Pagina Principal  

Relatórios


Vários depoimentos de trabalhadores atestam que algumas usinas retiram a cesta básica, caso a média de produtividade seja inferior a 10 toneladas de cana cortada por dia. Informações recentes apontam para a diminuição dos salários em vários locais. Na região de Itápolis, em São Paulo, a caixa de laranja está sendo paga por apenas R$ 0,30, enquanto em 2001 o preço era correspondente a R$ 1,30. Na região de Ribeirão Preto, para compensar a fraca alimentação dos cortadores de cana e as exigências do aumento da produtividade, os usineiros estão distribuindo um componente à base de glicose aos trabalhadores depois do meio dia, quando, em razão do aumento do dispêndio de energia, há muitas manifestações de cãibras e fortes dores na coluna. A perda líquida do organismo em função do alto ritmo de trabalho – o cortador dá 9.700 golpes de facão para atingir a média de dez toneladas diárias de cana – além de ocasionar as cãibras, provoca inúmeras disfunções físicas que chegam a provocar enfartes.

 

    Em busca do passado para conhecer o presente – trabalhadores migrantes na região de Ribeirão Preto

                                                                                                 Maria Aparecida de Moraes Silva*

 

        Em vários encontros sobre a temática dos trabalhadores migrantes sazonais da macro-região de Ribeirão Preto, em São Paulo, temos refletido sobre a importância do passado para o processo de enraizamento individual e social. Defendemos a idéia de que o passado não é algo morto, congelado, fixo num tempo que não volta mais. Ao contrário, somente o conhecimento do passado nos permite explicar o presente e estabelecer os pontos para qualquer projeto futuro.

O período da ditadura militar, que impôs o processo de modernização da agricultura, particularmente da região de Ribeirão Preto, com a implantação das grandes usinas de açúcar e álcool, é o início desta história. Ao mesmo tempo, esta agricultura modernizada passou a exigir grandes contigentes de mão-de-obra, provenientes de várias partes do país, constituindo-se, assim, um mercado de força de trabalho de milhares de migrantes temporários, que, pelas imposições do processo produtivo, tiveram suas vidas divididas em dois tempos: o tempo nos canaviais, laranjais e cafezais desta região e o tempo em suas terras de origem.

Ressaltamos também a importância do conhecimento da história dos locais de origem, freqüentemente marcada pela tomada de terras de pequenos parceiros, posseiros e sitiantes, por grande fazendeiros, mercadores de terra ou empresas nacionais e estrangeiras. A história registrou nestas últimas décadas o vaivém de milhares de pessoas destinadas ao trabalho duro nesta agricultura. A partir do início dos anos de 1990, com o emprego de máquinas colhedeiras de cana, e, agora, de café, foi, em parte, sendo estancada esta corrente migratória porque as necessidades de mão-de-obra foram, anualmente, declinando, gerando desemprego, e, em muitos casos, exclusão social, identificada pelos trecheiros, andarilhos e moradores de rua.

        Entretanto, nos últimos anos, tem havido uma redefinição da cartografia migratória para esta região. Até os finais da década de 1990, a maioria dos migrantes era proveniente do interior da Bahia e do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. Atualmente, o destino destes migrantes tem sido as usinas do estado de Mato Grosso do Sul, principalmente no município de Rio Brilhante, onde, em passado recente, houve muitas denúncias de trabalho escravo. Por outro lado, muitos trabalhadores residentes nesta região também se deslocaram para aquelas usinas, cuja mecanização do corte da cana é ainda muito incipiente. Este deslocamento de trabalhadores – resultante da concorrência entre os capitais aplicados – não pode ser entendido como uma simples transferência de força de trabalho entre as usinas, o que poderia ser entendido como sendo a manutenção do mesmo nível de emprego, porém, como uma estratégia para intensificar a exploração e os lucros das empresas.

-                                                                   Muitos dos migrantes atuais são provenientes do Maranhão, Ceará, Alagoas, Piauí, estados que, no passado, tinham pouca participação neste processo. A explicação que pode ser dada para a mudança da cartografia migratória reside em dois fatos: um deles se reporta ao processo de espoliação das terras dos camponeses das áreas de cerrado, ora ocupadas pela soja. O outro fato se reporta à enorme intensificação do ritmo do trabalho, traduzida em termos da média de cana cortada, em torno de 12 toneladas diárias. Este fato está diretamente relacionado à capacidade física, portanto, à idade, na medida em que acima de 30 anos de idade os trabalhadores já encontram mais dificuldades para serem empregados. Desta sorte, a vinda destes outros migrantes cumpre a função de repor, por meio do fornecimento de maior força de trabalho, o consumo exigido pelos capitais cuja modernização e tecnificação são maiores.

