Foi a recém iniciada
administração municipal que, em São Paulo, se esmerou em
delinear o que vai adquirindo contornos de uma política
higienista, possivelmente com o objetivo de aprofundar a relação
entre o PSDB (e, no caso, o prefeito José Serra, com suas
aspirações presidenciais) e o eleitorado conservador de
extrema-direita. As atividades de limpeza social do centro
estiveram mais afetas ao Subprefeito da Sé, Andrea Matarazzo,
que desenvolve o chamado Plano Cracolândia, anunciado como
dirigido à revitalização do polígono que vai da Luz à Praça
da República. A pesquisadora da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da USP Mariana Fix opina que o projeto está
destinado a promover não apenas mudanças urbanísticas na
região central da cidade, mas uma mudança do perfil da
população, argumentando com a expressa manifestação da
Prefeitura paulistana que o projeto não inclui preocupação
com habitação social. Nesse sentido, uma coordenação de
intenções se estamparia nas atitudes do governo do Estado,
reprimindo os movimentos de moradia e promovendo o desalojo
dos ocupantes de prédios no centro, como foi o caso mais
recente da ocupação da Rua do Ouvidor 63.
Na
rua, sem direito a direitos
Aton
Fon Filho
Afirmar
que o direito à moradia segue sendo considerado apenas com
interesses eleitorais adquire maior fundamento neste ano, em
que as barganhas eleitorais promovidas pelo Presidente da República
na busca de reconstituir sua base parlamentar e com vistas à
eleição de 2006 redundaram na entrega do Ministério das
Cidades ao Partido Popular, o mesmo que com os nomes de ARENA,
PDS, PPR e PPB se notabilizou como dos maiores – ao lado do
PFL e PSDB – repressores dos movimentos de defesa da moradia
em todo o País. Nenhuma estranheza, portanto, com relação
ao repúdio manifestado por movimentos sociais à troca
realizada, como no que diz respeito à imobilidade do Ministério.
O
ano, aliás, já vinha marcado pela violência em despejos em
Goiânia, numa operação que, em março, empregou nutrido
contingente policial e armamento de guerra, resultando nas
mortes de 2 pessoas, ferimentos graves em 16, 800 presos e
desalojamento de 14 mil moradores do Residencial Sonho Real; e
em São Paulo, onde 80 famílias foram expulsas de prédio
ocupado desde 2003, na rua Plínio Ramos.
Torna-se
repetitivo, a cada ano, referir o incremento da favelização
em cidades como São Paulo (de 1.200 mil pessoas, em 1990,
para 2 milhões, em 2000), do cortiçamento (1 milhão de
moradores) e das moradias precárias (cerca de três milhões).
Anatole
France, numa observação sobre a suposta igualdade jurídica,
advertia que esta era a garantia de que tanto um pobre como um
rico poderiam morar em baixo de uma ponte, ou de que ambos
seriam igualmente sancionados por subtraírem um pedaço de pão.
A
sociedade desigual já de há muito se permite, com a omissão,
complacência ou conivência do aparelho policial, um esforço
de demonstrar que o escritor francês não passou, com sua
ironia, nem perto do que se reserva para quem é posto nos
desvãos do capitalismo. Se há alguns anos um punhado de
bem-nascidos em Brasília ateou fogo a um índio que dormia
num ponto de ônibus, e alegaram em sua defesa que acreditavam
que fosse apenas um
mendigo, em 2004 seis moradores de rua foram assassinados
sem que até agora se tenha identificado os criminosos.
O
jurista Luiz Flávio Gomes apontava, à época, que para a
mentalidade típica dos grupos nazistas:
“Aos mendigos associam-se idéias de fracasso, analfabetismo,
alcoolismo, inaptidão para o trabalho. Eles constituem, vamos
dizer assim, o lado negativo do sucesso. Nunca foram
respeitados como pessoas. E agora estão sendo destruídos em
massa. A compaixão com a desgraça alheia está se esvaindo.
Sentimentos negativos contam no momento com uma força inigualável:
ódio, intolerância, desrespeito.”
Denúncia
oferecida pelo Ministério Público contra policiais que se
teriam organizado para a prática dos crimes foi rejeitada
pelo Juiz do caso, com a alegação de que a acusação não
passava de meras suposições.
Mas
foi a recém iniciada administração municipal que, em São
Paulo, se esmerou em delinear o que vai adquirindo contornos
de uma política higienista, possivelmente com o objetivo de
aprofundar a relação entre o PSDB (e, no caso, o prefeito
José Serra, com suas aspirações presidenciais) e o
eleitorado conservador de extrema-direita.
As
atividades de limpeza
social do centro estiveram mais afetas ao Subprefeito da Sé,
Andrea Matarazzo, que desenvolve o chamado Plano Cracolândia,
anunciado como dirigido à revitalização do polígono que
vai da Luz à Praça da República.
A
pesquisadora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP
Mariana Fix opina que o projeto está destinado a promover não
apenas mudanças urbanísticas na região central da cidade,
mas uma mudança do perfil da população, argumentando com a
expressa manifestação da Prefeitura paulistana que o projeto
não inclui preocupação com habitação social. Nesse
sentido, uma coordenação de intenções se estamparia nas
atitudes do governo do Estado, reprimindo os movimentos de
moradia e promovendo o desalojo dos ocupantes de prédios no
centro, como foi o caso mais recente da ocupação da Rua do
Ouvidor 63.
O
engenheiro Marco Antônio Almeida, presidente executivo da
entidade empresarial Associação Viva o Centro (AVC), defende
o projeto da municipalidade: “Não se trata de obrigar ninguém a sair do centro, mas também não se
deve incentivar a vinda deles (população pobre).” A
defesa, porém, quase se transforma em ataque, já que anuncia
o mesmo conteúdo que o professor Luiz Flávio Gomes advertia,
oculto na parte omitida de que, aos ricos, deve-se incentivar
a ocupação do centro da cidade.
