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Relatórios
 

A pobreza, a fome e as violações ao Direito Humano à Alimentação Adequada continuam a representar um enorme desafio a ser transposto pela sociedade Brasileira, especialmente no que se refere aos povos indígenas, aos quilombolas, aos afro-descendentes, às populações acampadas, assentadas, sem teto, em situação de rua, e aos que sobrevivem dos lixões. Ainda são milhões de famílias, que mesmo recebendo uma complementação de renda regular, não conseguem se inserir de forma sustentável no processo produtivo, com a possibilidade de garantir de forma digna a alimentação para si e para os familiares.

 

Fome Zero, Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e a promoção do Direito Humano à Alimentação Adequada

 Flavio Luiz Schieck Valente[1]

 

Contextualizando o debate

 

Já durante o período que precedeu o processo eleitoral de 2002, a proposta de implantação de um programa tendo como eixo central o combate à fome e à desnutrição foi alvo de intenso debate entre representantes de diferentes setores de movimentos sociais e da academia, no âmbito do processo de discussão do programa eleitoral do então candidato Luís Inácio Lula da Silva.

Desde o primeiro momento, ficou claro que havia uma proposta defendida pelo coordenador do processo, o futuro Ministro José Graziano, que propunha um programa de combate à fome centrado na criação de um Cartão ou Tíquete Alimentação, nos moldes do programa “Food Stamps”, implantado nos Estados Unidos da América durante a II Guerra Mundial e retomado a partir de 1961. A idéia central era que o cartão poderia aquecer a economia local, em especial o comércio, estimulando tanto a agricultura familiar como os setores do agronegócio produtores de alimentos, facilitando um amplo arco de alinaças, envolvendo setores do agronegócio e dos movimentos rurais. A esta proposta central, foram agregados vários programas complementares tais como: a implantação de restaurantes populares em centros urbanos; a implantação de bancos de alimentos e programas de abastecimento alimentar que fortalecessem a compra de alimentos diretamente dos agricultores familiares, também de interesse destes setores.

Partindo de uma outra perspectiva, o movimento nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, tendo o Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional como catalizador, e envolvendo um amplo conjunto de entidades e movimentos sociais que vem trabalhando com o tema há pelo menos duas décadas, propunha o combate à fome no contexto da construção de uma Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que articulasse as políticas públicas com o objetivo da garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada para todos os habitantes do território nacional.

 

A diferença entre as duas propostas era grande. A primeira colocava o combate à fome no contexto da garantia do acesso ao alimento, nos limites de uma política compensatória, sem abordar de forma adequada a questão da alimentação adequada, da nutrição, da segurança do alimento e do impacto das políticas econômicas sobre a segurança alimentar e nutricional. A segunda, por outro lado, propunha o combate à fome como parte integrante de uma revisão do modelo de desenvolvimento, promovendo-o no contexto da garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada e da inclusão social, ou seja, de forma articulada a promoção da agricultura familiar diversificada sustentável, da reforma agrária, de investimentos em infra-estrutura básica (saneamento, moradia, etc.), da nutrição, da inocuidade dos alimentos e da qualidade de vida para toda a população.

 

As duas posições também apresentavam diferentes propostas de arranjo institucional para a coordenação e implementação do programa ou política. A proposta centrada na criação do Cartão Alimentação propunha a criação de um Ministério da Alimentação, enquanto a que enfatizava o combate à fome no contexto de uma Política Nacional de SegurançaAlimentar e Nutricional, apontava para a necessidade de uma Secretaria Especial vinculada à Presidência da República capaz de coordenar as ações e políticas já desenvolvidas, e a serem desenvolvidas, por diferentes Ministérios.

 

Apesar da versão definitiva do projeto Fome Zero, lançado em outubro de 2001 sob o título “Projeto Fome Zero: uma proposta de política de Segurança Alimentar para o Brasil”, incorporar em seu texto proposições relativas à promoção do Direito Humano à Alimentação Adequada e à elaboração de uma Política de Segurança Alimentar, o projeto efetivamente implementado durante o primeiro ano do Governo Lula seguiu essencialmente a proposta original do então Ministro Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome (MESA), José Graziano, concentrando-se na implementação do Cartão Alimentação, apesar de contemplar um conjunto de 41 iniciativas.

