É de suma importância
o estabelecimento de mecanismos de controle do cumprimento das
decisões dos órgãos internacionais de proteção dos
direitos humanos, visto que devido ao caráter político das
mesmas (em maior ou menor grau) não há poder coercitivo
propriamente dito. Ao analisar os casos de violações de
direitos humanos ocorridas no Brasil que o CEJIL patrocina
atualmente perante o Sistema Interamericano de Direitos
Humanos, percebe-se desafios e obstáculos diversos com relação
à implementação das recomendações da CIDH, principalmente
por conta da burocracia inerente às atividades do Estado
brasileiro. Com relação aos obstáculos citados, nos últimos
anos, o Estado, em muitos casos, tem alegado que o pacto
federativo pressupõe que os estados federados assumam a
responsabilidade internacional solidária pelas violações
verificadas no interior de seus territórios, o que tem
atrasado em muito a adoção das medidas de reparação
determinadas pela CIDH.
Efeitos
práticos das decisões dos órgãos do Sistema Interamericano
de Direitos Humanos
Beatriz
Affonso
Rita
Lamy Freund
1.
Introdução
O
Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) é composto
por dois subsistemas distintos
de responsabilização internacional do Estado. O primeiro,
cujos principais instrumentos normativos são a Carta da
Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Declaração
Americana dos Direitos e Deveres do Homem, apresenta como órgão
principal a Comissão Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH). O segundo, que, além dos instrumentos supra
referidos, tem como fundamentação legal a Convenção
Americana Sobre Direitos Humanos (CADH), é composto pela CIDH
e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH).
O
primeiro subsistema é aplicado aos Estados Membros da OEA que não são
parte da CADH ou que, mesmo sendo parte, não tenham
reconhecido a jurisdição obrigatória da Corte IDH. A estes
países devem-se aplicar os dispositivos de proteção dos
Direitos Humanos previstos na Carta constitutiva da OEA e na
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem,
incumbindo à CIDH a tarefa principal de auferir se houve ou não
violação de algum desses dispositivos, bem como de
recomendar as reparações necessárias.
O
segundo subsistema, previsto na CADH e formado pelo trabalho integrado da
CIDH e da Corte IDH, envolve apenas os Estados Partes desta
convenção.
Os
casos que tramitam na Comissão Interamericana de Direitos
Humanos são submetidos a um procedimento previsto na CADH e
no Regulamento da CIDH.
De
acordo com os artigos 41 e 44 da Convenção Americana, a CIDH
tem a função principal de garantir a observância e a defesa
dos direitos humanos no Continente Americano e, nesse sentido,
está apta a receber petições, com denúncias ou queixas de
violação, encaminhadas por qualquer pessoa ou grupo de
pessoas, bem como entidade não-governamental legalmente
reconhecida em um ou mais Estados Membros da OEA. Observe-se
que a qualquer indivíduo, não somente à vítima, é
facultada a possibilidade de peticionar à CIDH, denunciando
violação dos direitos humanos de terceiros. Quanto às denúncias
inter-estatais, a CADH tornou-a facultativa, de modo que a
competência da CIDH para receber e examinar as comunicações
em que um Estado Parte alegue ter um outro Estado Parte
cometido alguma violação está condicionada à declaração
expressa de ambos de reconhecimento de tal competência.
Uma
vez acionada, a CIDH analisará se as condições de
admissibilidade previstas na CADH se encontram presentes na
petição recebida. Tais condições estão previstas no art.
46 e dizem respeito a aspectos como esgotamento prévio dos
recursos internos, ausência do decurso do prazo de seis meses
para a representação, ausência de litispendência
internacional e ausência de coisa julgada internacional. Para
ser declarada admissível, a petição deverá, além cumprir
com todos os requisitos do artigo 46, versar sobre fatos que
indiquem violação de algum dos dispositivos previstos na
CADH, não ser manifestamente infundada, e não consistir em
reprodução de alguma outra petição já analisada pela
CIDH.
Passada
a fase de
admissibilidade, esta, por sua vez, reconhecida no chamado
Relatório de Admissibilidade, uma das opções a serem
seguidas é o ingresso na fase
conciliatória. Dispõe o art. 48, f, da CADH que, uma vez
admitido o caso, a CIDH se colocará a disposição das partes
a fim de se chegar amistosamente a uma solução, sempre
respeitando, contudo, os direitos nela reconhecidos. Cabe
ressaltar que, apesar de constituir o meio mais defensável
para a solução de controvérsias internacionais, o acordo
deve revestir-se de uma cautela especial quando relacionado à
violação de direitos humanos. Isso porque, diferentemente do
que se observa nos outros litígios internacionais, os
interesses em jogo nestes casos não pertencem apenas ao
Estado presente na controvérsia, mas representam valores de
um conjunto de nações, estes, por suas vez, expressos no
instrumento internacional que se alega ter violado.
