Apesar
das novas possibilidades de política de atendimento aos
direitos das crianças, abertas pelo ECA (Art. 86), sua
efetivação concreta fica comprometida pelo desinteresse dos
governantes. A divisão das responsabilidades entre União,
estados e municípios ainda é confusa e sujeita a embates –
com as esferas disputando para não
assumir o setor social, o que é típico do Estado
neoliberal. Por outro lado, ainda não foram construídos
mecanismos eficazes - e nem a população está bem informada
e organizada - para propor, subsidiar, cobrar e avaliar políticas
sociais.
Aos
Quinze:
O
Estatuto da Criança e do Adolescente em tempos neoliberais
Maria
Helena Zamora
Walter
Benjamin (1991) afirmava que o historiador deve ser capaz de
identificar no passado as sementes de uma outra história,
aquela que poderia ter sido e a que ainda pode ser. Salvar o
passado no presente é transformar os dois: o passado escapa
do seu esquecimento, que equivaleria a seu nunca existir e à
inutilidade da vida de milhares de pessoas que sofreram e
lutaram. O presente recupera sua inteireza e deixa de ser
fragmentário, preenchendo o vazio de um cotidiano de
imediatismo e de esquecimento.
O
Estatuto, que completou 15 anos, foi um dos primeiros frutos
da Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente, de 1989, quando o Brasil, como toda a América
Latina, adequava sua legislação à luz da doutrina da proteção
integral. O ECA foi o resultado da criação e atuação de vários
núcleos da sociedade civil organizada, ao longo das décadas
de 70 e 80, na luta a favor dos direitos humanos e em especial
daqueles mais vulneráveis e que, por sua pouca idade, não
podem se defender plenamente. A atual legislação é
genuinamente brasileira e provém da participação de
milhares de pessoas, adultos, jovens e crianças de nosso país,
que afirmaram o que queriam para garantir que a criança fosse
um sujeito pleno de direitos e não mais um objeto passivo de
supostas medidas de proteção de um sistema
tutelar-repressivo, que até então vigorava e pouco havia
mudado desde o Código de Menores de 1927.
Ainda
é Benjamin quem nos lembra da necessidade de construir uma
“história a contrapelo” da história oficial. A “outra
história”, a dos povos em sua resistência silenciosa, em
sua organização ou em sua revolta aberta, não pode ser
excluída de nossa memória. Isso já foi feito antes, na
falta de registro preciso do genocídio dos povos indígenas,
nas fogueiras dos registros da escravidão, nas águas da
represa que cobriram os destroços de Canudos, na atribuição
de “desaparecidos” aos mortos da última ditadura e na
produção da certeza de que, sobre o passado, quanto mais
sofrido, mais cumpre esquecê-lo.
Nenhuma
lei é eterna, imutável e intocável, mas não se pode
permitir a desqualificação do Estatuto e nem consentir que
aos poucos se procure mudar ou distorcer o projeto de um povo,
sem colocá-lo plenamente em prática. Sabemos que a vigência
do Estatuto permitiu o avanço de ações concretas para
inibir o trabalho infantil, o abuso e exploração sexual e a
violência intrafamiliar. Tais violências antes eram
naturalizadas ou então nem eram mencionadas. Os dados
relativos à mortalidade infantil, à cobertura vacinal, ao
acesso à escola, aos casos de transmissão vertical do HIV
também melhoraram entre 1993 e 2003, embora seja preciso
observar que essa melhora não se dá de forma homogênea,
considerando os critérios de localização geográfica e
etnia. É preciso igualmente notar que não falamos aqui de
qualidade dos serviços e da atenção. Muito ainda há o que
fazer.
Propondo
aqui uma leitura estratégica, podemos perguntar: quais são
as reais dificuldades para que nosso Estatuto saia
completamente do papel? Aqui listarei elementos de resposta,
sem pretender esgotar todas as possibilidades de reflexão.
A
sociedade brasileira tem uma forte raiz autoritária. Convive
com a injustiça, a limitação da liberdade e a tortura. Foi
o último país a libertar os escravos e ainda hoje conserva
essa prática. Oprimiu suas mulheres, antes negando-lhe o
direito ao voto – e ainda o faz, com seus salários
desiguais. Tem verdadeira mania de internar – índios,
negros, loucos, doentes, moradores de rua, opositores políticos,
pequenos infratores. A república brasileira foi fundada por
um golpe militar e atravessada por outros; é uma democracia
recente, que ainda não inventou uma forma de fazer política
que não passe pela corrupção.
Será
que 500 anos de autoritarismo desaparecerão apenas pela força
da Lei? A proposta do Estatuto inclui uma ampla participação
popular. O Artigo 4º determina como dever da família, da
comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público
assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos
direitos dos meninos e meninas do país. Isso envolve a todos
nós na busca das soluções para os problemas da infância.
A
participação coletiva está garantida através dos diversos
Conselhos de direitos, conforme o previsto no Artigo 88.
