A pobreza, a fome e as
violações ao Direito Humano à Alimentação Adequada
continuam a representar um enorme desafio a ser transposto
pela sociedade Brasileira, especialmente no que se refere aos
povos indígenas, aos quilombolas, aos afro-descendentes, às
populações acampadas, assentadas, sem teto, em situação de
rua, e aos que sobrevivem dos lixões. Ainda são milhões de
famílias, que mesmo recebendo uma complementação de renda
regular, não conseguem se inserir de forma sustentável no
processo produtivo, com a possibilidade de garantir de forma
digna a alimentação para si e para os familiares.
Fome
Zero, Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
e a promoção do Direito Humano à Alimentação Adequada
Flavio
Luiz Schieck Valente
Contextualizando
o debate
Já
durante o período que precedeu o processo eleitoral de 2002,
a proposta de implantação de um programa tendo como eixo
central o combate à fome e à desnutrição foi alvo de
intenso debate entre representantes de diferentes setores de
movimentos sociais e da academia, no âmbito do processo de
discussão do programa eleitoral do então candidato Luís Inácio
Lula da Silva.
Desde
o primeiro momento, ficou claro que havia uma proposta
defendida pelo coordenador do processo, o futuro Ministro José
Graziano, que propunha um programa de combate à fome centrado
na criação de um Cartão ou Tíquete Alimentação, nos
moldes do programa “Food Stamps”, implantado nos Estados
Unidos da América durante a II Guerra Mundial e retomado a
partir de 1961. A idéia central era que o cartão poderia
aquecer a economia local, em especial o comércio, estimulando
tanto a agricultura familiar como os setores do agronegócio
produtores de alimentos, facilitando um amplo arco de alinaças,
envolvendo setores do agronegócio e dos movimentos rurais. A
esta proposta central, foram agregados vários programas
complementares tais como: a implantação de restaurantes
populares em centros urbanos; a implantação de bancos de
alimentos e programas de abastecimento alimentar que
fortalecessem a compra de alimentos diretamente dos
agricultores familiares, também de interesse destes setores.
Partindo
de uma outra perspectiva, o movimento nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional, tendo o Fórum Brasileiro de Segurança
Alimentar e Nutricional como catalizador, e envolvendo um
amplo conjunto de entidades e movimentos sociais que vem
trabalhando com o tema há pelo menos duas décadas, propunha
o combate à fome no contexto da construção de uma Política
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que
articulasse as políticas públicas com o objetivo da garantia
do Direito Humano à Alimentação Adequada para todos os
habitantes do território nacional.
A
diferença entre as duas propostas era grande. A primeira
colocava o combate à fome no contexto da garantia do acesso
ao alimento, nos limites de uma política compensatória, sem
abordar de forma adequada a questão da alimentação
adequada, da nutrição, da segurança do alimento e do
impacto das políticas econômicas sobre a segurança
alimentar e nutricional. A segunda, por outro lado, propunha o
combate à fome como parte integrante de uma revisão do
modelo de desenvolvimento, promovendo-o no contexto da
garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada e da
inclusão social, ou seja, de forma articulada a promoção da
agricultura familiar diversificada sustentável, da reforma
agrária, de investimentos em infra-estrutura básica
(saneamento, moradia, etc.), da nutrição, da inocuidade dos
alimentos e da qualidade de vida para toda a população.
As
duas posições também apresentavam diferentes propostas de
arranjo institucional para a coordenação e implementação
do programa ou política. A proposta centrada na criação do
Cartão Alimentação propunha a criação de um Ministério
da Alimentação, enquanto a que enfatizava o combate à fome
no contexto de uma Política Nacional de SegurançaAlimentar e
Nutricional, apontava para a necessidade de uma Secretaria
Especial vinculada à Presidência da República capaz de
coordenar as ações e políticas já desenvolvidas, e a serem
desenvolvidas, por diferentes Ministérios.
Apesar
da versão definitiva do projeto Fome Zero, lançado em
outubro de 2001 sob o título “Projeto Fome Zero: uma
proposta de política de Segurança Alimentar para o
Brasil”, incorporar em seu texto proposições relativas à
promoção do Direito Humano à Alimentação Adequada e à
elaboração de uma Política de Segurança Alimentar, o
projeto efetivamente implementado durante o primeiro ano do
Governo Lula seguiu essencialmente a proposta original do então
Ministro Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à
Fome (MESA), José Graziano, concentrando-se na implementação
do Cartão Alimentação, apesar de contemplar um conjunto de
41 iniciativas.
