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Relatórios


A indústria da cana foi o setor do agronegócio que mais cresceu no Brasil em 2005. Essa expansão tem trazido sérias conseqüências para o País, como destruição ambiental, expulsão dos trabalhadores do campo e constantes violações de direitos trabalhistas. As usinas exigem que cada trabalhador corte, em média, de 12 a 15 toneladas de cana por dia. Entre janeiro de 2004 e setembro de 2005, a Pastoral dos Migrantes registrou oito mortes de trabalhadores por excesso de trabalho nos canaviais da região de Ribeirão Preto.

  

A OMC e os Efeitos Destrutivos da Indústria da Cana no Brasil

 Maria Luisa Mendonça[1]

 

O Brasil é o maior exportador mundial de açúcar. Em 2004, o País exportou 15,7 milhões de toneladas do produto. A indústria da cana foi o setor do agronegócio que mais cresceu no Brasil em 2005. Enquanto a produção da soja (um dos principais produtos agrícolas exportados pelo Brasil) cresceu 1,3%, a produção de derivados da cana-de-açúcar cresceu 26,7% este ano. Esta tendência de crescimento deve continuar, a partir de negociações do governo brasileiro no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC).

A produção de álcool também deve aumentar. O Brasil é atualmente o maior produtor mundial, responsável por 45% do mercado. Em 2004, o Brasil exportou 2,6 bilhões de litros do produto. Existe uma expectativa de que o Japão, a partir da ratificação do Protocolo de Kyoto, que prevê a redução na emissão de gases poluentes, passe a utilizar uma mistura de 3% de álcool anidro na gasolina, e que isso represente um aumento de cerca de 1,8 bilhões de litros por ano nas exportações brasileiras. 

As regiões do País que, historicamente, têm cultivado a cana em larga escala são o Nordeste e o estado de São Paulo. Mais recentemente, a indústria se expandiu no norte do estado do Rio de Janeiro, em Minas Gerais, Espírito Santo, norte do Paraná e estados do Centro Oeste. 

A indústria da cana sempre teve grande importância na economia e no processo histórico brasileiros. A atividade adquiriu dimensão ainda maior no Brasil com crise internacional nos anos 70, que causou forte alta no mercado petroleiro e impulsionou o setor canavieiro, a partir da criação do Proálcool.  De 1972 a 1995, o governo brasileiro incentivou o aumento da área de plantação de cana e a estruturação do complexo sucro-alcooleiro, com grandes subsídios e diferentes formas de incentivo. O Instituto do Açúcar e do Álcool, por exemplo, foi responsável durante quase 60 anos por toda a comercialização e a exportação do produto, subsidiando empreendimentos, incentivando a centralização industrial e fundiária sob o argumento da “modernização” do setor, proporcionando terras férteis, meios de transporte, energia, infra-estrutura, insumos, etc.

 “O complexo canavieiro se apresenta como uma produção totalmente integrada devido a sua histórica expansão e constituição, sob a égide do Estado. A propriedade fundiária teve um papel central neste processo e a ela estiveram vinculadas as políticas oficiais de acesso ao crédito a aos benefícios da subvenção estatal”, afirma o pesquisador Bruno Ribeiro.

Porém, a expansão da indústria da cana tem trazido sérias conseqüências para o País, como a expulsão dos trabalhadores do campo, constantes violações de direitos trabalhistas e destruição ambiental. O modelo agrícola baseado na monocultura para exportação se contrapõe a propostas de políticas que garantam a soberania alimentar e a reforma agrária. A atual expansão desse cultivo em áreas de fronteira agrícola causa conflitos com povos indígenas e com pequenos agricultores.

 

A OMC e a Expansão da Monocultura da Cana

 

A monocultura da cana deve se expandir no Brasil a partir da proposta do governo de ampliar o acesso a mercados no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC). Essa política se baseia em consolidar vantagens comerciais para o setor agrícola baseado na monocultura para exportação, com foco inicial no questionamento do regime do açúcar praticado pela União Européia. Um dos principais setores interessados nesse processo é a indústria da cana, conhecida historicamente por promover a concentração da terra, a violação de direitos trabalhistas e a destruição do meio ambiente. O crescimento desse setor pode inviabilizar a reforma agrária em muitas regiões do País. Esse efeito negativo já é visível e crescente.