 

Após um ano de muitas críticas, o MESA foi extinto, sendo as atividades desenvolvidas pelo mesmo absorvidas pelo recém criado Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, encarregado de finalizar a unificação dos programas de transferência de renda no Programa Bolsa Família e coordenar o Fome Zero. O primeiro ano do governo também foi marcado pela forte resistência da Secretaria Especial de Direitos Humanos em participar mais ativamente da discussão sobre o monitoramento do programa Fome Zero do ponto de vista da promoção do Direito Humano à Alimentação Adequada. A SEDH entendia que sua função se limitaria à gestão dos programas de Direitos Humanos por ela desenvolvidos, cabendo aos diferentes Ministérios a tarefa de incorporar a dimensão de Direitos Humanos em seus programas.

 

Fome Zero e Segurança Alimentar e Nutricional: conceitos e propostas em disputa

 

Um dos maiores avanços, que havia sido negociado enquanto parte do Projeto Fome Zero, foi a re-instituição do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, constituído majoritariamente por representantes da sociedade civil e movimentos sociais (dois terços) e tendo na presidência um conselheiro da sociedade civil. Este Conselho tem por atribuição legal o assessoramento da Presidência da República sobre o combate à fome e a política de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), com o objetivo, em lei,[2] de promover a realização do Direito Humano à Alimentação Adequada. Também foram instituídos Conselhos Estaduais de SAN, na maioria dos estados, com função semelhante à do Nacional.

 

O ano de 2004 marcou um novo momento no processo de disputa de projeto político em relação ao Combate à Fome. O debate desenvolvido em preparação para a II Conferência Nacional de SAN (II CNSAN), realizada em março de 2004, em Olinda, precedida por Conferencias municipais e estaduais, acabou por aprofundar a discussão e influenciar de uma maneira direta a transição da coordenação do MESA para o MDS. A II CNSAN estabeleceu a promoção da Soberania Alimentar e do Direito Humano à Alimentação Adequada como pilares de uma política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.

 

A Conferência demarcou um ponto de inflexão tanto nas atividades do CONSEA como na implementação dos programas públicos de SAN e de combate à Fome. O CONSEA, dando encaminhamento às decisões da II CNSAN, aprofundou o debate sobre:

1.      A relação entre o Fome Zero e o conjunto de Políticas Públicas relacionadas direta e indiretamente à promoção da SAN, e a necessidade de incorporar a dimensão da promoção da emancipação cidadã nas iniciativas de assistência alimentar emergencial.

2.      A elaboração de um Projeto de Lei orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional criando o Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional com o objetivo central de promover a realização do Direito Humano à Alimentação Adequada, institucionalizando o processo de elaboração da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional por meio do trabalho das Conferências e dos Conselhos municipais, estaduais e nacional de SAN, e estabelecendo a criação de uma coordenação interministerial para a implementação da política.

3.      O orçamento nacional, estabelecendo mecanismos de participação na elaboração, discussão no Congresso e monitoramento da execução do mesmo no que se refere a políticas e programas diretamente relacionados à garantida da SAN e do DHAA.

4.      A construção de um sistema de monitoramento da situação de Insegurança Alimentar e nutricional a partir da ótica do Direito Humano à Alimentação Adequada, com especial atenção aos grupos social e biologicamente vulneráveis.

5.      A avaliação continuada da implementação de políticas públicas relacionadas à SAN, com a apresentação de recomendações à Presidência da República e aos respectivos Ministérios.

 

Os debates desenvolvidos no seio do CONSEA tiveram repercussão tanto no Grupo de Trabalho do Fome Zero, grupo interministerial ligado à Câmara de Políticas Sociais da Casa Civil, como no próprio MDS. Durante os anos de 2004 e 2005 foi sendo construído o entendimento do Fome Zero, não como um programa ou política, mas como “uma estratégia impulsionada pelo Governo Federal para assegurar o direito humano à alimentação adequada às pessoas com dificuldades de acesso aos alimentos. Tal estratégia se insere na promoção da segurança alimentar e nutricional buscando a inclusão social e a conquista da cidadania da população mais vulnerável à fome.”[3]

 