Após
um ano de muitas críticas, o MESA foi extinto, sendo as
atividades desenvolvidas pelo mesmo absorvidas pelo recém
criado Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à
Fome, encarregado de finalizar a unificação dos programas de
transferência de renda no Programa Bolsa Família e coordenar
o Fome Zero. O primeiro ano do governo também foi marcado
pela forte resistência da Secretaria Especial de Direitos
Humanos em participar mais ativamente da discussão sobre o
monitoramento do programa Fome Zero do ponto de vista da promoção
do Direito Humano à Alimentação Adequada. A SEDH entendia
que sua função se limitaria à gestão dos programas de
Direitos Humanos por ela desenvolvidos, cabendo aos diferentes
Ministérios a tarefa de incorporar a dimensão de Direitos
Humanos em seus programas.
Fome
Zero e Segurança Alimentar e Nutricional: conceitos e
propostas em disputa
Um
dos maiores avanços, que havia sido negociado enquanto parte
do Projeto Fome Zero, foi a re-instituição do Conselho
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, constituído
majoritariamente por representantes da sociedade civil e
movimentos sociais (dois terços) e tendo na presidência um
conselheiro da sociedade civil. Este Conselho tem por atribuição
legal o assessoramento da Presidência da República sobre o
combate à fome e a política de Segurança Alimentar e
Nutricional (SAN), com o objetivo, em lei,
de promover a realização do Direito Humano à Alimentação
Adequada. Também foram instituídos Conselhos Estaduais de
SAN, na maioria dos estados, com função semelhante à do
Nacional.
O
ano de 2004 marcou um novo momento no processo de disputa de
projeto político em relação ao Combate à Fome. O debate
desenvolvido em preparação para a II Conferência Nacional
de SAN (II CNSAN), realizada em março de 2004, em Olinda,
precedida por Conferencias municipais e estaduais, acabou por
aprofundar a discussão e influenciar de uma maneira direta a
transição da coordenação do MESA para o MDS. A II CNSAN
estabeleceu a promoção da Soberania Alimentar e do Direito
Humano à Alimentação Adequada como pilares de uma política
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.
A
Conferência demarcou um ponto de inflexão tanto nas
atividades do CONSEA como na implementação dos programas públicos
de SAN e de combate à Fome. O CONSEA, dando encaminhamento às
decisões da II CNSAN, aprofundou o debate sobre:
1.
A relação entre o Fome Zero e o conjunto de Políticas
Públicas relacionadas direta e indiretamente à promoção da
SAN, e a necessidade de incorporar a dimensão da promoção
da emancipação cidadã nas iniciativas de assistência
alimentar emergencial.
2.
A elaboração de um Projeto de Lei orgânica de
Segurança Alimentar e Nutricional criando o Sistema de
Segurança Alimentar e Nutricional com o objetivo central de
promover a realização do Direito Humano à Alimentação
Adequada, institucionalizando o processo de elaboração da
Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional por
meio do trabalho das Conferências e dos Conselhos municipais,
estaduais e nacional de SAN, e estabelecendo a criação de
uma coordenação interministerial para a implementação da
política.
3.
O orçamento nacional, estabelecendo mecanismos de
participação na elaboração, discussão no Congresso e
monitoramento da execução do mesmo no que se refere a políticas
e programas diretamente relacionados à garantida da SAN e do
DHAA.
4.
A construção de um sistema de monitoramento da situação
de Insegurança Alimentar e nutricional a partir da ótica do
Direito Humano à Alimentação Adequada, com especial atenção
aos grupos social e biologicamente vulneráveis.
5.
A avaliação continuada da implementação de políticas
públicas relacionadas à SAN, com a apresentação de
recomendações à Presidência da República e aos
respectivos Ministérios.
Os
debates desenvolvidos no seio do CONSEA tiveram repercussão
tanto no Grupo de Trabalho do Fome Zero, grupo
interministerial ligado à Câmara de Políticas Sociais da
Casa Civil, como no próprio MDS. Durante os anos de 2004 e
2005 foi sendo construído o entendimento do Fome Zero, não
como um programa ou política, mas como “uma estratégia
impulsionada pelo Governo Federal para assegurar o direito
humano à alimentação adequada às pessoas com dificuldades
de acesso aos alimentos. Tal estratégia se insere na promoção
da segurança alimentar e nutricional buscando a inclusão
social e a conquista da cidadania da população mais vulnerável
à fome.”
