Mesmo tomando apenas três
estados da federação (Rio de Janeiro, São Paulo e Minas
Gerais), e comparando com padrões de polícias
reconhecidamente violentas (como África do Sul e Estados
Unidos), revela-se um padrão de uso de força letal fora de
qualquer proporção aceitável. As polícias de três estados
brasileiros (Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais)
mataram quase cinco vezes mais civis do que todas as polícias
de todos os estados norte-americanos juntas.
Violência
policial no Rio de Janeiro: da abordagem ao uso da força
letal
Silvia
Ramos
O
Brasil possui um dos indicadores mais altos de violência
letal do mundo, com 50 mil homicídios por ano e uma taxa de
28,5 homicídios por cada 100 mil habitantes. Para dar uma noção
comparativa basta lembrar que países da Europa Ocidental têm
taxas inferiores a 3 mortes intencionais por 100 mil
habitantes e os Estados Unidos encontram-se na faixa de 5 a 6
mortes intencionais por 100 mil habitantes. O Brasil passou de
11,7 homicídios por 100 mil habitantes, em 1980, para 28,5
pelos mesmos 100 mil, em 2002, mais do que triplicando a taxa
de violência letal e somando quase 700 mil pessoas mortas
nesses 23 anos.
Gráfico
1
Homicídios
no Brasil: números absolutos e taxas por 100 mil habitantes
de 1980 a 2002
Fonte:
Sistema de Informação sobre Mortalidade – Datasus
Ainda
que extremamente altos, os índices de violência letal no
Brasil se caracterizam por uma distribuição profundamente
desigual em relação aos estados, às cidades e também em
relação à faixa etária, à classe social e à cor das vítimas.
Os nossos 28,5 homicídios por 100 mil habitantes se
transformam em mais de 50 homicídios por 100 mil habitantes
em estados como Rio de Janeiro (56,4), Pernambuco (54,4) e Espírito
Santo (51,3).
Quando observamos a distribuição por idade verificamos que
em alguns estados a taxa de homicídios de jovens de 15 a 24
anos ultrapassa os 150 homicídios por cada 100 mil jovens
dessa faixa etária. É o caso do Rio de Janeiro, São Paulo e
outros estados. A distribuição por cor das vítimas de violência
intencional letal também revela uma enorme concentração
entre jovens negros do sexo masculino, atingindo no Brasil
mais de 120 homicídios por 100 mil jovens negros entre 20 e
24 anos. Quando observamos a
distribuição interna numa mesma cidade verificamos que
alguns bairros, como Copacabana,
Ipanema e Leblon, no Rio de Janeiro, têm taxas de cinco homicídios
por 100 mil habitantes, enquanto outros, como os subúrbios
onde se situam Vigário
Geral e Parada de Lucas e a Zona Oeste têm taxas de mais de
80 homicídios por 100 mil habitantes.
O mesmo fenômeno da “geografia da morte” se repete em
cidades como Belo Horizonte, São Paulo e outras.
As
polícias e as respostas brasileiras no campo da segurança pública
O
perfil sócio-econômico e a baixa capacidade de pressão política
das principais vítimas da violência podem ajudar a explicar
o despertar tardio dos governos e da sociedade civil
brasileira para o tema da segurança pública e para a
necessidade de modernização, controle e democratização da
polícia. A despeito de nossas taxas altíssimas de violência
letal, apenas na década de 1990 começaram a ser registrados
esforços sistemáticos de elaboração de políticas públicas
de segurança baseados numa perspectiva contemporânea,
identificada com a combinação entre eficiência e direitos
humanos. Até então o tema era relegado, pela maioria dos
governos, às esferas corporativas das próprias polícias. A
indiferença e o silêncio no que dizia respeito à escalada
de violência letal predominou também entre amplos setores
intelectuais, na mídia e mesmo entre as organizações não-governamentais
durante os anos 80 e em parte da década de 1990.
Efetivamente, no contexto acadêmico e universitário, salvo
raras exceções, são relativamente recentes os centros de
estudos voltados para os temas da violência na perspectiva da
segurança pública cidadã.
Decorrentes
da ausência de investimentos e de políticas públicas
racionais, a maioria das polícias do país foi se degradando
e muitas tornaram-se violentas e ineficientes. O crime
organizado que se estrutura em torno do tráfico de armas e
drogas, por meio de mecanismos em níveis diversos, corrompeu
amplos segmentos das corporações policiais, em alguns casos
atingindo desde as bases até às chefias.
Em alguns estados, a violência policial transformou-se em um
problema maior e afeta diretamente as populações pobres das
favelas e das periferias, que se vêem encurraladas entre a
violência dos grupos armados de traficantes e a violência e
a corrupção policiais.
Quando
observamos os indicadores de uso da força letal pela polícia
no Brasil – quando há informações disponíveis –
verificamos números extraordinariamente altos de mortes
provocadas pela ação policial. Não é coincidência que nos
locais onde a polícia mata mais, a vitimização policial
também é muito alta.