A Política de Segurança Alimentar e Nutricional, por outro lado, no projeto de lei elaborado pelo governo e pela sociedade civil, em parceria, no contexto do CONSEA, incorpora as dimensões da produção de alimentos, em especial da agricultura familiar, do processamento, da industrialização, da comercialização, do abastecimento, incluindo a água, da geração de emprego e da redistribuição da renda, da biodiversidade, da promoção da saúde e da nutrição, da segurança dos alimentos, da educação alimentar, da promoção da alimentação saudável e da produção do conhecimento, com o objetivo de promover a realização do Direito Humano à Alimentação Adequada.[4]

 

A partir desta breve introdução, uma análise mais detalhada de alguns aspectos da política de combate à fome, no contexto da segurança alimentar e nutricional, a partir da ótica dos direitos humanos será desenvolvida nas seções que se seguem.

O Brasil e a prioridade ao combate à fome e à desnutrição no contexto internacional

 

A proposta do Governo Lula de priorizar o combate à fome, por meio da implementação de políticas públicas, representou uma verdadeira reviravolta na conjuntura internacional de consolidação da hegemonia norte-americana e do modelo de desenvolvimento econômico gerido pelas forças de mercado. A proposição do Governo Brasileiro que o combate à fome fosse recolocada como prioridade na agenda internacional encontrou eco entre países em desenvolvimento e mesmo entre países desenvolvidos que gostariam de se distanciar da “guerra contra o terrorismo” e fortalecer uma estratégia de “combate à fome e à pobreza” como alternativa à intensificação do militarismo e do unilateralismo.

 

Neste contexto, o Brasil assumiu uma posição de liderança na elaboração e aprovação das Diretrizes Voluntárias para a promoção da realização do Direito à Alimentação Adequada, no contexto da Segurança Alimentar Nacional[5], aprovadas em novembro de 2004, no âmbito da FAO, em contraposição aos interesses dos EUA e seus aliados que se negam a reconhecer os Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais como direitos humanos em pé de igualdade com os civis e políticos.

 

Mais recentemente, o Brasil vem propondo, com o apoio da França, Espanha, Chile, entre outros, a criação de um Fundo Internacional de Combate à Fome e à Pobreza, a ser gerido pela ONU, para apoiar iniciativas de inclusão social e de combate à fome e a pobreza nos países mais pobres do mundo. Esta proposta representa a colocação da promoção dos DHESC entre as prioridades econômicas da comunidade internacional, contrapondo-se ao discurso hegemônico de colocação do desenvolvimento á reboque e a serviço do fortalecimento da liberalização do mercado e manutenção das desigualdades.

 

O Fome Zero, a Política Pública de Segurança Alimentar e Nutricional, o modelo de desenvolvimento e a realização do Direito Humano à Alimentação Adequada.

 

Os programas incorporados na estratégia Fome Zero vem tendo seu orçamento aumentado ano a ano, variando de 5,7 bilhões de reais, em 2003, para 12,3 bilhões, em 2005[6], com fortalecimento do componente do programa de transferência de renda, da alimentação escolar, promoção da alimentação saudável, do apoio à agricultura familiar, geração de emprego e renda, apoio à alimentação indígena, distribuição de alimentos em situações de emergência, entre outros. Em outubro de 2005:

1.      8 milhões de famílias são beneficiadas pelo Bolsa Família, aproximadamente 35 milhões de pessoas, sendo prevista a expansão a 11 milhões de famílias em 2006;

2.      houve um aumento de 38% no per capita do Programa de Alimentação Escolar que atende 37 milhões de crianças e adolescentes, após 10 anos de congelamento do valor;

3.      foi instituído programa especial de alimentação para escolares quilombolas e indígenas, com um per capita duas vezes o do programa regular;

 

Também vem aumentando os gastos com programas de caráter estruturante como a Reforma Agrária e outros componentes da política de apoio à Agricultura Familiar, que se integram às Políticas de SAN, totalizando cerca de 28 bilhões de reais em investimento de 2003 a 2005.

