
laboral.
No
Mato Grosso e Pará, que, juntos, respondem por 75% do
desmatamento brasileiro, os mesmos municípios que lideram o
ranking do desmatamento são campeões da escravização: São
Félix do Xingu, Tapurah, Novo Repartimento, Marabá,
Brasnorte, Novo Ubiratã, Querência, Gaúcha do Norte,
Aripuanã, Santana do Araguaia. Na guerra internacional pela
ocupação do mercado mundial da carne, da soja, do algodão,
do açucar, do aço, um certo Brasil continua guerreando com
sua secular arma secreta: a escravização de milhares de seus
cidadãos, como forma abjeta de baratear seus custos, enquanto
outro Brasil – o mesmo, quiçá – tenta derrubar na
Organização Mundial do Comércio (OMC) os subsídios, legais
ou ilegais, praticados pelos concorrentes europeus ou
americanos.
Falar
abertamente dessa perversão do nosso negócio tornou-se
arriscado: incomoda demais a classe auto-proclamada produtiva
e tem provocado, em escala crescente, as ladainhas
negacionistas emitidas por complacentes empresários e políticos,
ou políticos-empresários, cujos negócios essa revelação
perturba maximamente. Não todos, porém. Destacam-se algumas
iniciativas inovadoras, tais como a das 12 maiores empresas
siderúrgicas do país assinando compromisso de erradicação
do trabalho escravo na cadeia produtiva do carvão vegetal
(agosto 2004), ou das principais redes atacadistas e algumas
grandes indústrias do Brasil, e a própria Fiesp, que, em
maio de 2005, assinaram pacto nacional de combate ao trabalho
escravo com compromisso formal de romper com fornecedores
envolvidos nessa prática.
Na
medida em que vai se desvendando a cadeia produtiva do
trabalho escravo no Brasil, vêm se tornando possíveis
iniciativas cidadãs por pressão do mercado consumidor, que
exige respeito a princípios incontornáveis. Sim, precisamos
saber e informar à sociedade: quem compra a produção de
carne desses escravocratas (mais de 70% dos casos), para quem
eles vendem a soja, o algodão, o açúcar com gosto de sangue
(20% das ocorrências), a quem se destina a madeira
clandestinamente extraída (5% das ocorrências). Melhor seria
ainda se as organizações profissionais envolvidas, sem
aguardar prováveis ameaças de retalhações da comunidade
nacional e internacional, resolvesssem espontaneamente assumir
o desafio de limpar suas fileiras de nomes que as envergonham
tanto quanto a nós.
Por
ora estamos ainda longe dessa expectativa e não são poucos
os negacionistas modernos.
Segundo
João de Almeida Sampaio Filho, presidente da Sociedade
Rural Brasileira:
"Essas acusações (de
ONGs ideologicamente atrasadas, financiadas por recursos dos
países ricos) se intensificam justamente num momento em que o
Brasil, impulsionado pelo agronegócio, aumenta sua participação
no comércio mundial. É preciso que se dê um basta às denúncias
equivocadas de trabalho escravo no campo".
Mesmo
discurso do presidente da Confederação de Agricultura e Pecuária
do Brasil - CNA, Antônio Ernesto de Salvo, alinhado com o
ex-ministro da Agricultura (no Governo FHC), Pratini de
Moraes. “Ninguém queima floresta para botar boi, não
acredite nisso. Uma forma de protecionismo estrangeiro das
organizações estrangeiras é dizer que tem trabalho escravo
aqui”. Para Salvo, a acusação de trabalho escravo,
"além de mentirosa, degrada nossa imagem no
exterior".
Blairo
Maggi, maior produtor individual de soja no mundo e governador
do Mato Grosso, ao lançar, ano passado, em Cuiabá, a
campanha estadual "Cidadania Sim, Trabalho Escravo Não",
afirmou: "Não
conheço o trabalho escravo em Mato Grosso, mas já vi
trabalhadores em situação degradante”.
Deve-se
lamentar que palavras tão obviamente parciais possam ter
recebido reforço de políticos, inclusive na cúpula do
Congresso Nacional, bem como do Governo Federal. Severino
Cavalcanti (PP/PE), então Segundo-Secretário da Câmara dos
Deputados e hoje ex-presidente da mesma, afirmou certa vez:
“Não vamos
resolver os problemas do campo e do desemprego ameaçando
produtores e fazendeiros com o confisco de terras no caso das
muitas e controversas versões de ‘trabalho escravo”.
Brasil não é primeiro mundo para exigir privadas e outros
privilégios para seus boias-frias.