A
Política de Segurança Alimentar e Nutricional, por outro
lado, no projeto de lei elaborado pelo governo e pela
sociedade civil, em parceria, no contexto do CONSEA, incorpora
as dimensões da produção de alimentos, em especial da
agricultura familiar, do processamento, da industrialização,
da comercialização, do abastecimento, incluindo a água, da
geração de emprego e da redistribuição da renda, da
biodiversidade, da promoção da saúde e da nutrição, da
segurança dos alimentos, da educação alimentar, da promoção
da alimentação saudável e da produção do conhecimento,
com o objetivo de promover a realização do Direito Humano à
Alimentação Adequada.
A
partir desta breve introdução, uma análise mais detalhada
de alguns aspectos da política de combate à fome, no
contexto da segurança alimentar e nutricional, a partir da ótica
dos direitos humanos será desenvolvida nas seções que se
seguem.
O
Brasil e a prioridade ao combate à fome e à desnutrição no
contexto internacional
A
proposta do Governo Lula de priorizar o combate à fome, por
meio da implementação de políticas públicas, representou
uma verdadeira reviravolta na conjuntura internacional de
consolidação da hegemonia norte-americana e do modelo de
desenvolvimento econômico gerido pelas forças de mercado. A
proposição do Governo Brasileiro que o combate à fome fosse
recolocada como prioridade na agenda internacional encontrou
eco entre países em desenvolvimento e mesmo entre países
desenvolvidos que gostariam de se distanciar da “guerra
contra o terrorismo” e fortalecer uma estratégia de
“combate à fome e à pobreza” como alternativa à
intensificação do militarismo e do unilateralismo.
Neste
contexto, o Brasil assumiu uma posição de liderança na
elaboração e aprovação das Diretrizes Voluntárias para a
promoção da realização do Direito à Alimentação
Adequada, no contexto da Segurança Alimentar Nacional,
aprovadas em novembro de 2004, no âmbito da FAO, em
contraposição aos interesses dos EUA e seus aliados que se
negam a reconhecer os Direitos Humanos Econômicos, Sociais e
Culturais como direitos humanos em pé de igualdade com os
civis e políticos.
Mais
recentemente, o Brasil vem propondo, com o apoio da França,
Espanha, Chile, entre outros, a criação de um Fundo
Internacional de Combate à Fome e à Pobreza, a ser gerido
pela ONU, para apoiar iniciativas de inclusão social e de
combate à fome e a pobreza nos países mais pobres do mundo.
Esta proposta representa a colocação da promoção dos DHESC
entre as prioridades econômicas da comunidade internacional,
contrapondo-se ao discurso hegemônico de colocação do
desenvolvimento á reboque e a serviço do fortalecimento da
liberalização do mercado e manutenção das desigualdades.
O
Fome Zero, a Política Pública de Segurança Alimentar e
Nutricional, o modelo de desenvolvimento e a realização do
Direito Humano à Alimentação Adequada.
Os
programas incorporados na estratégia Fome Zero vem tendo seu
orçamento aumentado ano a ano, variando de 5,7 bilhões de
reais, em 2003, para 12,3 bilhões, em 2005,
com fortalecimento do componente do programa de transferência
de renda, da alimentação escolar, promoção da alimentação
saudável, do apoio à agricultura familiar, geração de
emprego e renda, apoio à alimentação indígena, distribuição
de alimentos em situações de emergência, entre outros. Em
outubro de 2005:
1.
8 milhões de famílias são beneficiadas pelo Bolsa
Família, aproximadamente 35 milhões de pessoas, sendo
prevista a expansão a 11 milhões de famílias em 2006;
2.
houve um aumento de 38% no per capita do Programa de
Alimentação Escolar que atende 37 milhões de crianças e
adolescentes, após 10 anos de congelamento do valor;
3.
foi instituído programa especial de alimentação para
escolares quilombolas e indígenas, com um per capita duas
vezes o do programa regular;
Também
vem aumentando os gastos com programas de caráter
estruturante como a Reforma Agrária e outros componentes da
política de apoio à Agricultura Familiar, que se integram às
Políticas de SAN, totalizando cerca de 28 bilhões de reais
em investimento de 2003 a 2005.