Tabela
1 - Mortes de civis e de policiais militares em três estados
(2004)
Estado |
Civis
mortos
Em
confronto com a polícia
|
Policiais
mortos
|
Rio
de Janeiro
|
983
|
111
|
São
Paulo
|
573
|
27
|
Minas
Gerais
|
73
|
25
|
Nota:
(*) Informação não divulgada.
Fontes:
Secretarias de Segurança de SP e RJ. Polícia Militar de MG.
Mesmo
tomando apenas três estados da federação (Rio de Janeiro, São
Paulo e Minas Gerais),
e comparando com padrões de polícias reconhecidamente
violentas (como África do Sul e Estados Unidos), revela-se um
padrão de uso de força letal fora de qualquer proporção
aceitável. As polícias de três estados brasileiros (Rio de
Janeiro, São Paulo e Minas Gerais) mataram quase cinco vezes
mais civis do que todas as polícias de todos os estados
norte-americanos juntas.
Tabela
2 - Mortes de civis por policiais - panorama internacional
País |
Ano
|
Civis
mortos por policiais
|
África
do Sul
|
2003
|
681
|
EUA
|
2003
|
370
|
Argentina
|
2003
|
288
|
Alemanha
|
2003
|
15
|
Reino
Unido
|
2003
|
2
|
França
|
2003
|
2
|
Portugal
|
2003
|
1
|
Brasil
(RJ + SP + MG)
|
2004
|
1749
|
O
estado do Rio de Janeiro constitui um caso grave dentro do
panorama preocupante do Brasil. Neste estado, mais de 10% dos
homicídios dolosos são provocados pela polícia, tendo as
ocorrências chegado a 900 assassinatos em 2002, 1.195 em 2003
e 983 em 2004, denotando um crescimento extraordinário da
violência policial.
Gráfico
2 - Autos de resistência no estado do Rio de Janeiro 1998 a
2004
Fontes:
Planilhas Asplan/PCERJ, Diário Oficial do Estado do Rio de
Janeiro e IBGE.
O
número de policiais mortos também tem aumentado, ainda que
em proporção muito inferior à de civis. Uma outra característica
do fenômeno da morte de policias no estado do Rio de Janeiro
é sua incidência predominantemente maior de mortes fora de
serviço. Aproximadamente 70% das mortes de policiais ocorrem
no “segundo emprego”, isto é, quando eles estão fazendo
“bicos” como seguranças privados.
A
violência policial também assume, tais como as taxas de
homicídios na cidade, uma geografia específica, estando
fortemente concentrada na Zona Oeste e nos bairros de Subúrbio.
A baixa presença de organizações de direitos civis nessas
áreas e uma espécie de “naturalização” da idéia de
que conflitos em favelas provoquem vítimas civis podem ajudar
a compreender por que esses números só vêm crescendo nos últimos
anos. O fato é que a violência policial encontra-se fora de
controle dos comandos superiores, bem como a corrupção
policial, que cresceu na mesma proporção em que a “licença
para matar” foi sendo concedida.
Tabela
3 - Autos de resistência e policiais mortos em serviço em
BPMs da capital
Rio de Janeiro - 2003
|
Autos
de Resistência
|
Policiais
Militares mortos em serviço
|
Suburbios
|
501
|
23
|
Zona
Oeste
|
124
|
8
|
Zona
Norte
|
61
|
2
|
Centro
|
55
|
0
|
Ilha
do Governador
|
37
|
0
|
Zona
Sul
|
20
|
1
|
Município
do Rio de Janeiro
|
798
|
34
|
Fontes:
Diário Oficial do
Estado do Rio de Janeiro/Asplan e Censo Demográfico 2000,
IBGE.
Elaboração: CESeC.
As
características dessas mortes são importantes para
compreender sua dinâmica. Um estudo minucioso realizado por
Cano (1997), tomando os autos de resistência dos anos 1993 a
1996, na cidade do Rio de Janeiro, revelou que as vítimas são
majoritariamente jovens do sexo masculino (de 15 a 29 anos,
com ênfase na faixa de 20 a 24) e que 64% são negros,
contrastando com a presença de 39% de negros na população
carioca. O estudo também mostrou que a ação de polícia
dentro das favelas é mais letal do que em outros locais. Além
disso, a análise mostrou que quase a metade dos corpos
recebeu quatro disparos ou mais e a maioria dos cadáveres
apresentava pelo menos um tiro nas costas ou na cabeça,
configurando casos evidentes de execuções sumárias entre as
“mortes em confronto”.
“Todo
camburão tem um pouco de navio negreiro”
Em
2003, o CESeC realizou uma pesquisa quantitativa e qualitativa
na cidade do Rio de Janeiro para compreender as dinâmicas
predominantes entre polícia e cidadãos nas abordagens
policiais nas ruas da cidade. Os resultados revelaram que o
forte viés racial que orienta essas ações se combina com
critérios de idade, de gênero e de classe social,
construindo um índice de risco de ser considerado suspeito
pela polícia que denominamos IGCC (idade, gênero, cor e
classe). Ser jovem, ser negro e ser pobre se combina, por sua
vez, com área geográfica da abordagem, sendo que as áreas
de favelas e periferias são consideradas pela polícia como
“territórios suspeitos”. Além da incidência
desproporcionalmente alta de jovens negros do sexo masculino
parados pela polícia quando estão andando a pé na rua (em
contraste a com incidência proporcionalmente baixa para
mulheres e homens brancos e mais velhos), a pesquisa revelou
também que o tratamento policial dispensado nas abordagens
varia intensamente segundo cor, classe social e idade do
suspeito.