Coerente com essa posição, chegou – como presidente da Câmara
- a pressionar grandes distribuidores de combustível que
haviam descartado de seus fornecedores a Destilaria Gameleira
(de Confresa-MT, flagrada várias vezes de trabalho escravo e
por isso incluída na lista suja) para que desistissem do
boicote anti-escravista.
O
vice-presidente José Alencar, perante o 6º Congresso de
Agronegócio da Sociedade Nacional da Agricultura, afirmou, em
26 de agosto de 2004: "Não posso dizer que haja trabalho
escravo. Há trabalho degradante. Escravo é quem não tem
liberdade e tem dono. É preciso não haver condenação
contra o setor agrícola moderno sem apuração".
Minimizar
o problema ou dar-lhe traços culturais que o naturalizem é
outro viés usado pelos negacionistas. Dia 14 de junho de
2004, ao defender no Senado a memória de um amigo fazendeiro
do Tocantins, “cidadão
honesto e cumpridor da lei, levado ao desvario de tirar a própria
vida” pela implacabilidade dos fiscais, o senador João
Ribeiro reduziu o problema encontrado pelos fiscais na fazenda
do colega (onde nove escravos foram resgatados) simplesmente
ao fato que tratava seus peões “à moda antiga”, e fez
emocionante discurso.
Neste
clima, não é de estranhar os fraquíssimos avanços na solução
do terceiro e decisivo pilar da escravidão moderna: a
impunidade. Bastaria para ilustrar o trágico disfuncionamento
do poder judiciário brasileiro citar essa confissão de Ela
Wiecko, subprocuradora-geral
da República:
“Sabemos
de apenas duas condenações nos últimos dez anos. Se houver
alguma outra, este número não passa de cinco.”
Uma rápida avaliação do déficit repressivo pode ser dada ao considerar
a quantidade de sentenças punitivas prolatadas em face do número
de pessoas potencialmente sujeitas a condenação penal por
crime de trabalho escravo. Segundo estimativa da CPT, no período
de 1996 a 2004, somente no sul e sudeste do Pará, foram
realizados mais de 200 flagrantes de escravidão pelo Grupo Móvel,
envolvendo mais de 800 infratores, entre gato, fazendeiro,
pistoleiro, dono de pensão, transportador. Destes infratores,
menos de 80 chegaram a ser denunciados e menos de 30 a serem
sentenciados, sendo só 5 deles punidos, entre eles 2 com mera
pena alternativa (obrigação de prestar serviços à
comunidade).
Nos
últimos três anos, contabilizamos alguns avanços. Em duas
direções: na direção da sanção econômica, com a
instituição do cadastro dos empregadores escravistas
conhecido como Lista Suja dos empregadores flagrados pelo
Grupo Móvel utilizando mão-de-obra escrava. Os empregadores
nela relacionados estão sendo impedidos de obter novos
contratos com os Fundos Constitucionais de Financiamento; sua
situação fundiária está sendo investigada e suas cadeias
produtivas, rastreadas. No entanto, a partir da publicação
da terceira lista, em dezembro passado, 28 empregadores já
(até 30 de setembro de 2005) conseguiram liminar da Justiça suspendendo a inclusão de
seu nome, tornando problemática a eficácia deste
instrumento, e apontando para a oportunidade de um aperfeiçoamento
de sua definição legal. Outra iniciativa importante foi, em
outubro de 2004, pela primeira vez, a invocação, pelo INCRA, para fins de desapropriação
da terra, do descumprimento da função social ambiental e da
função social trabalhista da propriedade rural (no caso
emblemático da Fazenda Cabaceiras, em Marabá,
caso de reincidência múltipla). A medida certa, no entanto,
seria obviamente a decisão de confisco da terra – ou
expropriação – prevista
pela PEC 438, cuja interminável tramitação no Congresso,
nestes 10 anos é a triste ilustração da teimosia de nossa
classe dirigente na manutenção do status-quo.
Em
segundo lugar, houve avanço na direção de uma ágil atuação
do Ministério Público do Trabalho e da Justiça do Trabalho,
levando a posturas enérgicas durante a fiscalização e
depois de sua conclusão: com a criação de varas
itinerantes, o Juiz pode em tempo tomar medidas que dobram o
infrator recalcitrante (bloqueio de contas, penhora de bens,
quebra de sigilo bancário) ou lhe impõem sanções pecuniárias
que, aos poucos, se tornam mais dissuasivas - condenação ao
pagamento de indenização por danos morais coletivos de valor
substancial: R$ 530 mil no caso do deputado Inocêncio
Oliveira, 760 mil no do senador João Ribeiro, 1.35 milhão no
da empresa Jorge Mutran-Fazenda Cabaceiras; e, por último, 3
milhões no da Lima Araújo Ltda, proprietária das Fazendas
Estrela de Alagoas e Estrela de Maceió.
