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Relatórios

 

Durante 15 longos anos familiares foram submetidos desnecessária e injustificadamente à angustiante expectativa quanto à possibilidade de se encontrar, entre as ossadas exumadas na vala clandestina do Cemitério Dom Bosco de Perus, os restos mortais de Flávio Molina. Um laboratório particular, o Genomic, em São Paulo, emitiu laudo conclusivo em apenas 20 dias, coisa que órgãos públicos não foram capazes de fazer em anos.

 

 

A identificação de Flávio Molina

Suzana Keniger Lisboa*

 

Quem foi Flávio

 

Flávio de Carvalho Molina nasceu em 8 de novembro de 1947, na Guanabara, filho de Álvaro Andrade Lopes Molina e Maria Helena Carvalho Molina. Iniciou sua militância política em 1967, enquanto cursava o científico no Colégio Mallet Soares, no Rio de Janeiro. Em 1968 entrou para a Escola de Química da UFRJ. Nesse mesmo ano foi preso em manifestação estudantil durante invasão do Campus pela polícia e solto no dia seguinte.

Em julho de 1969, vendo-se perseguido pelas forças da repressão, já tendo sido indiciado em inquérito na 2ª Auditoria do Exército, optou pela luta e pela clandestinidade, militando na Ação Libertadora Nacional – ALN.

Flávio viveu em Cuba de novembro de 1969 até meados de 1971, preparando-se militarmente para a luta contra a ditadura, e retornou ao Brasil como militante do Movimento de Libertação Popular – Molipo.

Teve sua prisão preventiva solicitada em duas ocasiões: 06 de novembro de 1969 e 30 de janeiro de 1970. Enviou notícias à família até julho de 1970 e desde então, foram 35 anos de luta e de incertezas para sua família, companheiros e amigos.

Foi somente em julho de 1979 que os familiares de Flávio tiveram a certeza de sua morte.

Outros 26 anos se passaram até que pudessem, finalmente, enterrar seus restos mortais. Após 15 anos da abertura da Vala Clandestina do cemitério Dom Bosco, em Perus, a ossada foi finalmente identificada e os restos mortais de Flávio sepultados no Rio de Janeiro.

 

O assassinato

 

Flávio foi preso no dia 6 de novembro de 1971, em São Paulo, por agentes do DOI-CODI/SP, em cuja sede foi torturado até a morte. Sua prisão e morte nunca foram assumidas pelos órgãos de segurança.

A primeira informação de sua morte foi dada em 29 de agosto de 1972, quando o jornal O Globo noticiou o fato como tendo ocorrido em choque com policiais em São Paulo, referindo-se à data retroativa. A família procurou as autoridades, buscando saber onde estava enterrado,  e foi negada a veracidade da notícia.

Ao mesmo tempo em que ocultavam a notícia da morte de Flávio, continuavam a processá-lo como revel e apenas quando do julgamento é que foi extinta a punibilidade, sendo excluído do processo por morte. Ainda assim, a família não recebeu qualquer notificação das autoridades sobre o ocorrido.

 

A descoberta e a ocultação premeditada do corpo

 

Em 1979, os familiares de mortos e desaparecidos políticos  organizavam o Dossiê de Mortos e Desaparecidos quando tiveram acesso a um dos processos da 2ª Auditoria da Marinha em que figurava Flávio.

Através do ofício, a extinção da punibilidade de Flávio era solicitada ao Juiz Auditor pelo então diretor Geral do DOPS e hoje senador Romeu Tuma, que anexava ao pedido certidão de óbito em nome de Álvaro Lopes Peralta, morto em 9 de novembro de 1971 e enterrado na cova nº 14, Rua 11, Quadra 2, Gleba 1 do Cemitério Dom Bosco, em Perus. Esse foi o primeiro documento localizado pelos familiares que evidenciava a participação do então diretor do DOPS Romeu Tuma na ocultação dos corpos.

Finalmente a dúvida se transformou na dolorosa certeza: Flávio realmente estava morto. Seu espírito brincalhão o fizera escolher um nome para a clandestinidade usando partes do nome do pai – Álvaro Lopes – e acrescentando talvez uma lembrança de sua infância: Peralta.

A requisição de exame necroscópico no IML/SP, sob o n° 43.715, datada de 16 de novembro de 1971, com a identidade falsa de Álvaro Lopes Peralta já estava associada à verdadeira identidade.

Mas é no nome falso que os médicos legistas Renato Capellano e José Henrique da Fonseca procederam à necropsia.