A
revista corporal – um tratamento considerado humilhante e
violento pelos jovens negros e brancos e jovens negros
entrevistados na pesquisa – é visivelmente mais freqüente
quando a pessoa abordada é negra (55% dos que se
auto-declararam “pretos” foram revistados, em contraste
com 32,6% dos que se auto-declararam “brancos”).
Gráfico
3 - Ocorrência de revista corporal segundo raça ou cor
Fonte:
Ramos e Musumeci. Elemento
suspeito: abordagem policial e discriminação na cidade do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2005.
Os jovens são mais revistados que os mais velhos e as
pessoas com renda superior a cinco salários mínimos foram
revistadas em apenas 17% das abordagens, contra 40% de
revistados entre os que têm renda até cinco salários.
Quadro
1 - Revista corporal segundo idade e renda mensal da pessoa
abordada
·
Metade
dos jovens de 15 a 24 anos parada andando a pé na rua foi
revistada, enquanto só 25% das pessoas com mais de 40 anos
sofreram revista corporal.
·
Pessoas
com renda mensal até cinco salários mínimos sofreram
revista em mais de 40% dos casos; só 17% das pessoas com
renda superior a cinco salários.
Fonte:
Ramos, Silvia e Musumeci, Leonarda. Elemento
suspeito: abordagem policial e discriminação na cidade do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2005.
A
pesquisa do CESeC foi realizada pelo reconhecimento da
necessidade de desenvolver investigações sobre o recorte
racial de várias questões ligadas ao sistema de justiça
criminal. As relações simbólicas entre “cor” e
“criminalidade” no Brasil, embora sejam históricas e
evidentes, não correspondem a suficientes estudos que
indiquem como essas relações se desenvolvem, quais seus
mecanismos e em que intensidade os estereótipos ligados à
cor e à raça afetam o funcionamento do sistema. Resolvemos
investigar por onde o sistema de justiça criminal começa: na
polícia. E, refletindo sobre a polícia, resolvemos começar
por onde a polícia começa, nas abordagens cotidianas nas
ruas da cidade, ao cidadão comum. A pesquisa também se
inspirou na literatura norte-americana sobre “racial
profiling”, uma expressão criada pelo movimento de direitos
civis dos Estados Unidos para identificar o filtro racial freqüentemente
existente nas ações policiais de triagem de veículos.
Por
outro lado, a pesquisa foi inspirada nos jovens, especialmente
nos jovens que expressam a cultura negra da periferia e das
favelas – como Marcelo Yuka e o Rappa, o Afro Reggae e os
rappers do hip hop, como Os Racionais, MV Bill, Nega Gizza e
outros. Esses
grupos e lideranças expressam com insistente sensibilidade a
noção que ronda como um fantasma sobre a sociedade
brasileira: a de que a violência policial desmedida começa
nos estereótipos raciais e de classe predominantes nas práticas
policiais cotidianas e se estende na "naturalização"
e na "banalização" da violência policial letal
que ocorre nas favelas e nos bairros populares.
A
maioria dos 50 mil brasileiros assassinados todo ano é
constituída de jovens negros moradores das áreas pobres dos
centros urbanos. Eles também são as principais vítimas da
violência policial. Parte das saídas para esse quadro de
degradação e falta de confiança na polícia se situa
exatamente na confluência entre essas lideranças jovens e as
lideranças policiais que acreditam que é necessário e é
possível mudar a polícia. O CESeC vem trabalhando em
parceria com jovens do Grupo Cultural Afro Reggae num projeto
piloto dentro dos batalhões de Polícia Militar de Minas
Gerais, com o objetivo de reduzir o ódio e a distância entre
a polícia e os jovens e produzir novas imagens capazes de
romper os estereótipos de criminalidade associados aos jovens
e os estereótipos de violência e corrupção associados à
polícia.
Silvia Ramos é cientista social e coordenadora do Centro
de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) da
Universidade Candido Mendes.
Dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade –
Datasus, 2002.
Veja Soares, Gláucio e Borges Doriam. A
cor da morte. Revista Ciência Hoje, outubro de 2004.
Musumeci, Leonarda. Mapa elaborado com dados da Polícia
Civil do Estado do Rio de Janeiro, 2003.
www.ucamcesec.com.br.
Ver Lemgruber, Musumeci e Cano. Quem
vigia os vigias? Rio de Janeiro: Record, 2003.
No caso brasileiro o problema começa pela inexistência
de informações divulgadas sobre violência policial na
maioria dos estados.
Cano, Ignacio. Letalidade
da ação policial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
ISER, 1997.
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