Apesar
de todos estes avanços, a pobreza, a fome e as violações ao
Direito Humano à Alimentação Adequada continuam a
representar um enorme desafio a ser transposto pela sociedade
Brasileira, especialmente no que se refere aos povos indígenas,
aos quilombolas, aos afro descendentes, às populações
acampadas, assentadas, sem teto, em situação de rua, e aos
que sobrevivem dos lixões. Ainda são milhões de famílias,
que mesmo recebendo uma complementação de renda regular, não
conseguem se inserir de forma sustentável no processo
produtivo, com a possibilidade de garantir de forma digna a
alimentação para si e para os familiares.
Em
grande parte, isto é resultado do modelo de desenvolvimento
adotado, expressado no conjunto das políticas macroeconômicas,
fiscais e monetárias, incluindo as relacionadas ao pagamento
dos juros e serviços da dívida pública, e mesmo de apoio ao
agronegócio (soja, açúcar e álcool, pecuária, etc.) e de
fortalecimento da infra-estrutura energética, e outros
megaprojetos (pólos siderúrgicos, transposição do São
Francisco, etc.) que continuam:
1.
a expulsar um grande contingente de pequenos produtores
rurais, em especial populações tradicionais, ou mesmo a
desestruturar sua capacidade produtiva, violando os seus
direitos humanos à alimentação, à água e à terra, entre
outros.
2.
a impor condições subumanas de trabalho aos
trabalhadores rurais, muitas vezes em situações análogas à
escravidão, mesmo em áreas ricas do país como nos canaviais
da macro região de Ribeirão Preto, a Califórnia brasileira;
3.
a deixar milhões de brasileiros em condições crônicas
de desemprego, sub-emprego
e péssimas condições de vida e de moradia, nas
periferias das grandes, médias e pequenas cidades, à mercê
do tráfico de drogas e do crime organizado.
4.
a deixar milhões de famílias brasileiras sem acesso a
serviços públicos básicos como moradia popular, educação,
saúde, abastecimento de água, saneamento entre outros.
A
avaliação do projeto Relatores Nacionais DHESC, contida no
Relatório de 2004,
é que o impacto do conjunto destes megaprojetos, em termos de
violações de direitos humanos, é muito maior que os
eventuais avanços obtidos em decorrência das políticas
desenvolvidas no contexto da estratégia do Fome Zero.
Outros
obstáculos à realização do DHAA foram identificados pela
Relatoria Nacional para o Direito Humano à Alimentação
Adequada, Água e Terra Rural são:
-
Modelo
concentrador de terra e riqueza;
-
Submissão
às imposições dos acordos com o FMI e Consenso de
Washington, que se manifesta em:
-
Política
monetária e de juros que potencializa o crescimento da
dívida pública e constrange o desenvolvimento econômico
e a geração de empregos;
-
Política
de manutenção da garantia do superávit primário com
cortes nos programas sociais e contenção nos
investimentos de infra-estrutura (habitação,
saneamento, etc.);
-
Estímulo
ao agronegócio e à expansão de monocultura da soja,
do açúcar e da pecuária extensiva, para exportação;
-
Política
energética visando atrair investimentos internacionais,
que desloca milhares de famílias destruindo a
capacidade produtiva e de garantia da SAN das mesmas;
-
Não
proteção das famílias contra práticas de intimidação
e violência, incluindo assassinatos, por parte de
grileiros, grandes fazendeiros, madeireiros, grandes
construtoras, usinas hidrelétricas, siderúrgicas, etc.
-
Fortes
indícios de conivência dos Poderes Legislativo e Judiciário
com os interesses políticos e econômicos hegemônicos,
em especial, em âmbito local;
-
Forte
cultura de paternalismo e assistencialismo que ainda
prevalece em nossa sociedade, expressando-se na falta de
reconhecimento da população enquanto titular de direitos
e dos gestores públicos como portadores de obrigações e
deveres. Ainda se mantém a cultura do “favor” feito
com recurso público, em troca de votos ou mesmo
“agradecimento”.