                A ausência de alternativas, além da omissão do Estado, tem criado as bases para um deslocamento espacial e temporal incessante. Ao contrário da realidade de muitos países ricos, onde os direitos e a cidadania ainda preservam o status dos desempregados, a situação brasileira, especificamente deste contingente, é marcada pela despossessão e desenraizamento constantes. São vidas definidas por um vai-vém perene, por uma eterna  migração forçada que lhes impinge a marca de um destino social. Na luta pelo direito à sobrevivência, resistem à condição de párias, de mendigos. Os trajetos de suas andanças refletem a busca de um ponto fixo na escala social. Resistem ao processo descendente imposto pela estrutura social e independente de suas vontades. As pessoas não migram porque querem. Defende-se, de antemão, a idéia de uma migração forçada, imposta pela estrutura social, econômica e política atual.

                A migração é resultado de um processo histórico e, ao mesmo tempo, causa de um outro. É justamente aí que residem as bases analíticas da ação dos sujeitos envolvidos. A exclusão não pode ser vista como algo absoluto. Entende-se a migração como uma abertura, como caminho para novos ciclos que se abrem e se fecham constantemente. Desta sorte, considera-se a exclusão em termos relativos, gerando, contraditoriamente, possibilidades e alternativas realizadas pelos próprios sujeitos. Os atos de violência ligados ao tráfico de drogas, considerados negativos, a participação em movimentos sociais e políticos organizados, a inserção em trabalhos mais precários e a migração, são fissuras abertas, provocadas pela exclusão.

            Neste sentido, há um verdadeiro processo de exclusão-inclusão precária, que remete à disjunção, porém com continuidade, ainda que precária.

Deste modo, esta noção pressupõe uma análise histórica, um quadro de relações entre passado e presente: o passado como o espaço da centralidade e da inserção e o presente como o da exclusão-inclusão precária. A situação de vidas precárias passa a ser o destino de milhares de pessoas. Retomando as inflexões acerca das fissuras, dos poros existentes neste processo, pode-se compreender o hífen, situado entre a exclusão e a inclusão como um espaço que, além de unir os dois pólos, caracteriza-se como espaço de alternativas diferenciadas, como conexões de diferentes matizes sociais.

O aumento da precariedade do trabalho é manifesta pela diminuição dos salários, atrasos constantes no pagamento dos mesmos e presença das cooperativas de trabalhadores, que correspondem ao fim dos direitos adquiridos ao longo de várias décadas de lutas dos canavieiros desta região. Quanto às cooperativas de trabalhadores, representam uma maneira de escamotear os direitos, como o registro em carteira, bandeira de luta dos trabalhadores durante décadas seguidas. Elas são chamadas na região de copergatas, em alusão aos “gatos”, arregimentadores deste mercado de trabalho. Estas falsas cooperativas proliferaram principalmente na citricultura. Além da perda dos direitos, da volta dos “gatos”, houve, com a implantação destas cooperativas, a diminuição do poder dos sindicatos, em razão de que os trabalhadores, teoricamente, tornam-se cooperados, sócios da empresa porque detêm a cota parte do capital que as constituiu.

           Houve também o crescimento da rotatividade dos trabalhadores durante a colheita da  laranja, implicando em menores ganhos, uma vez que o tempo do não trabalho é ainda  maior, sem contar o acréscimo dos descontos nos salários que continuam sendo por produção, ou seja por caixas de laranja colhidas. O estatuto de cooperado, na verdade, significa o atrelamento aos gatos, em virtude da impossibilidade de reclamações, fato que pode conduzir à demissão do trabalhador. Durante os últimos sete anos, houve um crescimento enorme de ações trabalhistas, movidas pelos trabalhadores, contra estas cooperativas, fato que levou ao fechamento de muitas delas pela Justiça do Trabalho, embora outras tenham renascido, inclusive com atuação na cultura canavieira.