Resta
que no plano criminal praticamente ninguém ainda foi para
cadeia por crime de trabalho escravo. A indeterminação
persistente da competência para julgar – se da Justiça
federal ou da Justiça comum, questão a ser dirimida ou pela
suprema Corte ou pela Lei – constitui um chão propício
para a impunidade. O alongamento da discussão da competência
interessa a muitas pessoas, pois através dela empurram-se os
processos. Quando se chega ao fim, então, um juiz, estadual
ou federal, aplica a prescrição, como acaba de se verificar
no caso emblemático do fazendeiro maranhense Miguel Rezende.
Em 1996 foram fiscalizadas pelo Grupo Móvel do Ministério do
Trabalho e Emprego duas de suas fazendas - fazenda Rezende, às
margens do rio Pindaré, localizada no município de Senador
La Rocque (Maranhão) e fazenda Zonga, localizada, fato
agravante, dentro da Reserva Biológica do Gurupi, em Bom
Jardim (Maranhão). No total, os auditores do trabalho
libertaram 52 pessoas que se encontravam em condição de
escravidão. Novamente, em outubro de 1997, as mesmas fazendas
passaram por vistoria do Grupo móvel, tendo sido libertados
mais 32 trabalhadores. Escravos ainda seriam libertados de
fazendas de Rezende em 2001 e 2003, a ponto desse proprietário
rural figurar três vezes na “lista suja”. Hoje, com mais
de 70 anos, o fazendeiro se beneficiou da prescrição,
pronunciada pelo Juiz de João Lisboa (Maranhão), com base na
legislação que estabelece que crimes com pena máxima de até
oito anos prescrevem em 12 anos e que, para os maiores de 70
anos, esse prazo cai pela metade. O tempo transcorrido entre a
fiscalização que deu início ao processo até a denúncia na
Justiça Estadual foi de 7 anos e 5 meses. Durante este tempo
o processo correu na Justiça federal até o Superior Tribunal
de Justiça decidir, em 21 de outubro de 2004, anular todos os
atos decisórios da Justiça Federal e declarar competente a
Justiça Estadual do Maranhão.
Além
da inclusão na categoria dos crimes hediondos, que
acerretaria a imprescriptibilidade, faz-se urgente a revisão
das penas incorridas pelos infratores, hoje limitadas ao teto
de oito anos de prisão: além de facultar uma pronta prescrição,
isso possibilita, na maioria dos casos, a conversão branda da
pena. É longa a lista dos impunes do trabalho escravo; são
destaques os nomes de Jairo Andrade, no Pará (cuja meticulosa
truculência, incluindo homicídios, cemitérios clandestinos,
escravização, é relatada detalhadamente no livro de Binka
Le Breton “Vidas
Roubadas”,
e do seu irmão Gilberto Andrade, na fazenda Carutapera, no
Maranhão, que, pela primeira vez, num histórico tumultuado,
teve prisão preventiva efetivada em 22 de junho de 2005; também são lembradas
as pressões exercidas sobre os fiscais pelo ministro de
tutela e a decisão de arquivamento tomada pelo Procurador
Geral da República anterior, em benefício do então deputado
Inocêncio Oliveira, a despeito do cristalino relatório da
fiscalização. O Habeas Corpus concedido recentemente pela
suprema Corte ao suposto mandante do crime de Unaí
aponta para uma sinistra continuidade.
Não
estranha encontrar entre os infratores uma taxa de reincidência
exorbitante, tendo como campeões, no Pará: Jairo Andrade,
o Grupo Quagliato – maior pecurarista brasileiro,
Antônio Barbosa, Romeiro Albuquerque, Lima Araújo Pecuária.
Afinal de contas, se a escolha é entre lucrar absolutamente
(escapando de qualquer fiscalização) e lucrar
‘razoavelmente’ (pagando tão somente as verbas sonegadas
aos trabalhadores, sob a pressão da fiscalização, sem mais
ônus), por que parar de escravizar? Não estranha também
assistir à multiplicação das ameaças dirigidas aos que
denunciam tais práticas: trabalhadores fugitivos,
procuradores, juízes e agentes do movimento social ou das
pastorais.
Não estranha um dos mandantes da morte da irmã Dorothy Stang
– Vitalmiro Bastos de Moura - ter sido flagrado poucos meses
antes deste crime com 20 trabalhadores escravizados nas
‘suas’ terras griladas de Anapú, Pará (fiscalização do
Grupo Móvel na fazenda Rio Verde, em 27 de junho de 2004).
