Bolivianos, paraguaios,
peruanos e chilenos compõem um verdadeiro exército de mão-de-obra
barata e abundante na capital paulista. O anteprojeto da Nova
Lei dos Estrangeiros que tramita no Congresso Nacional é
extremamente seletivo do ponto de vista econômico e não
resolve a situação dos trabalhadores imigrantes
indocumentados.
“Nadie
es ilegal en donde quiere que viva”
Luiz
Bassegio e Roberval Freire
(*)
Estima-se
que existam hoje, na capital paulista, centenas de milhares de
latino-americanos, dos quais 40% em situação irregular. A
população total do município de São Paulo em 2004, de
acordo com o IBGE, era de 10, 8 milhões de pessoas.
O
trabalho escravo é uma realidade entre muitos destes
imigrantes. Apesar de não ser tema de novela, a situação
dos imigrantes ilegais latino-americanos na cidade de São
Paulo é uma realidade extremamente dolorosa. Muitas vezes
acabam como escravos em oficinas de costuras na região
central da capital, como Brás, Bom Retiro e Pari. Em São
Paulo, a maior cidade do país, imigrantes latino-americanos
em situação ilegal são vítimas de trabalho escravo:
Bolivianos, paraguaios, peruanos e chilenos compõem um
verdadeiro exército de mão-de-obra barata e abundante na
capital paulista. A origem desta situação tem a ver com a realidade destes países
dos quais muitos fogem em busca de melhores condições de
vida e trabalho.
São
muitos os relatos de pessoas recrutadas na Bolívia, com anúncios
em rádio e jornais enganosos que prometem emprego, moradia e
salário. Chegando aqui a realidade é bem outra. Os primeiros
seis meses de trabalho são para pagar o custo da viagem ao
intermediário que os trouxe (gato ou coyote). Muitas vezes os
passaportes são retidos e há ameaça de denúncia à polícia
caso o imigrante não cumpra as exigências do intermediário.
Passados três meses, o imigrante tem seu visto de
turista vencido e torna-se um “indocumentado”.
“Entre
estes indocumentados, há um medo de denunciar, medo da polícia
e das represálias. Após o cumprimento dos meses para o
pagamento dos custos da viagem, muitos fogem e deparam-se com
a legislação que os criminaliza, mas não reconhece o tráfico
de seres humanos.” (Jornal Presença Latina, 2004)
Mas
esta exploração não é um fato residual do sistema. Faz
parte intrínseca do mesmo. A peça de roupa produzida nos sórdidos
porões da escravidão é a mesma roupa da moda que se destaca
nas vitrines dos shoppins da cidade. O trabalhador migrante,
tido como clandestino, certamente faz parte da cadeia
produtiva das grandes marcas. Fatos parecidos ocorrem no mundo
inteiro, onde a luta pela competitividade impõe cortes nos
custos e, por conseguinte, na força de trabalho.
Num
dos casos, em área contígua à oficina, oito dos
trabalhadores e mais uma criança de seis anos repartiam seis
pequenos improvisados cômodos de 2 metros quadrados,
divididos por paredes de compensado. Os outros, quando a
jornada se estende, acabam, também, por dormir lá
mesmo. Ali funciona, ainda, uma cozinha, onde são
feitas as refeições oferecida pelos patrões.
Vale
a pena recordar como vivem os trabalhadores imigrantes que estão
indocumentados. Quais são suas condições de trabalho e de
vida, como são recrutados, enganados e submetidos ao
extenuante regime de trabalho. Dentre as principais
irregularidades, destacam-se:
“A
forma como são recrutados na Bolívia, com promessas
enganosas de salários de até 500 dólares mensais, quando na
verdade não passam de 100;
-
O confinamento a que são submetidos em São Paulo: trabalhar
diversos meses para pagar a viagem e a impossibilidade de
comunicação;
-
Retenção dos documentos e chantagem com ameaças de denúncias
para a polícia;
-
A longa e extenuante jornada de trabalho a que são submetidos
e que muitas vezes chega a mais de 16 horas diárias;
-
A contínua rotatividade de local de trabalho evitando assim
qualquer tipo de organização e despistando as autoridades
locais;
-
As condições insalubres
de trabalho: morar e trabalhar no mesmo local
respirando a poeira do trabalho nas confeccões;
-
Cerceamento da liberdade devido ao horário de trabalho e a
constante coação;
-
Mas o mais grave de tudo é a impossibilidade de exigir
diretos, seja pela dificuldade da língua, seja pelo fato de
estarem indocumentados e submetidos a uma lei dos estrangeiros
que é autoritária, xenofóbica, restritiva e ainda uma fábrica
que produz indocumentados”. (SPM,
2004)
Acuados,
não costumam delatar os patrões. Muitos, sequer imaginam
estar sendo explorados. Não é incomum ouvi-los dizer que
preferem trabalhar no Brasil a trabalhar na Bolívia. Famílias
inteiras, em condição ilegal, aceitam trabalhar e viver em
oficinas de costura. Preferem trabalhar até 17 horas por dia
a ficar desempregados em seu país.