 

Apesar de todos estes avanços, a pobreza, a fome e as violações ao Direito Humano à Alimentação Adequada continuam a representar um enorme desafio a ser transposto pela sociedade Brasileira, especialmente no que se refere aos povos indígenas, aos quilombolas, aos afro descendentes, às populações acampadas, assentadas, sem teto, em situação de rua, e aos que sobrevivem dos lixões. Ainda são milhões de famílias, que mesmo recebendo uma complementação de renda regular, não conseguem se inserir de forma sustentável no processo produtivo, com a possibilidade de garantir de forma digna a alimentação para si e para os familiares.

 

Em grande parte, isto é resultado do modelo de desenvolvimento adotado, expressado no conjunto das políticas macroeconômicas, fiscais e monetárias, incluindo as relacionadas ao pagamento dos juros e serviços da dívida pública, e mesmo de apoio ao agronegócio (soja, açúcar e álcool, pecuária, etc.) e de fortalecimento da infra-estrutura energética, e outros megaprojetos (pólos siderúrgicos, transposição do São Francisco, etc.) que continuam:

1.      a expulsar um grande contingente de pequenos produtores rurais, em especial populações tradicionais, ou mesmo a desestruturar sua capacidade produtiva, violando os seus direitos humanos à alimentação, à água e à terra, entre outros.

2.      a impor condições subumanas de trabalho aos trabalhadores rurais, muitas vezes em situações análogas à escravidão, mesmo em áreas ricas do país como nos canaviais da macro região de Ribeirão Preto, a Califórnia brasileira;

3.      a deixar milhões de brasileiros em condições crônicas de desemprego, sub-emprego  e péssimas condições de vida e de moradia, nas periferias das grandes, médias e pequenas cidades, à mercê do tráfico de drogas e do crime organizado.

4.      a deixar milhões de famílias brasileiras sem acesso a serviços públicos básicos como moradia popular, educação, saúde, abastecimento de água, saneamento entre outros.

 

A avaliação do projeto Relatores Nacionais DHESC, contida no Relatório de 2004[7], é que o impacto do conjunto destes megaprojetos, em termos de violações de direitos humanos, é muito maior que os eventuais avanços obtidos em decorrência das políticas desenvolvidas no contexto da estratégia do Fome Zero.

 

Outros obstáculos à realização do DHAA foram identificados pela Relatoria Nacional para o Direito Humano à Alimentação Adequada, Água e Terra Rural são:

  1. Modelo concentrador de terra e riqueza;

  2. Submissão às imposições dos acordos com o FMI e Consenso de Washington, que se manifesta em:

    1. Política monetária e de juros que potencializa o crescimento da dívida pública e constrange o desenvolvimento econômico e a geração de empregos;

    2. Política de manutenção da garantia do superávit primário com cortes nos programas sociais e contenção nos investimentos de infra-estrutura (habitação, saneamento, etc.);

    3. Estímulo ao agronegócio e à expansão de monocultura da soja, do açúcar e da pecuária extensiva, para exportação;

    4. Política energética visando atrair investimentos internacionais, que desloca milhares de famílias destruindo a capacidade produtiva e de garantia da SAN das mesmas;

  3. Não proteção das famílias contra práticas de intimidação e violência, incluindo assassinatos, por parte de grileiros, grandes fazendeiros, madeireiros, grandes construtoras, usinas hidrelétricas, siderúrgicas, etc.

  4. Fortes indícios de conivência dos Poderes Legislativo e Judiciário com os interesses políticos e econômicos hegemônicos, em especial, em âmbito local;

  5. Forte cultura de paternalismo e assistencialismo que ainda prevalece em nossa sociedade, expressando-se na falta de reconhecimento da população enquanto titular de direitos e dos gestores públicos como portadores de obrigações e deveres. Ainda se mantém a cultura do “favor” feito com recurso público, em troca de votos ou mesmo “agradecimento”.

  6. Programas públicos, como o Bolsa Família, apesar do discurso de direitos humanos, ainda não são vistos como parte do processo de realização do Direito Humano das famílias que o recebem, tanto que ainda se mantém condicionalidades, ou obrigações que “devem ser cumpridas” pelas famílias, para a garantia de sua permanência no programa.

  7. Forte cultura de discriminação da população afro-descendente, quilombola, indígena, portadores de necessidades especiais, e outros grupos que se diferenciam da norma, por características pessoais ou opções de vida.