Apesar disso ser claro, muitas cidades ainda não dispõem de
seus conselhos municipais. Em 30% delas não há conselhos
tutelares ou eles não funcionam adequadamente, faltando
estrutura e capacidade técnica para exercer suas atribuições,
principalmente as de caráter deliberativo, de decisão sobre
políticas públicas. Em vários municípios existem
problemas, como o número insuficiente de conselhos ou o fato
dos seus membros serem pressionados a não contrariar o poder
local. Temos ainda conselheiros mal remunerados ou sem
pagamento. Em todos esses casos, o atendimento fica
comprometido.
Para
a estrutura integrada de conselhos funcionar faz-se necessário
criar canais de representação e de respostas entre as três
esferas dos conselhos, de modo que os conselhos municipais
tenham influência sobre os estaduais e os estaduais sobre o
federal, transmitindo as necessidades da população para
esferas mais amplas (González, 2000). Por outro lado, a
capacidade de pressão da população é o diferencial para
que os conselhos sejam representativos, apoiados e tenham
condições de desempenhar suas importantes atribuições.
Cabem
agora algumas perguntas que nos situem melhor na discussão:
nossa cultura, marcada por uma das maiores desigualdades
sociais do mundo, é uma cultura de direitos? A escola do povo
é de boa qualidade e realmente está voltada para o paradigma
da cidadania, fazendo com que as pessoas conheçam e
reivindiquem seus direitos? Temos no presente uma mídia
democrática e plural, que coloca os reais problemas do país
em discussão e encoraja o debate popular?
Apesar
das novas possibilidades de política de atendimento aos
direitos das crianças, abertas pelo ECA (Art. 86), sua
efetivação concreta fica comprometida pelo desinteresse dos
governantes. A divisão das responsabilidades entre União,
estados e municípios ainda é confusa e sujeita a embates –
com as esferas disputando para não assumir o setor social, o
que é típico do Estado neoliberal. Por outro lado, ainda não
foram construídos mecanismos eficazes - e nem a população
está bem informada e organizada - para propor, subsidiar,
cobrar e avaliar políticas sociais. Tampouco temos normativa
e instrumentos para punir o desvio dos dirigentes do que
deveria ser sua prioridade, dando “preferência na formulação
e execução de políticas sociais públicas e destinação
privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com
a proteção [da infância e adolescência]” (Artigo 4º).
A
atenção à infância pobre no Brasil foi sempre realizada
por um viés de punição, caridade e filantropia, para
controlar e fazer com que a população mais pobre aceite como
natural sua situação de exploração histórica. Todas as
tendências aqui apontadas precisam ser relacionadas à
refilantropização da assistência do neoliberalismo. Ou
seja, espera-se que empresários, ONGs, voluntários e pessoas
de bem fiquem com o processo de provisão social, deixando o
Estado livre desse encargo. Nada contra a participação de múltiplos
setores, mas ela não assegura direitos e não substitui uma
política pública, mesmo que proponha e execute uma
iniciativa interessante.
Para
Passetti (2000), o Estatuto, ao propor a co-gestão das políticas
de atendimento entre as organizações governamentais e as não-governamentais,
recria um espaço para as práticas assistencialistas. Ainda
que o Estado supervisione, em âmbito nacional, as ações,
ele reduz sua própria ação. Essa verdadeira “terceirização”
da área social acaba por não responsabilizar devidamente o
Estado em suas obrigações constitucionais. Embora as ONGs façam
propostas criativas e econômicas para a solução de
problemas sociais, essas ações não constituem um direito
garantido e em geral atendem parcial e seletivamente a população,
não integralmente (Sartor, Martins e Silva, 2002 e Gonçalves,
1996).
Como
dissemos, o papel histórico dos movimentos civis, incluindo
ONGs, foi fundamental para garantir o ECA. Contudo, hoje,
muitas ONGs, ao estabelecerem parcerias com o Estado,
tornam-se dependentes de seu financiamento para sobreviver e
com isso perdem muito de sua atuação crítica e de sua
capacidade de mobilizar a população.
Em
suma, a conseqüência final desses novos jogos de forças é
que os ultrapassados modelos assistencialistas seguem
existindo. A política de atendimento preconizada pelo
Estatuto, baseada na universalidade dos direitos, ainda está
longe de se concretizar e predominam políticas focalizadas e
seletivas, fixando-se nas famílias e crianças mais pobres.
Portanto, a época não é de submissão a um Estado
neoliberal nem de aceitação incondicional de suas regras,
mas de resistência, sempre sendo propositivos.
Mas
é na questão do ato infracional que menos avançamos no
caminho para fazer da lei um instrumento vivo. Como afirma
Wacquant (2001), a um Estado social mínimo corresponde um
Estado penal máximo: vivemos uma era de criminalização da
pobreza e da ampliação do controle. No Brasil, são os
jovens os considerados responsáveis pelo recrudescimento da
violência – quando são suas maiores vítimas (Waiselfisz,
2004). A mídia amplifica cada delito cometido por adolescente
e o Estatuto tem sido alvo de críticas, referidas à sua
suposta brandura para com “bandidos irrecuperáveis”.