A certidão de óbito foi registrada sob o nº 50.741 – fl. 191V – livro C.73, tendo sido declarante Miguel Fernandes Zaninello, indivíduo identificado em outubro de 1990 como tenente da polícia militar reformado, conforme depoimento prestado à CPI da Câmara Municipal de São Paulo que investigou a Vala Clandestina do Cemitério de Perus[1].

Documentos localizados nos arquivos do DOPS/SP demonstram que as autoridades sabiam quem era Flávio. Ali constam todos os seus dados, bem como nomes falsos e codinomes, inclusive o de Álvaro Lopes Peralta; e ofício do CENIMAR datado de 1970 informa que Flávio usava o nome falso de Álvaro Lopes Peralta.

O enterro sob nome falso foi intencional e premeditado, ao contrário do que até hoje afirma o então comandante do DOI/CODI Brilhante Ustra.

De posse do atestado falso e do ofício de Romeu Tuma, foi feita ação de retificação dos registros de óbito e, em 1981, a família Molina buscou trasladar os restos mortais para o Rio de Janeiro. Providenciados os convites e em meio aos preparativos para os atos programados, os familiares se depararam com a existência da vala clandestina do cemitério de Perus, que desde 1975 era apenas uma denúncia sem maiores referências.

Gilberto Molina, irmão de Flávio, inconformado com a impossibilidade de trasladar o corpo, e buscando constatar a veracidade do fato, conseguiu que o administrador do cemitério abrisse a vala. Uma retroescavadeira e uma pequena escavação trouxeram à tona alguns sacos de plástico onde estavam as ossadas. A inexistência de qualquer tipo de identificação abalou Gilberto. Os sacos foram devolvidos à terra e sepultada a esperança do enterro imediato.

O regime militar que ainda vigorava impedia qualquer outra atitude. Sem apoio político e sem respaldo para investigar e elucidar os fatos, a luta da família Molina somente foi tornada pública no dia 4 de setembro de 1990, com a abertura da Vala Clandestina do Cemitério de Perus[2].

 

A luta pela identificação

 

Com as investigações realizadas pelo repórter Caco Barcellos e por Maurício Maia foi evidenciado que, além de Flávio, outros seis militantes estavam dentre as 1.049 ossadas da vala: Frederico Eduardo Mayr, Denis Casemiro, Dimas Antonio Casemiro, Grenaldo Jesus Silva e Francisco José de Oliveira. Depois de três meses de trabalho no cemitério, onde cada uma das ossadas foi fichada, filmada e fotografada, foram transferidas para a Unicamp, ficando no Departamento Médico Legal – DML, sob a responsabilidade técnica de Fortunato Badan Palhares. No local da Vala, onde a ditadura pretendera sepultar seus crimes, foi erguido um memorial de autoria do arquiteto Ricardo Othake, inaugurado em 26 de agosto de 1993. As ossadas de Frederico e Denis foram identificadas em 1992.

Em novembro de 1991, transcorridos 20 anos da morte de Flávio, através da Advogada Ana Maria Muller, Maria Helena Molina abriu processo contra a União Federal na 17ª Vara da Seccional do Rio de Janeiro, protocolo n° 9101180125.

O descaso da UNICAMP  e das autoridades no exame das ossadas prolongou a agonia dos familiares. A tortura sendo perpetuada na dúvida e na busca incessante por informações sonegadas por Badan Palhares e pela direção da Unicamp. As poucas informações que chegavam aos familiares eram transmitidas informalmente, através de outros membros da equipe do DML. Em reunião com familiares realizada em 1995, Palhares chegou ao absurdo de exigir a gravação em vídeo.

Depois de muitas idas e vindas, de reuniões e compromissos assumidos e esquecidos, foi através da interferência do então Secretário da Justiça Belisário dos Santos Jr, que a reitoria da Unicamp compareceu à nova reunião com familiares e acabou sendo definido pela Unicamp o afastamento de Badan Palhares do processo de investigação das ossadas de Perus, sendo substituído por José Eduardo Bueno Zappa. Mas sem qualquer fato novo, em 1997, Zappa comunicou que a perícia havia terminado sem qualquer outra identificação, causando profunda revolta nos familiares.

Em fevereiro de 1998, por determinação do governador Mário Covas, foi criada a  Comissão Especial para sugerir as providências necessárias à conclusão dos trabalhos de identificação, presidida pelo médico legista Antenor Chicarino e composta por familiares e representantes das secretarias da Cultura e da Justiça do Estado de São Paulo.

A Comissão, após realizar vistoria nas dependências do DML, constatou a vergonhosa precariedade do acondicionamento das ossadas: sacos abertos e sem identificação, jogados no chão sujo de lama e repleto de baratas, e com pesados móveis por cima dos sacos de ossos. A Unicamp e o DML vilipendiavam as ossadas e nossa história.