  8. Falta de acesso à justiça, criminalização dos movimentos sociais e impunidade.

  9. Falta de definição clara das atribuições dos diferentes níveis de governo em relação às obrigações de respeitar, proteger, promover e prover o Direito Humano à Alimentação Adequada.

 

A partir da ótica da promoção e proteção dos direitos humanos, e das obrigações atribuídas ao Estado pelos tratados e pactos internacionais de direitos humanos, ou seja, as de Respeitar, Proteger, Promover e Prover, o estado brasileiro está dando os primeiros passos na dimensão de:

1.      Prover, por meio dos programas tais como o bolsa Família, restaurantes populares, bancos de alimento, distribuições de alimentos, entre outros; e

2.      Promover, por meio de programas como a Alimentação Escolar, cisternas, hortas comunitárias, promoção da alimentação saudável, reforma agrária, programa de saúde da família, qualificação profissional, micro crédito produtivo,  financiamento da agricultura familiar, programa de aquisição de alimentos do agricultor familiar, vigilância alimentar e nutricional, mobilização social, educação alimentar,  entre outros;

 

No entanto, tais atividades ainda não são vistas como parte da realização de um direito humano das pessoas e resultante do cumprimento de uma obrigação do Estado (federal, estadual e municipal). Isto se reflete em que:

1.      os setores mais pobres e excluídos da população ainda continuam a ser os menos beneficiados por estes programas, devido a continuidade de práticas clientelistas e assistencialistas por parte de políticos e gestores públicos;

2.      a população ainda não está adequadamente informada sobre seus direitos e a quem reclamar caso os mesmos não seja garantidos;

3.      ainda são inexistentes mecanismos eficientes que permitam que pessoas que se sintam prejudicadas em seus direitos possam reclamar;

4.      ainda permanece no setor público a cultura do “favor” ou da “troca de favores”.

 

Enquanto os programas de provimento e promoção de direitos não for efetivamente articulado com iniciativas que, por um lado, reforcem a consciência da titularidade do direito e, de outro, garantam a efetiva inclusão social da população mais pobre no rol das pessoas com acesso real a condições dignas de vida, a serviços públicos e oportunidades de trabalho e de geração de renda sustentáveis, tais programa poderão ser facilmente seqüestrados politicamente por novas iniciativas eleitoreiras e preservadoras do modelo de dominação e dependência, violador dos direitos humanos.

 

Por outro lado, as obrigações de Respeitar e Proteger o Direito Humano à Alimentação, são as que mais continuam a ser violadas, sistematicamente, pelo Estado Brasileiro, seja em decorrência da submissão às diretivas dos organismos financeiros internacionais, seja pela manutenção descarada dos privilégios da elite econômica e política brasileira que se utiliza privadamente dos recursos e instituições públicas para manter e aprofundar sua hegemonia sobre a economia e a sociedade brasileira, manipulando instituições do poder executivo, legislativo e judiciário a seu favor.

 

O poder descomensurado do Banco Central, nitidamente aliado a interesses econômicos internacionais e do capital financeiro nacional, a cada decisão de aumentar ou manter os juros básicos, destrói empregos e provoca inevitáveis cortes em investimentos e programas sociais, anulando os esforços desenvolvidos pelo Fome Zero. Cada decisão do Ministério da Agricultura e do Ministério do desenvolvido, controlados pelo agro negócio, de expandir a monocultura da soja e, da cana (açúcar e álcool), de apoiar a expansão da carcinocultura e a pecuária, levam à destruição do modo e condições de vida de milhares, senão milhões de famílias de agricultores familiares, quilombolas, pescadores artesanais, caiçaras e agro-extrativistas, expulsando-se de suas terras e águas tradicionais e jogando-os na miséria das periferias urbanas e metropolitanas, em condições subumanas de vida. A omissão do IBAMA em proteger nascentes de rios e áreas de preservação prova não só a destruição de modos de vida como a destruição da rica biodiversidade do território brasileiro, a serviços da aceleração do lucro rápido, para a obtenção das divisas necessárias para o pagamento da dívida e para enriquecer outros.