             Por outro lado, intensificam-se as exigências quanto à qualificação, principalmente no tocante aos níveis de escolaridade. Vários depoimentos de trabalhadores atestam que algumas usinas retiram a cesta básica, caso a média de produtividade seja inferior a 10 toneladas de cana cortada por dia. Informações recentes apontam para a diminuição dos salários em vários locais. Na região de Itápolis, em São Paulo, a caixa de laranja está sendo paga por apenas R$ 0,30, enquanto em 2001 o preço era correspondente a R$ 1,30. Na região de Ribeirão Preto, para compensar a fraca alimentação dos cortadores de cana e as exigências do aumento da produtividade, os usineiros estão distribuindo um componente à base de glicose aos trabalhadores depois do meio dia, quando, em razão do aumento do dispêndio de energia, há muitas manifestações de cãibras e fortes dores na coluna. A perda líquida do organismo em função do alto ritmo de trabalho – o cortador dá 9.700 golpes de facão para atingir a média de dez toneladas diárias de cana – além de ocasionar as cãibras, provoca inúmeras disfunções físicas que chegam a provocar enfartes, algo que está sendo atualmente investigado pela Procuradoria Geral da República de São Paulo e pela Plataforma Brasileira de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais e Culturais (DHESC), com apoio do Programa de Voluntários das Nações Unidas (UNUD/PNUD) e da Procuradoria dos direitos Humanos do Ministério Público Federal. De 2004 a 2005 ocorreram nove mortes nos canaviais paulistas, supostamente em razão do excessivo esforço.

              Na região da Alta Paulista, mais precisamente no município de Pacaembu, os trabalhadores estão sendo vitimados pela Birôla, assim definida por eles. Em razão do esforço desmesurado, muitos são acometidos durante o trabalho por convulsões, tremedeiras, suores, havendo casos de mortes no canavial, segundo alguns relatos. Para a reposição de energias, muitos trabalhadores fazem uso de medicamentos (injeções amarelinhas), cujos efeitos para a saúde lhes são totalmente desconhecidos. Há alguns anos, reportagens veiculadas pela mídia televisiva chocaram o país ao revelarem o uso de drogas, como o crak, pelos cortadores de cana na região de Jaú, a fim de aumentarem o ritmo de trabalho.

Estes casos são bastante próximos daqueles descritos por Marx em O Capital, referentes às indústrias da Inglaterra no século XIX. Era o momento em que o capital não explorava apenas a força do trabalhador, mas o consumia inteiramente. Muitas vidas foram ceifadas em função das longas jornadas e das péssimas condições de trabalho. Na expressão marxiana, o capital era o vampiro que se alimentava do sangue dos trabalhadores.

No que tange às usinas desta região, a intensificação do trabalho, associada às condições insalubres – calor excessivo, fuligem da cana queimada misturada aos resíduos de agrotóxicos, posição curvada do corpo, pois a cana precisa ser cortada a três centímetros do rés do chão – à fraca alimentação, reduz o trabalhador no final da safra a um bagaço de cana, com os nervos esgotados, sem contar aqueles em cujos atestados de óbito não aparecem as causas da morte, aqueles que, após o trabalho nas estufas de preparação das gemas  para as mudas de cana,  vêm a falecer de câncer na garganta.

Os trabalhadores mortos e os incapacitados são substituídos constantemente pelos integrantes do enorme exército de reserva, geralmente provenientes das regiões mais pobres do país. A grande preocupação dos representantes deste capital gira em torno do emprego cada vez maior de tecnologias avançadas, algo comprovado nas Feiras Internacionais – Agrishow – realizadas anualmente na cidade de Ribeirão Preto, que neste ano de 2005, movimentou com a venda de máquinas, mais de R$ 1,2 bilhão.                          

             A situação de itinerância destes homens e mulheres que, incessantemente, estão partido em busca de trabalho, é pautada por relações de despossessão cujos efeitos atingem o grupo familiar como um todo. Sentem-se desterritorializados, fora do lugar. A expressão – aqui não é a terra, não é o lugar da gente –  reflete os significados simbólicos da ruptura com a terra, com o lugar de origem e com a sociabilidade pautada nas relações de vizinhança, compadrio e parentesco antes existentes.

Reconstruir essa história mediante a inclusão dos trabalhadores migrantes como protagonistas, como agentes sociais que fazem história, é o eixo principal em torno do qual giraram nossas reflexões sobre os migrantes nesta região. Refletir sobre o passado, resgatar a própria experiência de vida e também aquela vivenciada pelos antepassados é um caminho seguro para a reconstrução da própria identidade e de um futuro onde as pessoas possam ter, além do direito de ir e vir, o direito de ficar, de estar, de pertencer a algum lugar, de parar, de ser alguém no mundo e deixar de ser ninguém no mundo.

 

* Maria Aparecida de Moraes e Silva é professora visitante do PPG/Geografia/USP e do PPG/Geografia/UNESP. Socióloga e pesquisadora do CNPq, é autora do livro “Errantes do fim do século” (Edunesp, 1999)