Diante dessa atitude criminosa, a Comissão indicou a transferência das ossadas para o Instituto Oscar Freire do Departamento de Medicina Legal da USP.

O relatório com esta e outras propostas foi entregue ao Secretário da Justiça e da Segurança de São Paulo em de abril de 1998, sem qualquer resposta das autoridades.

A advogada Ana Maria Muller entra com ação cautelar, Maria Helena Molina abriu processo contra a União Federal na 17ª Vara da Seccional do Rio de Janeiro, protocolo n° 9101180125, sob responsabilidade do Juiz Wanderley de Andrade Monteiro.

Denunciado o descaso com as ossadas ao Ministério Público Federal, foi aberto o Inquérito Civil Público 06/99. Sob o comando do procurador Marlon Weichert diversas reuniões foram feitas para acompanhamento das providências, todas contando com a presença militante e a angústia de Gilberto Molina.

 

A identificação

 

Passaram-se outros 15 longos anos e oito tentativas de extração de DNA no Brasil e exterior até que a identificação de Flávio Molina fosse feita.

Badan Palhares encaminhara em 1995 à UFMG amostras da ossada para exame de DNA: três vértebras e uma costela. Não é possível saber porque não enviou ossos longos, ou dentes, que são sabidamente os usados para exame de DNA. Dois anos se passaram até o resultado: as três vértebras e a costela enviadas não pertenciam a Flávio, e tampouco correspondiam entre si. Terá sido um erro na extração ou Palhares misturara as ossadas?

Depois de tanta amargura, a história que começara em setembro de 1990 voltou, em 2005, a um de seus precursores personagens. Assim que fora instalada em 1990 uma comissão para o acompanhamento das investigações das ossadas de perus na Prefeitura de São Paulo, seus integrantes foram procurados por um cidadão de um laboratório em São Paulo que se oferecia para expandir o laboratório na tecnologia para a extração do DNA em ossos, e assim colaborar na identificação das ossadas de Perus. Informado pelos familiares, Badan Palhares foi taxativo: se alguém que não a Unicamp iria fazer exames de DNA, que levasse todas as ossadas. Como não havia outra alternativa para guarda das ossadas, agradecemos ao cidadão. E assim foram se passando os anos.

Em 2003 o governo federal aceitou arcar com as despesas de exame de DNA, sendo remetidos para Buenos Aires amostras de ossos e sangue da família Molina. Nova frustração após alguns meses: resultado negativo.

Em 2005, lamentável equívoco fez com que o governo federal anunciasse que o governo chileno havia logrado identificar a ossada de Jane Vanini, guerrilheira brasileira morta em Concepcion, em 1974. Após o anúncio, nunca desmentido oficialmente, a Comissão Especial dos Mortos e Desaparecidos recebeu do Chile cópia do exame que fora feito em São Paulo e assim conheceu o laboratório Genomic. Enviadas amostras da ossada e o sangue da família Molina, em apenas 20 dias o resultado foi positivo.

A história cumpriu seu curso: Manuel de Sá e Benevides, que em 1990 procurara os familiares na Prefeitura de São Paulo para oferecer  seu laboratório para exames de DNA, é o Diretor Executivo do Genomic, inaugurado em 1990.

Manuel Benevides e a Dra. Delnice Ritsuko Sumita, responsável pelo exame, em solenidade na sede do Ministério Público Federal, em São Paulo, entregaram oficialmente a Gilberto Molina os restos mortais de Flávio Carvalho Molina.

 

Crime continuado

 A luta dos familiares de Flávio Molina certamente não termina com o enterro de seu corpo. Muitos outros familiares vivem a ainda a tortura da dúvida. O governo federal não tomou qualquer atitude para abrir os arquivos ou se envolver no resgate da história. O apoio do Ministério Público Federal tem sido fundamental – o desaparecimento é crime continuado.

Eugênia Augusta Gonzaga Fávero, Procuradora da República e atual responsável pela condução do ICP 06/99, anunciou durante o Ato de entrega dos restos mortais de Flávio que, apesar da identificação positiva, o inquérito não será arquivado, elencando os motivos:

“(...) Primeiro: verificamos que durante 15 longos anos familiares foram submetidos desnecessária e injustificadamente à angustiante expectativa quanto à possibilidade de se encontrar, entre as ossadas exumadas na vala clandestina do Cemitério Dom Bosco de Perus, os restos mortais de Flávio Molina. É que um laboratório particular, o Genomic, em São Paulo, emitiu laudo conclusivo em apenas 20 dias, coisa que órgãos públicos não foram capazes de fazer em anos. A agilidade na produção deste resultado tornou inadmissível que os trabalhos continuem se desenvolvendo da forma atual. É preciso que nossa atuação se volte para a obtenção de um ritmo diferente aos trabalhos de identificação, que devem ter como um dos pilares a formação de banco de DNA.