Desde sua criação em 1995, o principal papel da Organização Mundial do Comércio (OMC) tem sido expandir seu poder de regulamentação em 147 países, o que significa exercer grande influência no cotidiano de milhões de pessoas. Apesar de difundir a ideologia do “livre comércio”, a OMC possui uma complexa estrutura de regras utilizadas na defesa dos interesses de grandes multinacionais e de seus países sedes. A abrangência dos acordos contidos na OMC vai muito além de temas relacionados ao comércio internacional.

Por isso, é fundamental que movimentos sociais acompanhem o atual estágio de negociações em preparação para a 6ª Reunião Ministerial da OMC, realizada em Hong Kong, em dezembro de 2005. Uma das principais propostas dos países agro-exportadores do Sul (como o Brasil) é negociar benefícios comerciais para o agronegócio em troca da abertura de nossos mercados para setores estratégicos como serviços e produtos industriais.

O Brasil é o maior produtor mundial de açúcar, devido ao baixo custo de produção e de grandes incentivos do governo. A União Européia é o segundo maior exportador do produto e utiliza como matéria-prima a beterraba. O Brasil questiona na OMC os subsídios da União Européia para seus produtores, mas também oferece grandes subsídios para a indústria da cana.

A prioridade do governo brasileiro na OMC tem sido negociar acesso a mercados para grandes produtores rurais. Esta política se contrapõe às propostas defendidas pelos movimentos sociais para o fortalecimento do mercado interno, do desenvolvimento rural e da soberania alimentar. Nesse contexto o grande vilão é o subsídio, mas não se questiona problemas causados por monopólios agrícolas e pelo modelo de produção voltado para o mercado externo.

“Defendemos o direito e o dever dos Estados em apoiar e promover seu próprio setor agropecuário, principalmente a agricultura camponesa, porque dela dependem a qualidade de vida de amplos setores da população, o equilíbrio territorial e ambiental, e a capacidade de definirem suas prioridades e estratégias comerciais”, explica Paul Nicholson, membro da Via Campesina Internacional.

O aumento das exportações não significa melhores condições de vida no campo. Com a implementação do NAFTA (Tratado de Livre Comércio da América do Norte), o México triplicou suas exportações agrícolas e, ao mesmo tempo, três milhões de camponeses foram arruinados. Atualmente, a produção mexicana de milho é controlada por grandes multinacionais. Na Ásia, a exportação de arroz é dominada pela Cargill que, junto com a General Foods e a Nestlé, controla cerca de 70% do mercado internacional de alimentos.

A destruição da economia rural promovida por políticas de “livre comércio” tem sido tão intensa e profunda que vem gerando novas formas de protesto, algumas incorporando atitudes mais drásticas como no caso do agricultor coreano Lee Kyung Hae, que tirou a própria vida durante uma manifestação contra a OMC em Cancún (México), em setembro de 2003. Ao contrário da imagem de desespero ou desequilíbrio difundida pela mídia conservadora, o gesto de Lee representa um sacrifício consciente contra a opressão de milhares de camponeses. Desde a criação da OMC, cerca de 600 mortes deste tipo têm sido registradas por ano na Índia. Os camponeses preferem morrer a ver suas terras confiscadas por não conseguirem cobrir os custos da produção, principalmente em períodos de seca. Por essa razão, o principal lema das manifestações em Cancún passou a ser “A OMC Mata Camponeses”.

 

Modelo Agrícola Baseado na Monocultura e no Latifúndio

 

Atualmente, um dos principais pilares da política econômica do governo continua sendo o modelo agrícola baseado na monocultura para exportação. Apesar da propaganda do agronegócio como símbolo de “desenvolvimento”, esse modelo gera sérios problemas sociais e econômicos. Algumas das principais conseqüências desta política são a degradação do meio ambiente, a concentração de renda e o desemprego no campo.

Segundo o professor da USP, Ariovaldo Umbelino, do total de empregos gerados no campo brasileiro, 87,3% estão nas pequenas unidades de produção, 10,2% estão nas médias e somente 2,5% estão nas grandes. Este estudo demonstrou ainda que as pequenas e médias propriedades rurais são responsáveis pela maior parte da produção de alimentos. “Com relação à utilização da terra, as lavouras (temporárias e permanentes) ocupavam 50,1 milhões de hectares ou 14,1% da área total dos estabelecimentos e, nelas, as pequenas unidades ficavam com 53%, as médias com 34,5% e as grandes com 12,5%”.