Esta
é a triste realidade em que convivemos e à qual uma
determinação política enérgica teria condição de
remediar. Não apostamos, porém, somente em medidas
repressivas. Obviamente indispensáveis, essas medidas – a
PEC do confisco da terra, a revisão das penalidades
criminais, a legislação específica sobre a lista suja, a
aprovação de verbas condizentes com a intensificação da
fiscalização, as diárias de seus destemidos agentes, a
interiorização da Justiça e do Ministério Público, entre
outras – ainda estarão longe de resolver um problema que
tem seu fundamento no desequilíbrio estrutural gerado pelo
modelo de desenvolvimento vigente. Não por acaso, se no mesmo
arco do desmatamento e nas mesmas áreas privilegiadas do
agronegócio brasileiro, é que se encontram a maior concentração
de violência contra a população rural e a maior incidência
de trabalho escravo, como mostraram os números reunidos na 20ª
edição do Relatório anual dos Conflitos no Campo, lançado
em 2005 pela Comissão Pastoral da Terra.
Lutar
pela erradicação do trabalho escravo é para nós da CPT,
indissoluvelmente, lutar pelo advento de uma verdadeira
reforma agrária, espaço propício para a afirmação de um
outro modelo de desenvolvimento para o campo brasileiro, no
respeito dos direitos das pessoas, da terra e da água. Ali
está a real política de prevenção que tanto faz falta
ainda. Na campanha sistemática que, depois de tantos anos de
combate quase solitário, a CPT conduz desde 1997, conclamamos
toda a sociedade a “abrir o olho para ninguém virar
escravo”. O
chamado da Campanha dirige-se em primeiro lugar aos/às
trabalhadores/as, com quem desenvolvemos ações visando
potencializar a auto-organização e despertar a consciência
e iniciativa, em busca de alternativas duradouras.
Articulam-se neste combate umas quinze equipes da CPT dos
estados do Pará, Maranhão, Tocantins, Mato Grosso, Piauí,
Bahia, Rio de Janeiro e Alagoas, promovendo oficinas, seminários,
mobilizações, cobranças, organização em núcleos,
sindicatos e grupos assumindo iniciativas de resistência,
desde a denúncia até a construção de alternativas. Nosso
chamado se volta também para os governos federal e estaduais,
e para o conjunto da sociedade nacional e internacional. Já
surgiram várias iniciativas positivas tais como Fóruns
estaduais de combate ao trabalho escravo (PI, MA, MT), Comitê
Popular de Solidariedade (RJ), Comissão Estadual de Combate
ao Trabalho Escravo (BA,TO, PA), ampliando para novos
segmentos da sociedade a luta pela erradicação desta
persistente vergonha. À sociedade, aos dirigentes, aos
militantes de um outro mundo possível, aos lutadores do povo,
a todos aqueles que têm parcela de responsabilidade na
transformação desta sociedade, juntos, lançamos este
desafio: abramos o olho para ningúem mais ficar escravo neste
país.
Se
podes olhar, vê. Se podes ver, repara!
*Frei Xavier Plassat é
da coordenação da Campanha Contra o Trabalho Escravo da
Comissão Pastoral da Terra (CPT)
[1]
De acordo com o deputado federal Asdrubal Bentes,
integrante da Comissão da PEC 438-A, o que vem a ser
identificado como trabalho escravo dependeria
exclusivamente da decisão de burocratas que não moram na
região e portanto não conhecem a realidade do Pará ou
do Nordeste do país: “O
técnico vem da capital, sem conhecer as peculariedades da
região e, subjetivamente decide que ali ou acolá está
se praticando trabalho escravo, às vezes porque falta um
sanitário de alvenaria ou energia elêtrica. Nos
assentamentos também os pobres trabalhadores vivem
jogados, sem sanitários, sem higiene, nos acampamentos,
ficam cobertos por lonas. E isso é o governo que está
praticando. Então vamos ter de usar o mesmo peso e a
mesma medida”. (in Jornal Opinião, 9-10/03/04).
[2]
citando Elio Gaspari, O Globo, 11/07/2004.
[3]
"Pisando fora da própria sombra - A escravidão por dívida no Brasil
contemporâneo", Ricardo Rezende Figueira (com
fotografias de João Roberto Ripper), 2004.
[4]
Estado de São Paulo, 8 de dezembro de 2004.
[5]
Discurso pronunciado em 2 de março de 2004.