A
doutrina que informa aquelas atitudes ficou ainda mais visível,
porém, quando, em outubro, o mesmo Subprefeito determinou a
realização de obras nos baixos da interligação das
avenidas Dr. Arnaldo, Rebouças e Paulista, supostamente para
afastar a presença de criminosos e reduzir a incidência de
assaltos nas imediações.
As
características da obra realizada, porém, a construção de
uma rampa inclinada com chapiscamento do piso, de modo que,
mais áspero, impossibilitasse os moradores de rua de dormirem
no local, denunciaram o real intento de incomodá-los e de
desencorajar sua permanência e pernoite, já que informações
da imprensa deram conta de que na passagem subterrânea vivia
um grupo de 30 pessoas, inclusive quatro crianças e um bebê
de 10 meses,
havendo mesmo quem já morasse ali há mais de 10 anos.
Também
as alegações do subprefeito Andrea Matarazzo ressoaram ôcas,
quando o Comando do Policiamento Militar da Capital,
por seu Porta-voz, Capitão Reinaldo Elizeu, afirmou que “não
houve aumento de ocorrências na passagem subterrânea onde
estão sendo construídas as rampas antimendigo.”
Nessa
oportunidade, ficou reiterada, também, uma postura dos
moradores de rua de buscar, na cidade, o local onde a vida
lhes possa ser possível. Se, ao tempo de Anatole France, os
baixos de uma ponte garantiam o abrigo das intempéries e a
possibilidade de, plantando, obter alimento, na atualidade os
quase proibidos vãos dos viadutos têm que estar somados à
proximidade do local onde a solidariedade permite a vida.
A
assistente social da Associação Paulista Viva, Lourdes Maria
Mascigrande, dava, naquela oportunidade, ciência de
levantamento sobre os moradores de rua da região da Paulista
e informava:
“O
morador de rua da avenida Paulista gosta do local onde vive. Lá,
afirmam, têm segurança e condições de sobrevivência.
Igrejas e associações dão comida, os vizinhos doam roupas e
não há brigas entre grupos de moradores como ocorre na praça
da Sé. Eles só sairiam de lá se tivessem emprego e casa
garantidos. Nada de albergue. Nenhum morador de rua da avenida
quer ir para um abrigo da prefeitura porque lá há um prazo
de estada.”
Trata-se,
portanto, não apenas de reconhecer que os indivíduos têm
direito à cidade, mas que, mesmo aqueles que nada têm, têm
direito à rua. E mais. Trata-se de reconhecer que o direito
à rua não consiste apenas no direito de lá estar,
mas o de lá viver. Com tudo o que viver implica – segurança, alimentação,
proteção, trabalho, etc.
Mesmo
o direito de estar
na rua, estar na cidade, porém, pareceu excluído da visão
higienista que dominou a prática da administração
paulistana, quando, antes mesmo do episódio das obras na
Avenida Paulista, em maio, a Secretaria de Desenvolvimento
Social executou a retirada do morador de rua Manoel Menezes
Silva do logradouro onde, há tempo, estabelecera seu abrigo,
conduzindo-o, primeiro, para um hospital psiquiátrico, depois
para um abrigo municipal, segundo consta a pedido de alguns
moradores, entre eles o próprio Secretário Municipal da
pasta, por estar a praça localizada em bairro dos mais
valorizados de capital paulista. Tendo esses eventos sido
noticiados pelo jornal Folha
de S.Paulo, foram impetrados habeas corpus em favor de
Manoel, que obteve sentença judicial em seu favor, afirmando:
Até
que se prove o contrário, o paciente é homem livre, não
interditado, que não parece oferecer risco a quem quer que
seja. Por ser assim, somente a ele pode caber a decisão sobre
o que seja melhor para si; se quer voltar para as ruas, se
quer permanecer no abrigo ou, ainda, se prefere uma outra via
pública para estar.
Evidenciado
que os moradores de rua têm direito constitucional a ela,
comprovou-se nesse episódio a existência de meios
processuais para buscar a garantia judicial de seu exercício.
É
certo que as normas processuais brasileiras estabelecem
verdadeiras emboscadas, que findam por atropelar o direito
material. Como, por exemplo, quando magistrados, observando
aquela exigência de que conste numa petição inicial o domicílio
do autor, entendido esse como seu local de moradia, não
reconhecem como tal o logradouro onde os excluídos têm residência.
Se
essa limitação já tem sérias repercussões quando se
tratam de ações cíveis ou trabalhistas, maiores ainda são
as repercussões na esfera processual penal. Assim como a
empresários e pessoas de posses é muitas vezes deferida a
liberdade por lhe ser reconhecido não terem interesse em
fugir à aplicação da lei, vezes sem conta a pobres é
negada liberdade provisória ou revogação de prisão
preventiva, alegada falta de ligação com o distrito da culpa
por não terem “residência fixa”.
Mais
do que o reconhecimeno do direito à moradia, do direito à
cidade, do direito à rua, portanto, estamos falando do
direito a ter direitos.
Aton Fon Filho é
advogado, diretor da Rede Social de Justiça e Direitos
Humanos e diretor do Sindicato dos Advogados do Estado de
São Paulo
Folha de S.Paulo, Caderno
Cotidiano – 23/09/2005
Folha de S.Paulo, Caderno
Folha Cotidiano, 24/09/2005.
Sentença da Dra Luciane
Jabur Mouchaloite Figueiredo, Juíza de Direito do
Departamento de Inquéritos Policiais, nos autos dos
Habeas Corpus 050.05040697-3 e 050.05041367-8, São Paulo,
24 de junho de 2005.
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