Apesar desses dados, o governo tem priorizado uma política agrícola que favorece principalmente grandes empresas. Em 2004, dez empresas transnacionais receberam cerca de $4,5 bilhões de reais do Banco do Brasil. Este valor é maior do que o todo o crédito concedido aos pequenos agricultores através do PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar). No total, o governo disponibilizou $37 bilhões de reais em crédito para grandes fazendeiros.

Mesmo com tanto apoio governamental, as usinas do Nordeste permanecem com grandes dívidas. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra em Pernambuco, os grandes usineiros têm uma dívida com o Estado de mais de 3,5 bilhões de dólares. Ao mesmo tempo, a região da Zona da Mata pernambucana, onde predomina a monocultura da cana, tem alguns dos piores indicadores sociais e econômicos do mundo, com denúncias de trabalho infantil, assassinatos de trabalhadores rurais, e má gestão de recursos públicos. Esta situação permanece desde o período da colonização, sempre com predomínio do poder dos “senhores de engenho”.

Muitas usinas faliram em Pernambuco. Nos últimos 20 anos, o número de usinas diminuiu de 43 para 22. Porém, a área dessas usinas permanece a mesma e, portanto, há maior concentração fundiária. Neste período, estima-se uma perda definitiva de cerca de 150 mil postos de trabalho na Zona da Mata e a expulsão de 40 mil famílias de camponeses da região. A alternativa então é a busca de emprego nas cidades próximas, a migração, a resignação à condição de mão de obra temporária e clandestina ou a luta pela reforma agrária.

           O Brasil possui o menor custo de produção de açúcar do mundo porque explora trabalhadores e não tem compromissos com gastos e práticas voltadas para a sustentabilidade ambiental. No estado de São Paulo, o custo de produção é de $165 dólares por tonelada. Nos países da União Européia esse custo é de $700 dólares por tonelada. “O complexo canavieiro é um dos complexos agroindustriais mais importantes do Brasil; apresenta produtos bastante competitivos no mercado internacional graças a seus baixos custos de produção, que estão associados aos baixos salários pagos aos trabalhadores”, explica o professor Francisco Alves, da Universidade Federal de São Carlos.

Apesar do desenvolvimento tecnológico, o setor apresenta grande concentração fundiária. De um total de 5 milhões de hectares plantados, apenas 20% da cana produzida no Brasil vêm de pequenas e médias propriedades. Na região de Ribeirão Preto (SP), toda a terra está concentrada nas mãos de oito famílias.

Há uma tendência de fechamento de pequenas usinas, pois o ritmo de fusões e aquisições se acelerou de 2000 a 2004, quando 20 usinas foram negociadas no Brasil, a maioria em São Paulo. Recentemente, houve um crescimento na participação de empresas estrangeiras no setor e um aumento na concentração do poder econômico de alguns grupos.

Alguns dos principais grupos estrangeiros que atuam no setor são as empresas francesas Louis Dreyfus, que adquiriu as usinas Cresciumal (em São Paulo) e Luciância (em Minas Gerais); e a Béghin-Say, que adquiriu as usinas Guarani e Cruz Alta em São Paulo. A empresa Cosan também se associou recentemente ao grupo Béghin-Say e ao Trading Sucden (Franco-Brasileira Açúcar e Álcool S/A) e adquiriu cinco usinas.

 

O Novo Proálcool

 

Atualmente, existe uma proposta de reestruturação do Proálcool, com várias medidas governamentais de fomento já sendo implementadas, como abertura de novas linhas de crédito oficial, aumento do percentual de adição do álcool à gasolina, entre outras. O setor movimenta $20 bilhões de reais por ano e recebe diversas formas de incentivo. O BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) é o principal agente financeiro do novo Proálcool, com a previsão de investir $7 bilhões de reais entre 2004 e 2006, através do Programa Nacional de Biocombustíveis. No Congresso, o projeto tem apoio da Frente Parlamentar Sucroalcooleira. As empresas do setor recebem ajuda também do Ministério da Agricultura e do Banco Japonês de Cooperação Internacional.