 

Assim, o desafio que se coloca é em pelo menos quatro dimensões principais:

  1. lutar pela efetiva incorporação dos princípios de direitos humanos em todos os programas governamentais, fortalecendo a titularidade dos direitos, a responsabilização dos agentes públicas pelo cumprimento das obrigações do Estado estabelecidas nos tratados internacionais  de direitos humanos, firmados pelo Brasil, e a efetiva operacionalização do direito de exigir os direitos na esfera administrativa, quase judicial e judicial, quando for o caso.

  2. ampliar a mobilização social em direção à exigência de relatórios de impacto de megaprojetos sobre os direitos humanos das populações eventualmente afetadas, como um mecanismo de prevenção de violações maiores, ao mesmo tempo em que continuamos a lutar pela reparação de violações já ocorridas.

  3. intensificar a discussão sobre o orçamento público e exigir que a política monetária e a alocação de recursos públicos para o pagamento da dívida pública e, conseqüentemente, o estabelecimento do superávit primário, sejam alvo de uma ampla discussão da sociedade brasileira, rejeitando-se os valores atuais como fatos dados, transformando-os em objeto de decisão política da população.

  4. consolidar o sistema nacional de Direitos humanos, composto de instituições de promoção, proteção  e monitoramento da realização dos Direitos Humanos, integralmente em consonância com os Princípios de Paris[8], que estabelecem que as instituições de direitos Humanos devem ser publicamente financiadas, ao mesmo tempo em que totalmente independentes do governo, e dos outros poderes do Estado, sendo capaz de emitir recomendações finalísticas ao poder público e ao setor privado, ou seja, sem ter que ser submetidas a qualquer outra instância decisória ou legitimadora.

 

Ao mesmo tempo, temos que enfrentar os outros obstáculos identificados, o que somente será conseguido com um trabalho integrado dos movimentos sociais, das entidades de direitos humanos, da sociedade civil organizada com o Ministério Público, em seus diferentes níveis.

 

Uma análise preliminar do CONSEA sobre o projeto de lei referente ao ano de 2006, enviado ao Congresso pelo Executivo, observa-se um ligeiro aumento nos recursos alocados para o Fome Zero e políticas de SAN, com um aumento expressivo de recursos para o Bolsa Família, e uma redução significativa (cerca de 20%) para os programas de caráter estruturante como saneamento básico, apoio á regularização de terras quilombolas, entre outros. Isto certamente é um reflexo da ainda hegemônica posição do setor econômico do governo que persiste em limitar os investimentos voltados para a promoção do desenvolvimento humano e social.

 

Somente com um aumento significativo da pressão da sociedade, os grupos hegemônicos que controlam o Brasil passarão a cumprir com as obrigações de promoção dos Direitos Humanos que assumiram em nome da população brasileira. Cabe-nos agora, cobrar.

 

A implementação dos programas da Estratégia Fome Zero e a promoção e proteção da Realização do Direito Humano á Alimentação

 

Durante os anos de 2004 e 2005, a Comissão Permanente para a Promoção do Direito Humano à Alimentação Adequada, criada pelo CONSEA nacional em Setembro de 2004, vem desenvolvendo uma metodologia de avaliação da implementação de programas e políticas de Segurança Alimentar e Nutricional, a partir da ótica do Direito Humano à Alimentação Adequada. Até o momento foram avaliados o Programa Nacional de Alimentação Escolar e o Bolsa Família, tendo sido constatadas uma série de práticas que se constituem em violações do DHAA.

 

Em diálogo com os gestores dos referidos programas, a Comissão apresentou um conjunto de recomendações ao Governo, cuja efetivação será avaliada em uma nova rodada de avaliação no ano de 2006. Além de apresentar recomendações, a Comissão tem apoiado os gestores na busca de alternativas de superação dos problemas identificados.

 

Entre os principais problemas identificados no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) podem ser citados:

  1. O PNAE não atende a todas as crianças e adolescentes em idade escolar, nem mesmo todos os escolares, em especial aqueles que vivem em acampamentos, assentamentos, terras quilombolas e áreas de periferia urbana;

  2. Escolares do segundo grau continuam a não receber o PNAE;

  3. O acesso regular de escolares ao PNAE continua a ser interrompido nos municípios onde não houve prestação de contas por parte do gestor público, configurando-se a punição das crianças por irregularidades praticadas pelo governo;

  4. Não existem instrumentos de recurso disponíveis aos escolares e seus familiares que permitam a apresentação de eventuais denúncias de violação do DHAA para averiguação e reparação;

  5. Crianças portadores de necessidades alimentares especiais (diabetes, doença celíaca, fenilcetonúria) continuam a ser discriminadas e a não receber alimentação especial adequada à sua condição.