[6]
... advogando sutilmente em causa própria já que na sua
propriedade, em Piçarra-PA, foram libertados 35 escravos
em janeiro de 2004, o que resultou em denúncia criminal
pelo Procurador Geral da República e condenação pela
Justiça do Trabalho a pagar indenização por danos
morais coletivos.
sendo oito pela Justiça do Trabalho e vinte pela Justiça
Federal. Treze destas foram do Juiz federal substituto de
Marabá, Francisco
de Assis Garces Castro Junior, cuja postura sistemática,
nessa matéira como em outras (despejos de sem-terra, caso
Anapú, caso Branquinho) tem suscitado, no mínimo,
perplexidade.
[9]
Pena suspensa provisoria e parcialmente por decisão
liminar do TRT do Pará (07/06/2005), no aguardo do
julgamento do recurso impetrado pelo Grupo Lima Araújo.
[10]
Loyola editora, 2002.
[11]
Policiais Federais
prenderam na última quarta-feira na cidade de Paragominas
(Pará) o pecuarista maranhense Gilberto Andrade. Ele foi
detido em cumprimento a um mandado de prisão preventiva,
expedido pelo juiz da 1ª Vara Criminal Federal, Ney de
Barros Belo Filho, acusado de manter trabalhadores em
regime análogo a escravidão em uma de suas fazendas, a
Boa-Fé Carú, situada no município de Carutapera (576 km
de São Luís). No local, fiscais da Delegacia Regional do
Trabalho (DRT-MA) encontraram, em novembro do ano passado,
18 trabalhadores “escravos”. Um dos trabalhadores era
uma adolescente de apenas 16 anos. “Estes trabalhadores
estavam numa situação degradante. Não tinham acesso a
água potável, medicamentos e também não dispunham de
equipamento individual de segurança. Além disso, não
estavam recebendo salários”, relembrou o delegado
regional do Trabalho, Ubirajara do Pindaré. O caso foi
denunciado pela DRT-MA ao Ministério Público Federal
(MPF) que representou judicialmente contra o pecuarista.
Além de ter sido preso, Gilberto Andrade teve a sua
propriedade seqüestrada por determinação da Justiça
Federal. A fazenda ficará hipotecada até que o processo
seja julgado. A hipoteca foi uma forma de garantir o
eventual pagamento de condenações por danos morais e
respectivas indenizações aos trabalhadores. Esta foi a
primeira vez no Maranhão que um fazendeiro foi preso e
teve a propriedade hipotecada devido a prática de
trabalho escravo. (O Imparcial, 24.06.05).
[12]
O fazendeiro Norberto Mânica, acusado de ser um dos
mandantes dos assassinatos de três fiscais e um motorista
do Ministério do Trabalho em Unaí, Minas Gerais, recebeu
no dia 31 de agosto, do Supremo Tribunal Federal (STF) o
habeas corpus, que permite sua liberdade enquanto o caso
é julgado. O crime aconteceu em janeiro de 2004 quando as
vítimas vistoriavam e fiscalizavam fazendas da região
suspeitas de utilização de trabalho escravo.
[13]
Cujos filhos já assumem sem medo a herança: Marco Túlio
Andrade Barboza, da direção da CNA e presidente da
Associação brasileira de criadores de zebú (sua fazenda
de Ananás-TO, a Bonanza, é periodicamente denunciada; na
Sertaneja, que também é dele, no mesmo município, o
Grupo Móvel libertou 32 escravos em maio de 2005) e Marco
Aurélio Andrade Barbosa (na sua fazenda de Axixá, TO, os
fiscais resgataram 40 escravos em abril de 2005).
[14]
segundo informação da revista Exame, 15/01/2005.
[15]
Três de nossos agentes – bem como um procurador da República
e um trabalhador-informante - vivem há mais de dois anos
sob ameaças oriundas de denúncias gravíssimas visando
um fazendeiro conhecido como Branquinho (Aldimir Lima
Nunes), contra quem pesam acusações de aliciamento,
grilagem, homicídio, trabalho escravo, e que, com pedido
de Habeas Corpus negado pelo STF em 14.09.05, permanece
foragido da Justiça, após uma primeira prisão seguida
de fuga, recaptura, relaxamento da ordem de prisão e
revigoramento da mesma, sem efeito até hoje (cf
Comunicado da CPT Nacional de 15.09.05). Outros agentes e
trabalhadores vivem sob ameaças em MT, PA, PB, PE, etc
(cf coletiva de imprensa da CPT na CNBB e audiência a
esse respeito com o Ministro da Justiça, no dia
19/04/05).
[16]
Conflitos no Campo
Brasil 2004, CPT Nacional, Goiânia, abril 2005.
[17]
Livro dos
Conselhos, in: José Saramago,
Ensaio sobre a cegueira.
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