Esse processo é incentivado ainda pelo aumento da frota de veículos “flexíveis” que funcionam com álcool (considerado “não poluente”) ou com gasolina. É estimulado também por um acordo bilateral Brasil-Alemanha para a produção subsidiada de 100 mil veículos movidos a álcool, com o objetivo de colaborar para que a Alemanha cumpra seu compromisso com o Protocolo de Kyoto. Os governos estaduais investem nesse setor. Nos últimos anos, o governo do estado de São Paulo reduziu a alíquota de ICMS de 25% para 12% para o álcool hidratado. O governo do Mato Grosso do Sul tem apoiado empresas do Nordeste para se instalar na região.

 

Migração, Trabalho Escravo e Violações de Direitos Trabalhistas

 

A expansão e a crescente mecanização do setor canavieiro têm gerado maior exploração (chamada de “flexibilização”) da força de trabalho. Principalmente em São Paulo, a maior parte do corte da cana é realizada por trabalhadores migrantes, principalmente do Nordeste e do Vale do Jequitinhonha em Minas Gerais. A Pastoral dos Migrantes estima que cerca de 200 mil trabalhadores migrantes trabalhem em São Paulo no período da safra de cana, laranja e café. No setor canavieiro do estado, o número de migrantes por safra é estimado em 40 mil.

Para milhares de trabalhadores essa situação “temporária” se torna permanente por falta de alternativas de emprego em suas regiões de origem. Eles iniciam um círculo vicioso: “O trabalho aqui é o mais bruto que existe, mas é o único que temos”, afirma um trabalhador pernambucano em Dobrada (SP). Mesmo dizendo que não voltariam mais a trabalhar no corte da cana, muitos acabam se submetendo indefinidamente a essa situação de extrema exploração. Na entressafra, um número mais reduzido de mão-de-obra é utilizado para o preparo da terra e plantio em algumas áreas, além da aplicação de agrotóxicos.

O desemprego causado pelo modelo agrícola baseado na monocultura e no latifúndio aumenta o contingente de trabalhadores que se submetem a trabalhar em lugares distantes de sua origem, em condições precárias. As denúncias de trabalho escravo aumentaram nos últimos anos.

Esses trabalhadores muitas vezes iniciam suas atividades já endividados. Uma das dívidas contraídas antes de iniciar o trabalho é com o transporte (muitas vezes clandestino, chamado de “excursão”) que custa em média R$200,00 por trabalhador que migra do Nordeste para São Paulo. Os trabalhadores migrantes são aliciados por “gatos” ou “turmeiros”, que muitas vezes são também os donos dos caminhões ou ônibus que realizam o transporte.

Na região dos canaviais aumentam as chamadas “cidades-dormitórios”, onde os trabalhadores migrantes vivem em cortiços, barracos ou nas “pensões”. Apesar da situação precária, os custos com moradia e alimentação são muito acima da média paga pela população em geral. Tanto os alojamentos das usinas quanto as “pensões” são barracos ou galpões improvisados, superlotados, sem ventilação ou condições mínimas de higiene. 

A incorporação de novas tecnologias no setor canavieiro aprofundou a dinâmica de exploração do trabalho, através de formas precárias de arregimentação, contratação, moradia, alimentação, etc. As colheitadeiras funcionam em áreas planas e contínuas, mas causam maior compactação do solo e prejudicam as mudas que deveriam rebrotar.  A mecanização gera superexploração do trabalho porque cria novas exigências como o corte rente ao solo (para maior aproveitamento da concentração de sacarose) e a ponteira da cana bem aparada. Isso aumenta o esforço dos trabalhadores e a jornada de trabalho. Com a mecanização do setor, foi transferido para os trabalhadores o corte da cana em condições mais difíceis, onde o terreno não é plano, o plantio é mais irregular e a cana é de pior qualidade.

O corte mecanizado se tornou referência para a quantidade cortada pelos trabalhadores, que subiu de 5 a 6 toneladas por dia para cada trabalhador na década de 80, para 9 a 10 toneladas por dia na década de 90. Hoje já se registra uma exigência das usinas de 12 a 15 toneladas por dia, principalmente em regiões onde o ritmo das máquinas se tornou referência de produtividade. O não cumprimento da meta freqüentemente significa que o trabalhador será dispensado e colocado em uma lista que circulará por diversas usinas, o que o impede de voltar a trabalhar na safra seguinte.