-
Programas
públicos, como o Bolsa Família, apesar do discurso de
direitos humanos, ainda não são vistos como parte do
processo de realização do Direito Humano das famílias
que o recebem, tanto que ainda se mantém
condicionalidades, ou obrigações que “devem ser
cumpridas” pelas famílias, para a garantia de sua
permanência no programa.
-
Forte
cultura de discriminação da população
afro-descendente, quilombola, indígena, portadores de
necessidades especiais, e outros grupos que se diferenciam
da norma, por características pessoais ou opções de
vida.
-
Falta
de acesso à justiça, criminalização dos movimentos
sociais e impunidade.
-
Falta
de definição clara das atribuições dos diferentes níveis
de governo em relação às obrigações de respeitar,
proteger, promover e prover o Direito Humano à Alimentação
Adequada.
A
partir da ótica da promoção e proteção dos direitos
humanos, e das obrigações atribuídas ao Estado pelos
tratados e pactos internacionais de direitos humanos, ou seja,
as de Respeitar, Proteger, Promover e Prover, o estado
brasileiro está dando os primeiros passos na dimensão de:
1.
Prover, por meio dos programas tais como o bolsa Família,
restaurantes populares, bancos de alimento, distribuições de
alimentos, entre outros; e
2.
Promover, por meio de programas como a Alimentação
Escolar, cisternas, hortas comunitárias, promoção da
alimentação saudável, reforma agrária, programa de saúde
da família, qualificação profissional, micro crédito
produtivo, financiamento
da agricultura familiar, programa de aquisição de alimentos
do agricultor familiar, vigilância alimentar e nutricional,
mobilização social, educação alimentar,
entre outros;
No
entanto, tais atividades ainda não são vistas como parte da
realização de um direito humano das pessoas e resultante do
cumprimento de uma obrigação do Estado (federal, estadual e
municipal). Isto se reflete em que:
1.
os setores mais pobres e excluídos da população
ainda continuam a ser os menos beneficiados por estes
programas, devido a continuidade de práticas clientelistas e
assistencialistas por parte de políticos e gestores públicos;
2.
a população ainda não está adequadamente informada
sobre seus direitos e a quem reclamar caso os mesmos não seja
garantidos;
3.
ainda são inexistentes mecanismos eficientes que
permitam que pessoas que se sintam prejudicadas em seus
direitos possam reclamar;
4.
ainda permanece no setor público a cultura do
“favor” ou da “troca de favores”.
Enquanto
os programas de provimento e promoção de direitos não for
efetivamente articulado com iniciativas que, por um lado,
reforcem a consciência da titularidade do direito e, de
outro, garantam a efetiva inclusão social da população mais
pobre no rol das pessoas com acesso real a condições dignas
de vida, a serviços públicos e oportunidades de trabalho e
de geração de renda sustentáveis, tais programa poderão
ser facilmente seqüestrados politicamente por novas
iniciativas eleitoreiras e preservadoras do modelo de dominação
e dependência, violador dos direitos humanos.
Por
outro lado, as obrigações de Respeitar e Proteger o Direito
Humano à Alimentação, são as que mais continuam a ser
violadas, sistematicamente, pelo Estado Brasileiro, seja em
decorrência da submissão às diretivas dos organismos
financeiros internacionais, seja pela manutenção descarada
dos privilégios da elite econômica e política brasileira
que se utiliza privadamente dos recursos e instituições públicas
para manter e aprofundar sua hegemonia sobre a economia e a
sociedade brasileira, manipulando instituições do poder
executivo, legislativo e judiciário a seu favor.
O
poder descomensurado do Banco Central, nitidamente aliado a
interesses econômicos internacionais e do capital financeiro
nacional, a cada decisão de aumentar ou manter os juros básicos,
destrói empregos e provoca inevitáveis cortes em
investimentos e programas sociais, anulando os esforços
desenvolvidos pelo Fome Zero. Cada decisão do Ministério da
Agricultura e do Ministério do desenvolvido, controlados pelo
agro negócio, de expandir a monocultura da soja e, da cana (açúcar
e álcool), de apoiar a expansão da carcinocultura e a pecuária,
levam à destruição do modo e condições de vida de
milhares, senão milhões de famílias de agricultores
familiares, quilombolas, pescadores artesanais, caiçaras e
agro-extrativistas, expulsando-se de suas terras e águas
tradicionais e jogando-os na miséria das periferias urbanas e
metropolitanas, em condições subumanas de vida. A omissão
do IBAMA em proteger nascentes de rios e áreas de preservação
prova não só a destruição de modos de vida como a destruição
da rica biodiversidade do território brasileiro, a serviços
da aceleração do lucro rápido, para a obtenção das
divisas necessárias para o pagamento da dívida e para
enriquecer outros.