Segundo: há mais uma ossada aguardando apenas um exame de DNA. Trata-se da ossada que se suspeita pertencer a Luís Cunha. Fixamos prazo de conclusão desse exame por parte do Instituto Oscar Freire até 12 de outubro de 2005, após o que solicitaremos o mesmo encaminhamento dado no tocante a Flávio Molina.

Terceiro: há ainda, entre as demais ossadas, a possibilidade de se encontrar as pertencentes a pelo menos três outros desaparecidos políticos.

Neste ponto, é importante esclarecer por que consideramos necessário prosseguir com este objetivo, pois há quem entenda que não seria razoável exigir dos órgãos públicos que desempenhe um trabalho tão difícil como este em face de número tão pequeno de pessoas.  Entendemos que, enquanto houver alguma possibilidade de identificação, é preciso que este procedimento permaneça aberto. O fundamento é no sentido de que o ato de enterrar um familiar é um direito humano fundamental e decorre principalmente do direito à dignidade, assegurado constitucionalmente.

A privação da sepultura era o mais terrível castigo aplicado por civilizações antigas, reservado apenas aos grandes culpados, pois a idéia de se permanecer sem um enterro, ou seja, sem um ato que simbolize o encerramento de um ciclo, é por demais dolorosa. Tanto que, também neste inquérito, há relatos de familiares que fizeram o enterro de pertences do ente falecido, para minimizar o sofrimento. Entendemos que a dor dos familiares, originada pela lesão a esse direito que lhes foi subtraído propositalmente é bem jurídico que requer a atenção e esforços dos órgãos públicos, até porque essa lesão foi causada justamente por órgãos ligados à esfera pública.

Quarto: verificamos ainda, ao relatar o presente Inquérito, que permanece um grande sentimento de injustiça pois, não obstante o reconhecimento da existência da prática de tortura, de assassinatos, de ocultação de cadáveres, bem como o pagamento de indenizações, não constatamos nenhuma punição aos responsáveis. Há neste inquérito nomes, menção a provas e a outros procedimentos instaurados com a finalidade de  se punir os culpados, mas nenhuma notícia de êxito nesse sentido.

As dificuldades vão desde a falta de acesso a documentos sigilosos, às alegações de prescrição e de que tais culpados teriam sido beneficiados pela anistia. Não pretendemos, no presente momento, entrar no mérito das teses jurídicas relativas à prescrição ou não dos atos de tortura ou ao alcance da anistia. O certo é que, no mínimo, persiste o crime relativo à ocultação de cadáveres, forma odiosa de estender a tortura aos familiares e de procurar garantir a impunidade. Este crime é considerado pela doutrina e jurisprudência como sendo de caráter permanente, ou seja, a prescrição só terá início quando se tornar conhecido o local do sepultamento de forma a identificar o corpo ocultado. Portanto, enquanto houver um só corpo entre os mortos e desaparecidos políticos, cujo verdadeiro local de sepultamento não tenha sido revelado, não há que se falar em prescrição.

Mesmo que as dificuldades de indicação de autoria frustrem eventuais ações penais, a legislação que visa coibir a improbidade administrativa não se coaduna com a inércia de quem quer que seja diante de um ilícito penal cuja materialidade é escancarada e até reconhecida em lei. Há também a possibilidade de ações civis por dano moral coletivo, pois os atos praticados pela ditadura militar não geraram danos apenas aos mortos e desaparecidos políticos, mas a toda uma geração que foi  tolhida no seu crescimento intelectual e discernimento político. Essas medidas, sejam elas penais, civis ou administrativas, visam alcançar alguma forma de responsabilização dos culpados.

Em conclusão, é por estes quatro motivos que o presente inquérito, enquanto estiver sob nossa condução, não será arquivado. Adotaremos, em todas as esferas, especialmente a judicial, as medidas necessárias para o alcance desses objetivos: obter a mudança na forma atual de condução dos trabalhos de identificação, incluindo a formação de banco de DNA; prosseguir na identificação da ossada pertencente a Luís Cunha; prosseguir na identificação de outros possíveis desaparecidos entre as demais ossadas exumadas do Cemitério de Perus; responsabilizar culpados.

* Suzana Keniger Lisboa, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos



[1] Vide Relatório da CPI no site www.desaparecidospoliticos.org

[2] vide Relatório de 2001: www.social.org.br