O aumento da meta do corte da cana causou grande diminuição no número de mulheres que realizam esse trabalho. Além disso, a dupla jornada (obrigação com o trabalho na cana, com o serviço em casa e com o cuidado e educação dos filhos) significa um esforço muito maior para as mulheres que, mesmo com todas as dificuldades, enfrentam o trabalho bruto. Mas as usinas restringem esse trabalho com a exigência adicional de que as mulheres sejam “operadas”, ou seja, impossibilitadas de ter filhos.

A maioria dos trabalhadores não tem controle da pesagem ou da metragem de sua produção diária, que é exercida pela usina. Muitas denúncias apontam para a manipulação e fraude desses dados pelas usinas, que pagam menos do que os trabalhadores teriam direito. O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Dobrada (SP), por exemplo, denunciou casos em que trabalhadores recebiam o equivalente ao corte de 10 toneladas de cana por dia, quando essa quantidade era de 19 toneladas.

No estado de São Paulo, os trabalhadores recebem R$2,60 por tonelada de cana cortada. O piso salarial é de R$410,00. Quando o trabalhador consegue atingir a média de 10 toneladas por dia, pode chegar a ganhar R$800,00 por mês. Porém, o custo com moradia e alimentação é de cerca de R$400,00 por mês. 

O “fracasso” causado pela perda do emprego por não cumprir a meta do corte de 10 a 12 toneladas por dia, e a impossibilidade de voltar para casa com algum recurso para a família, fazem com que muitos trabalhadores “fujam” ou “desapareçam”, migrando novamente (muitas vezes para a região Centro-Oeste) ou buscando trabalhos temporários nas periferias dos centros urbanos. Esse processo gera uma categoria de trabalhadores “itinerantes”.

O sistema de folga nas usinas é de “5 por 1”, ou seja, os trabalhadores têm um dia de folga a cada cinco dias de trabalho. Isso significa que a cada dia de folga somente um grupo relativamente pequeno de trabalhadores pode se reunir, o que dificulta o convívio social, familiar e a organização política. A maioria dos dias livres não é nos finais de semana, quando os trabalhadores teriam maior possibilidade de exercer essas atividades. Esse sistema exclui a exigência de que as usinas paguem horas extras nos finais de semana.

Em Pernambuco, os trabalhadores ganham em média dois salários mínimos por mês, se conseguem atingir a meta de cortar 6 toneladas de cana por dia. Eles também denunciam fraudes na pesagem da cana, além de maus tratos e falta de segurança no trabalho. “Quando tem serviço, a safra dura de três a quatro meses. O resto do tempo a gente passa fome. Eu tenho 55 anos e ninguém quer me contratar porque acham que sou ´sucata´. Também não posso me aposentar porque ainda não completei 35 anos de serviço”, relata o trabalhador José Santos, que hoje espera o processo de desapropriação para ser assentado na falida Usina Aliança.

 

Problemas de Saúde e Mortes de Trabalhadores

 

Entre janeiro de 2004 e setembro de 2005, a Pastoral dos Migrantes de São Paulo registrou oito mortes de trabalhadores nos canaviais da região de Ribeirão Preto. Essas mortes ocorreram durante ou imediatamente após a jornada de trabalho. Antes de morrer, os trabalhadores apresentaram câimbras, tontura, dores de cabeça e, em alguns casos, sangramento nasal. A Pastoral dos Migrantes argumenta que a causa das mortes é excesso de trabalho. Os atestados de óbito registram parada cardíaca e respiratória como principal causa das mortes.

“Além das mortes ocorridas nos canaviais, há aquelas não registradas, e que ocorrem ao longo de um tempo determinado. Doenças como câncer, provocado pelo uso de veneno, fuligem da cana, além de doenças respiratórias, alérgicas, da coluna, aliadas a quase total impossibilidade de serem tratadas em razão da inexistência de recursos financeiros para a compra de remédios conduzem à morte física ou social de muitos trabalhadores, cuja depredação de suas forças impede-os de continuar no mercado de trabalho”, explica a professora da UNESP, Maria Aparecida de Moraes.