Assim,
o desafio que se coloca é em pelo menos quatro dimensões
principais:
-
lutar
pela efetiva incorporação dos princípios de direitos
humanos em todos os programas governamentais, fortalecendo
a titularidade dos direitos, a responsabilização dos
agentes públicas pelo cumprimento das obrigações do
Estado estabelecidas nos tratados internacionais
de direitos humanos, firmados pelo Brasil, e a
efetiva operacionalização do direito de exigir os
direitos na esfera administrativa, quase judicial e
judicial, quando for o caso.
-
ampliar
a mobilização social em direção à exigência de relatórios
de impacto de megaprojetos sobre os direitos humanos das
populações eventualmente afetadas, como um mecanismo de
prevenção de violações maiores, ao mesmo tempo em que
continuamos a lutar pela reparação de violações já
ocorridas.
-
intensificar
a discussão sobre o orçamento público e exigir que a
política monetária e a alocação de recursos públicos
para o pagamento da dívida pública e, conseqüentemente,
o estabelecimento do superávit primário, sejam alvo de
uma ampla discussão da sociedade brasileira,
rejeitando-se os valores atuais como fatos dados,
transformando-os em objeto de decisão política da população.
-
consolidar
o sistema nacional de Direitos humanos, composto de
instituições de promoção, proteção e monitoramento da realização dos Direitos Humanos,
integralmente em consonância com os Princípios de Paris,
que estabelecem que as instituições de direitos Humanos
devem ser publicamente financiadas, ao mesmo tempo em que
totalmente independentes do governo, e dos outros poderes
do Estado, sendo capaz de emitir recomendações finalísticas
ao poder público e ao setor privado, ou seja, sem ter que
ser submetidas a qualquer outra instância decisória ou
legitimadora.
Ao
mesmo tempo, temos que enfrentar os outros obstáculos
identificados, o que somente será conseguido com um trabalho
integrado dos movimentos sociais, das entidades de direitos
humanos, da sociedade civil organizada com o Ministério Público,
em seus diferentes níveis.
Uma
análise preliminar do CONSEA sobre o projeto de lei referente
ao ano de 2006, enviado ao Congresso pelo Executivo,
observa-se um ligeiro aumento nos recursos alocados para o
Fome Zero e políticas de SAN, com um aumento expressivo de
recursos para o Bolsa Família, e uma redução significativa
(cerca de 20%) para os programas de caráter estruturante como
saneamento básico, apoio á regularização de terras
quilombolas, entre outros. Isto certamente é um reflexo da
ainda hegemônica posição do setor econômico do governo que
persiste em limitar os investimentos voltados para a promoção
do desenvolvimento humano e social.
Somente
com um aumento significativo da pressão da sociedade, os
grupos hegemônicos que controlam o Brasil passarão a cumprir
com as obrigações de promoção dos Direitos Humanos que
assumiram em nome da população brasileira. Cabe-nos agora,
cobrar.
A
implementação dos programas da Estratégia Fome Zero e a
promoção e proteção da Realização do Direito Humano á
Alimentação
Durante
os anos de 2004 e 2005, a Comissão Permanente para a Promoção
do Direito Humano à Alimentação Adequada, criada pelo
CONSEA nacional em Setembro de 2004, vem desenvolvendo uma
metodologia de avaliação da implementação de programas e
políticas de Segurança Alimentar e Nutricional, a partir da
ótica do Direito Humano à Alimentação Adequada. Até o
momento foram avaliados o Programa Nacional de Alimentação
Escolar e o Bolsa Família, tendo sido constatadas uma série
de práticas que se constituem em violações do DHAA.
Em
diálogo com os gestores dos referidos programas, a Comissão
apresentou um conjunto de recomendações ao Governo, cuja
efetivação será avaliada em uma nova rodada de avaliação
no ano de 2006. Além de apresentar recomendações, a Comissão
tem apoiado os gestores na busca de alternativas de superação
dos problemas identificados.