Projetos de lei para a redução da maioridade penal e aumento
do tempo de internação têm notável disseminação,
fomentando um discurso da insegurança. Não se dá ao povo
outros elementos para constituir um debate aprofundado e nem
outras soluções que não as repressivas.
O
Estatuto é um barco que rema contra a maré dessa era
punitiva, soprado pelos ventos da “tolerância zero” da
matriz ideológica norte-americana. Ele deixa claro que a
responsabilização do jovem perante seu ato infracional é sócio-educativa
e de natureza pedagógica e não penal. O direito deveria
atacar as causas da delinqüência - pelas políticas sociais
básicas, pela proteção especial e também
pelo sistema sócio-educativo (Gomez Neto e Diaz, s/data;
Arantes, 2005).
A
internação deveria ser de fato a última medida sócio-educativa
a ser recomendada e sempre estar fundamentada no interesse
superior do adolescente e de sua reintegração familiar e
comunitária. É inconcebível, por exemplo, que 15% dos
adolescentes estejam cumprindo medida de internação, não
raro em condições inumanas, por simples furtos, excluído o
cometimento reiterado (Silva e Gueresi, 2003). Da mesma
maneira, qualquer envolvimento de meninos e meninas no tráfico
de drogas, contato com tais atividades e mesmo o mero uso de
entorpecentes têm sido criminalizados e é um fator
importante para indicar a medida de internação em vários
estados.
À
“esquizofrenia jurídica” - como a chama Mendéz (2002),
referindo-se à convivência, na prática, das doutrinas da
proteção integral e da situação irregular - corresponde
uma esquizofrenia do entendimento da questão da droga. Vemos
dois discursos (e práticas) diferenciados no universo sócio-educativo.
Um deles é ligado à repressão, tende a criminalizar o usuário
ou no máximo entendê-lo como doente. Está centrado
no modelo da abstinência, do controle social. Há um
outro discurso, centrado
no modelo do resgate da cidadania e da reinserção social dos
usuários, visando minimizar as conseqüências nocivas do
consumo de drogas, priorizando sua saúde e da
comunidade em geral. O predomínio do paradigma repressivo,
que persiste na mentalidade conservadora de tantos juízes,
tem enchido as unidades de internação, tornando-as espaços
insuportáveis para jovens e funcionários.
O
sistema sócio-educativo, apesar de fazer parte do sistema de
garantia de direitos do adolescente, é deficiente na maior
parte do país. Sabemos que 71% das unidades brasileiras de
cumprimento de medida é inadequada (Silva e Gueresi, 2003). O
reordenamento institucional (Artigo 259) ainda não virou
realidade – basta pensarmos nos sistemas FEBEM, DEGASE,
CAJE, respectivamente de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília.
Além das fartas denúncias de brutalidades, tais sistemas têm
em comum a ausência de um projeto político-pedagógico ou
dele colocado em prática.
Uma
correta aplicação do Estatuto exige a implantação, em cada
município, de programas sócio-educativos articulados aos
programas de proteção. É necessário promover a recomendada
“integração operacional de órgãos do Judiciário, Ministério
Público, Defensoria, Segurança Pública e Assistência
Social, preferencialmente em um mesmo local, para efeito de
agilização do atendimento inicial a adolescente a quem se
atribua autoria de ato infracional” – o que está no
Artigo 88.
Enfim,
para finalizar esse balanço de quinze anos de Estatuto,
acentuamos que “a lei não opera como instrumento solitário
ou soberano. As normas que ela instaura interagem com as
instituições, com as práticas sociais, com o conjunto de
fatos concretos que têm lugar na sociedade” (Gonçalves,
2005:38). O embate agora deve ser para que os princípios
legais, duramente conquistados, recebam uma tradução política,
único modo de conquistarem efetiva existência no campo
social. Devemos lembrar do quanto nós ou os que vieram antes
lutaram pelo que temos hoje. Devemos honrar essa luta,
precisamos merecer
nosso passado.
Referências
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trato do adolescente autor de ato infracional. In: ZAMORA,
Maria Helena (org.). Para Além das Grades de Ferro: Elementos
para a Transformação do Sistema Sócio-educativo. Edições
PUC-Rio e Loyola, Rio de Janeiro e São Paulo, 2005.
Gonçalves,
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As Novas Configurações das Políticas Sociais: Tendências
Contemporâneas e Mecanismos de Resistência e Universalização.
In: RIZZINI, Irene, BARKER, Gary e ZAMORA, Maria Helena
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Waiselfisz,
Julio J. Mapa da Violência IV: os jovens do Brasil –
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Maria Helena Zamora é professora doutora da PUC-Rio
|