 

Para cada uma das constatações foram apresentadas recomendações aos gestores do programa no sentido da superação das situações de violação.

 

No caso do Programa Bolsa Família foram constatadas as seguintes situações de violação:

  1. A linguagem dos materiais produzidos e a própria prática do programa não incorporam a cultura de direitos humanos, refletindo um distanciamento entre o discurso político de promoção do DHAA e a operacionalização do Programa.

  2. Persiste a tendência à não inclusão no programa dos mais vulneráveis, em parte devido às limitações do Cadastro Único, mas também devido à não utilização da busca ativa por parte das autoridades municipais.

  3. O programa, apesar de uma mudança no discurso, não demonstra intenção concreta de fazer modificações necessárias no sentido de adequar-se às características culturais especiais dos povos indígenas e populações tradicionais, incluindo aí os quilombolas, ferindo dispositivos de tratados internacionais que estabelecem a obrigatoriedade de consentimento prévio informado e de implementação de políticas públicas específicas e diferenciadas.

  4. A manutenção de condicionalidades ou contrapartidas para a manutenção do acesso ao Bolsa Família, estabelecendo-se a exclusão do programa como punição para as famílias que não cumprirem as mesmas, quando do ponto de vista de direitos, estas famílias tem também o direito de ter acesso à saúde e à educação, sendo a obrigação de garantir isto do Estado e não das famílias.

  5. Não disponibilização de instrumentos de recurso de fato acessíveis às famílias que teriam direito ao programa e que porventura não o estejam recebendo, ou mesmo não tenham sido cadastradas para tal.

 

 

Sem dúvida alguma, a realização do DHAA exige de um lado uma mudança do modelo econômico que continua a excluir amplos setores da população dos benefícios do desenvolvimento, e para tal o governo Brasileiro terá que se aliar à população brasileira e a outros governos para enfrentar os interesses internacionais e nacionais que se opõem a este projeto de construção de um Brasil e de um mundo mais justo. De outro, o fortalecimento dos mecanismos de exigibilidade de direitos permitirá o aumento da pressão da sociedade civil e movimentos sociais sobre o Estado e o poder instituído, reduzindo as desigualdades no nível micro e empoderando as pessoas, os grupos e as comunidades para incidir de uma forma ainda mais efetiva na luta por mudanças no modelo, ao mesmo tempo em que melhoram sua qualidade de vida. Todos os espaços de luta são importantes.

 



[1] Médico, FMUSP - 1972; mestre em nutrição e Saúde Pública, Harvard School of Public Health, 1976. Relator Nacional para os Direitos Humanos à Alimentação, Água e Terra Rural, da Plataforma de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais, com o apoio do Programa de Voluntários da ONU; Coordenador Técnico da Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos (ABRANDH).

[2] Lei 10.683, de 28 de maio de 2003.

[3] ARANHA, A in: http://www.mds.gov.br/ascom/hot_sa/artigo8.htm acessado no dia 23/10/2005.

[4] Projeto de Lei 6047/2005 in https://www.planalto.gov.br/consea/exec/index.cfm acessado no dia 23/10/2005.

[5] FAO, 2004 “Diretrizes Voluntárias para a promoção da realização progressiva do Direito à Alimentação Adequada, no contexto da Segurança Alimentar nacional. in: https://www.planalto.gov.br/consea/static/documentos/dietrizesvoluntarias.pdf acessado em 23/10/2005

[6] MDS,2005. “Mais verbas ano a ano” in: http://www.njobs.com.br/fome0/conteudo/html/02_esforco_01.htm acessado em 23/10/2005.

[7] Plataforma DHESC, Relatorias Nacionais em Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais – Informe 2004. Plataforma DHESC, Rio de Janeiro, 2005.

[8] ONU. Paris Principles in:  Fact Sheet no. 19. National Institutions for the promotion and protection of Human Rights.  Alto Comissariado de Direitos Humanos. 1991.