Entre
os principais problemas identificados no Programa Nacional de
Alimentação Escolar (PNAE) podem ser citados:
-
O
PNAE não atende a todas as crianças e adolescentes em
idade escolar, nem mesmo todos os escolares, em especial
aqueles que vivem em acampamentos, assentamentos, terras
quilombolas e áreas de periferia urbana;
-
Escolares
do segundo grau continuam a não receber o PNAE;
-
O
acesso regular de escolares ao PNAE continua a ser
interrompido nos municípios onde não houve prestação
de contas por parte do gestor público, configurando-se a
punição das crianças por irregularidades praticadas
pelo governo;
-
Não
existem instrumentos de recurso disponíveis aos escolares
e seus familiares que permitam a apresentação de
eventuais denúncias de violação do DHAA para averiguação
e reparação;
-
Crianças
portadores de necessidades alimentares especiais
(diabetes, doença celíaca, fenilcetonúria) continuam a
ser discriminadas e a não receber alimentação especial
adequada à sua condição.
Para
cada uma das constatações foram apresentadas recomendações
aos gestores do programa no sentido da superação das situações
de violação.
No
caso do Programa Bolsa Família foram constatadas as seguintes
situações de violação:
-
A
linguagem dos materiais produzidos e a própria prática
do programa não incorporam a cultura de direitos humanos,
refletindo um distanciamento entre o discurso político de
promoção do DHAA e a operacionalização do Programa.
-
Persiste
a tendência à não inclusão no programa dos mais vulneráveis,
em parte devido às limitações do Cadastro Único, mas
também devido à não utilização da busca ativa por
parte das autoridades municipais.
-
O
programa, apesar de uma mudança no discurso, não
demonstra intenção concreta de fazer modificações
necessárias no sentido de adequar-se às características
culturais especiais dos povos indígenas e populações
tradicionais, incluindo aí os quilombolas, ferindo
dispositivos de tratados internacionais que estabelecem a
obrigatoriedade de consentimento prévio informado e de
implementação de políticas públicas específicas e
diferenciadas.
-
A
manutenção de condicionalidades ou contrapartidas para a
manutenção do acesso ao Bolsa Família, estabelecendo-se
a exclusão do programa como punição para as famílias
que não cumprirem as mesmas, quando do ponto de vista de
direitos, estas famílias tem também o direito de ter
acesso à saúde e à educação, sendo a obrigação de
garantir isto do Estado e não das famílias.
-
Não
disponibilização de instrumentos de recurso de fato
acessíveis às famílias que teriam direito ao programa e
que porventura não o estejam recebendo, ou mesmo não
tenham sido cadastradas para tal.
Sem
dúvida alguma, a realização do DHAA exige de um lado uma
mudança do modelo econômico que continua a excluir amplos
setores da população dos benefícios do desenvolvimento, e
para tal o governo Brasileiro terá que se aliar à população
brasileira e a outros governos para enfrentar os interesses
internacionais e nacionais que se opõem a este projeto de
construção de um Brasil e de um mundo mais justo. De outro,
o fortalecimento dos mecanismos de exigibilidade de direitos
permitirá o aumento da pressão da sociedade civil e
movimentos sociais sobre o Estado e o poder instituído,
reduzindo as desigualdades no nível micro e empoderando as
pessoas, os grupos e as comunidades para incidir de uma forma
ainda mais efetiva na luta por mudanças no modelo, ao mesmo
tempo em que melhoram sua qualidade de vida. Todos os espaços
de luta são importantes.
Médico, FMUSP - 1972; mestre em nutrição e Saúde Pública,
Harvard School of Public Health, 1976. Relator Nacional
para os Direitos Humanos à Alimentação, Água e Terra
Rural, da Plataforma de Direitos Humanos Econômicos,
Sociais e Culturais, com o apoio do Programa de Voluntários
da ONU; Coordenador Técnico da Ação Brasileira pela
Nutrição e Direitos Humanos (ABRANDH).
[2]
Lei
10.683, de 28 de maio de 2003.
Plataforma DHESC,
Relatorias Nacionais em Direitos Humanos Econômicos,
Sociais e Culturais – Informe 2004. Plataforma DHESC,
Rio de Janeiro, 2005.
[8]
ONU.
Paris Principles in:
Fact
Sheet no. 19. National Institutions for the promotion and
protection of Human
Rights. Alto
Comissariado de Direitos Humanos. 1991.
|