O recente acordo Brasil-Bolívia, de agosto/2005, para
regularização da documentação atingirá parcela dos
imigrantes, pois muitos são de outras nacionalidades e
esperam por uma nova Lei dos Estrangeiros. Além disto,
privilegia os que têm condições técnicos, profissionais
liberais e administradores de empresas multinaiconais.
O
anteprojeto da Nova Lei dos Estrangeiros que tramita no
Congresso Nacional é extremamente seletivo do ponto de vista
econômico e não resolve a situação dos trabalhadores
imigrantes indocumentados. Para isto, basta enumerar as
diversas categorias privilegiadas que são mencionadas no
artigo 11: “estudo (ensino fundamental, médio, curso de
graduação e pós graduação (I); artista e desportista
(II); administrador, gerente, diretor, executivo de sociedade
civil ou comercial, grupo ou aglomerado econômico (III);
correspondente de jornal, revista, rádio, televisão ou agência
estrangeira de notícias (IV); ministro de confissão
religiosa (V); voluntário, dirigente de organização não
governamental ou de pesquisa ((VI); marítimo ou técnico
embarcado em navio de carga, turismo ou pesca (VII) (Vai-vem
100 – 2005).
Problemática
Os
problemas principais relativos aos imigrantes referem-se à
legislação brasileira. A Lei dos Estrangeiros, datada de
1980, dificulta o processo de documentação, negando aos
imigrantes o direito de cidadania mínima, garantido na
Constituição de 1988 e na Declaração Universal dos
Direitos Humanos. O artigo segundo do Estatuto do Estrangeiro
de 1980 (Lei 6.815) coloca como prioridade a segurança
nacional, os interesses políticos, sócio-econômicos e
culturais do Brasil, bem como a defesa do trabalhador
nacional. Esses princípios, contrários aos da Carta Magna,
deveriam ser algo do passado autoritário do país. Porém, o
que se constata é o contrário. A Lei 6.815 continua regendo
a permanência dos estrangeiros no Brasil, numa flagrante
contradição com a defesa dos direitos da pessoa humana,
direitos estes garantidos em várias Conferências
Internacionais e também pelo Plano Nacional de Direitos
Humanos do governo brasileiro.
Aqueles
que não se enquadram dentro das exigências da lei são,
portanto, denominados “ilegais” ou “clandestinos”,
interferindo no exercício de sua cidadania, negando-lhes
direitos básicos, como, por exemplo, alugar um imóvel, ser
registrado em um emprego, abrir um crediário, dificuldade em
matricular os filhos na escola, recorrer à justiça em caso
de violação de seus direitos, receber assistência médica
gratuita. A clandestinização forçada das famílias
imigrantes nestes 25 anos de Estatuto dos Estrangeiros no
Brasil feriu irremediavelmente os direitos da criança e do
adolescente, impedido-os
de estudar em escola pública. O próprio Estatuto da Criança
e do Adolescente de 1990 foi violado, pois prescrevia a não-discriminação
entre criança ou adolescente brasileiro e estrangeiro,
documentado ou não.
A
morosidade no processo de expedição de documentos para
estrangeiros agrava a situação dos indocumentados, em razão
da burocracia apoiada na velha lei. Isto contrasta com a
Declaração Universal dos Direitos Humanos que no artigo 13
diz: “Todo o homem tem
direito de ir e vir para onde quiser e de morar, em sua terra,
onde bem lhe convier.”
Outro
problema que preocupa a todos é o crescente desemprego,
especificamente entre os trabalhadores mais qualificados,
sobretudo aqueles do setor industrial.
Em
São Paulo, empresas do setor de confecções realizam o
agenciamento desses imigrantes em seus países de origem,
utilizando, como agenciadores, os próprios compatriotas.
Parte deles trabalha e vive em porões de oficinas de costura,
em situação de semi-escravidão: jornadas de até 16 horas
diárias, sob o medo de delação, que os ameaça com a
deportação por parte da Polícia Federal.
Advogados
e despachantes, prometendo regularizar a documentação,
enganam esses imigrantes, extorquindo-lhes a escassa economia
conseguida.
Juan
Plaza, coordenador da Casa do Migrante, em São Paulo, é um
dos imigrantes que escolheu o Brasil como sua nova pátria.
Quando chegou ao país, em 1984, o chileno viveu de perto as
conseqüências de todos os entraves do Estatuto dos
Estrangeiros e, desde então, tem participado ativamente do
trabalho promovido pelas entidades brasileiras que lutam pela
causa dos imigrantes. Na sua opinião, é necessário
regularizar rapidamente a situação dos imigrantes que se
encontram no país para que eles não sejam considerados
ilegais e tratados como caso de polícia. A idéia é
olhar também a questão do imigrante sob a perspectiva
social, econômica e política.