Os movimentos repetitivos no corte da cana causam tendinites e problemas de coluna, descolamento de articulações e câimbras, provocadas por perda excessiva de potássio. As freqüentes câimbras seguidas de tontura, dor de cabeça e vômito são chamadas de “birola”. Muitos trabalhadores usam medicamentos (como injeções chamadas de “amarelinhas”) e drogas (como crack e maconha) para aliviar a dor e estimular o rendimento. Para cortar 10 toneladas de cana por dia, estima-se que cada trabalhador precise repetir cerca de 10 mil golpes de facão.

Os ferimentos e mutilações causados por cortes de facão, principalmente nas pernas e nas mãos, também são freqüentes. Porém, raramente a empresa notifica aos órgãos competentes esses acidentes de trabalho e praticamente não há controle por parte desses órgãos governamentais. Muitos trabalhadores doentes ou mutilados, apesar de impedidos de trabalhar, não conseguem aposentadoria por invalidez.

 

Destruição Ambiental

 

Diversos estudos demonstram que a prática da monocultura extensiva promove a destruição ambiental. A produção da cana é destrutiva, pois promove a queima dos solos, o alto nível de utilização de produtos químicos, além da poluição e do lixo químico das usinas processadoras do álcool e do açúcar.

Um relatório internacional da World Wildlife Fund (WWF), de Novembro de 2004, alerta para a indústria da cana como o principal ramo da monocultura poluidor do meio ambiente e destruidor da fauna e da flora. A cultura da cana cobre mais da metade do território de sete países e entre 10% e 50% do território de 15 países. Grandes extensões de terras férteis já foram degradadas pela monocultura da cana. As queimadas e o processamento da cana poluem o solo, o ar e as fontes de água potável. Além disso, a produção utiliza grande quantidade de herbicidas e pesticidas. Dados da Organização Mundial da Saúde apontam que cerca de 25 milhões de pessoas apresentam casos de envenenamento agudo por ano, em conseqüência do contato com esses produtos químicos.

No Brasil, a aplicação de herbicidas e agrotóxicos nos canaviais inclui o “Roundup” da empresa Monsanto. Essa prática afeta os trabalhadores, que muitas vezes não utilizam proteção adequada para aplicar esses produtos. Em Pernambuco, muitas áreas de plantio de cana têm declive acima de 45%, o que causa o escoamento dos venenos para uma extensão ainda maior. Os dejetos da cana são constantemente depositados nos rios, causando a morte de peixes, crustáceos e da vegetação fluvial, além da poluição de lençóis freáticos e de águas subterrâneas. O processamento da cana nas usinas polui o ar através da queima do bagaço, que produz fuligem e fumaça.  

Entre junho e agosto de 2005, foi decretado estado de alerta na região dos canaviais no estado de São Paulo porque as queimadas levaram a umidade relativa do ar a atingir níveis extremamente baixos (entre 13% e 15%). Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), foram registrados 287 focos de queimadas durante esse período, o que representa um aumento de 47,94% em relação ao mesmo período em 2004. Técnicos do INPE defendem uma “moratória da queima”, a partir de 2006.

Mesmo com todos os problemas ambientais, a monocultura da cana está sendo negociada como forma de gerar energia “limpa”. Um novo subproduto da cadeia produtiva é o crédito de carbono. Após assinatura do Protocolo de Kyoto em 1997, reforçado na Conferência Rio + 10 em 2002, na África do Sul, foi criado o “mercado de carbono”, utilizado por países centrais que precisam reduzir em 5,2% a emissão de gases poluentes até 2010. Para isso, foi criado o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), estabelecendo que cada tonelada de gás carbônico que deixa de ser emitida ou é retirada da atmosfera pode ser negociada no mercado mundial. O governo alemão, por exemplo, propõe negociar $100 milhões de reais como crédito de carbono, resultante da substituição da gasolina pelo álcool. Isso significaria um aumento das exportações brasileiras de 430 milhões de litros de álcool por ano.

Apesar de ser considerado um combustível “limpo”, a produção ce cana destrói o meio ambiente e afeta a saúde da população. A queimada serve para facilitar a colheita, porém essa prática destrói grade parte dos microorganismos do solo, polui o ar e causa doenças respiratórias. Grande parte do corte da cana no Brasil é feita sem nenhum controle ambiental. Em Pernambuco, por exemplo, restam apenas 5% de Mata Atlântica na região canavieira.



[1] Maria Luisa Mendonça é jornalista e diretora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.

Colaboraram: Comissão Pastoral da Terra (PE) e Serviço Pastoral dos Migrantes (SP)