"As pessoas quando chegam num
novo país buscam alternativas para a realização dos seus
sonhos. Mas a legislação atual é impeditiva.” Ele
acredita que um ponto fundamental a ser estudado é a questão
dos documentos, para que os imigrantes possam ter acesso à saúde,
educação e ao crédito como qualquer cidadão brasileiro.
"É necessário estabelecermos regras diferentes para que
o imigrante não entre no mercado informal, ou acabe no
contrabando ou tráfico de drogas porque não tem condições
de sobreviver”, opina Juan.
O
Anteprojeto de uma Nova Lei dos Estrangeiros, do Ministério
da Justiça, de setembro/2005,teve o mérito da abertura a uma
consulta da sociedade, porém é ainda tímido em alguns
pontos e traz resquícios da atual e velha lei. É possível
que a luta maior seja travada no Congresso Nacional, tido como
conservador e avesso às mudanças.
De “Segurança Nacional”, o novo texto passa ao
novo conceito de “seletividade da mão-de-obra”, como critério
primeiro de admissão do imigrante. Ou seja, o mercado seria o
princípio para a Lei dos Estrangeiros, e o Ministério do
Trabalho, um agente de seleção.
A
Integração que queremos
A
migração atualmente é uma realidade planetária. O fenômeno
migratório apresenta-se como contraditório e complexo.
Indesejados e “necessários”, os migrantes fazem parte da
lógica da mobilidade forçada, imposta pelo capital, que
exclui, descarta, atrai, inclui precariamente, explora,
massifica e reprime.
Os
próprios latino-americanos não podem circular livremente em
seu continente. As restrições, desde as ditaduras militares,
se apóiam em aparatos jurídicos e burocráticos que
penalizam os migrantes e suas famílias. Além de não poder
circular, ao contrário do capital financeiro, não podem
dispor dos mínimos direitos de cidadania, ou mesmo direitos
humanos.
Para
George Martine, um dos conferencistas no Fórum Social das
Migrações, que aconteceu em Porto Alegre, em janeiro de
2005, os aspectos negativos da migração tem
a ver com a “fuga de cérebros”; as dificuldades de
comunicação, perseguições, maus-tratos e explorações.
Nos países de destino ocorrem conflitos e tensões e só
imigrantes são vistos como um peso fiscal e considerados
competidores com os trabalhadores locais”. (SPM, 2005)
Por
estas e outras razões, queremos uma integração:
-
que contemple os aspectos sócio-econômicos, políticos, e
culturais; que seja uma integração solidária. Neste
sentido, o Mercosul não pode ser apenas um tratado econômico
e comercial.
- que tenha uma nova Lei dos Estrangeiros: a atual é
ultrapassada, xenofóbica e tem resquícios da ditadura
militar. É necessária uma nova lei, uma anistia geral, o
direito à residência, direito de ir e vir na região (não só
para o capital financeiro) e ter os direitos reconhecidos em
todos os países da região.
-
que aponte para uma Cidadania Universal; A crescente
interdependência, causada pela dinâmica atual da globalização,
começa a evidenciar a conveniência e a necessidade de
definir o que já passou a se denominar de “cidadania
universal”. Cada vez mais emerge a necessidade de se
reconhecer a toda pessoa humana um direito explícito de
“cidadania universal”, pelo simples e fundamental fato de
ser membro da família humana, portanto participante da
“sociedade humana”, com direito a ocupar o seu espaço
vital e a contribuir com sua presença e atuação. “Para o
migrante, pátria é a terra que lhe dá o pão”.
No
Fórum Social das Migrações, com a participação de 600
pessoas de 37 países, emergiu com muita força, a idéia da
cidadania universal. No dizer de Dom Demétrio Valentini,
Presidente do Serviço Pastoral dos Migrantes “cada
vez mais emerge a necessidade de se reconhecer a toda pessoa
humana um direito explícito de “cidadania universal”,
pelo simples e fundamental fato de ser membro da família
humana”.
Por
outro lado, “considerando
que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros
da família humana e de seus direitos iguais e inabaláveis
constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no
mundo” (DUDH preâmbulo), cabe, neste momento,
perguntar se o anteprojeto da Nova Lei dos Estrangeiros está
ou não de acordo com esta perspectiva.
(Vai-Vem 100/2005)
O
SPM - Serviço Pastoral dos Migrantes e o Centro Pastoral dos
Migrantes vão ao encontro dos imigrantes, conscientes de que
sua integração na sociedade brasileira não pode significar
uma obrigação de assimilar a cultura local, em detrimento da
própria. Lutam, com eles, pela conquista do direito de
existir legalmente e pelo acesso a condições dignas de vida,
como prática da tão almejada solidariedade latino-americana.
(*)
Luiz Bassegio e Roberval Freire são da Secretaria do Serviço
Pastoral dos Migrantes
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