Caso
as partes logrem chegar amistosamente a um acordo, a CIDH
deverá elaborar o relatório previsto no artigo 49, contendo
uma breve exposição dos fatos e da solução alcançada.
Este relatório será encaminhado aos peticionários, bem como
aos Estados Partes da CADH e, posteriormente, transmitido ao
Secretário Geral da OEA para publicação. Mas o papel da
CIDH nos casos em que se alcança a solução amistosa não
deve se resumir à elaboração do relatório. À CIDH cabe
verificar se, de fato, os termos do acordo estão
fundamentados nos princípios do Direito Internacional dos
Direitos Humanos, e, uma vez publicado o relatório,
fiscalizar o cumprimento de tal acordo, garantindo, inclusive,
que ele seja capaz de solucionar o conflito.
Caso
não seja alcançada a solução amistosa, CIDH passará a
deliberar sobre o mérito do litígio. Esta fase se encerra
com a elaboração de um relatório, no qual a CIDH exporá os
fatos e suas conclusões, atestando a existência ou não de
violação à CADH. Neste momento, portanto, a CIDH tem duas
opções: a) declarar a inexistência de qualquer violação
e, neste caso, o requerente não possui nenhum recurso disponível,
ou, b) declarar a ocorrência de alguma violação, formulando
as proposições e recomendações que julgar adequadas.
O
relatório previsto no art. 50 é, então, enviado aos Estados
interessados, sob caráter confidencial. No caso de constatação
de violação de direitos humanos, os Estados devem cumprir as
recomendações constantes no Relatório dentro de um prazo a
ser fixado pela CIDH, observado o limite máximo de três
meses. Se, no limite do prazo concedido, o tema não tiver
sido solucionado, a CADH prevê duas opções para a CIDH: a)
submeter o caso à Corte IDH, se o Estado em questão aceitou
a jurisdição obrigatória; e, se a CIDH julgar conveniente
no caso concreto, b) emitir o relatório previsto no art.51.
Posteriormente, em decorrência do não cumprimento da medidas
recomendadas no prazo estabelecido, a CIDH pode decidir
publicar este relatório.
Caso
estas medidas não sejam implementadas pelo Estado, a CIDH
pode propor ação de responsabilidade internacional contra o
Estado por violação de direitos humanos perante a Corte IDH.
2.
Reparação Integral
É
certo que as decisões dos órgãos internacionais de proteção
aos direitos humanos têm por escopo a reparação integral
das vítimas de violações de tal natureza. A finalidade última
que se busca com a aplicação da reparação integral é a
reconstituição da situação anterior à violação.
Com
efeito, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos busca o
mesmo fim ao elaborar suas recomendações no âmbito de um
determinado caso submetido a sua apreciação. Nesse sentido,
as recomendações da CIDH tem por objetivo satisfazer os
anseios de quem as pleiteia, porém, mais do que isto também
possui uma finalidade social, isto é, um fim coletivo que
ultrapassa a vítima. Isto se deve ao fato de que uma violação
decorre de uma série de fatores provenientes do contexto em
que a vítima se encontrava.
Nessa
lógica, a reparação unicamente individual seria
insuficiente, uma vez que não se prestaria a prevenir futuras
violações fomentadas dentro daquele mesmo contexto.
Entretanto, se a decisão da CIDH também abarca medidas de
reparação coletiva ou social, isto implica em alterações
estruturais na realidade de um Estado, seja por meio de políticas
públicas, seja mediante posturas diferenciadas que passam a
ser assumidas. Assim, torna-se possível a obtenção de
modificações no contexto em que ocorreram as violações e a
prevenção de novas ocorrências.
Portanto,
a idéia de reparação funda-se em dois pilares distintos: a
remediação da condição pessoal daquele indivíduo que foi
vítima de uma violação de direitos humanos e a prevenção
para que as violações cometidas não se repitam.
Cumpre
salientar que o conceito de reparação integral é
teoricamente abstrato, de modo que sua tradução em ações
certas e determinadas somente pode ser obtida diante de um
caso concreto, após a análise do contexto em que as violações
foram praticadas e dos efeitos gerados pelas mesmas. Dessa
forma, as recomendações formuladas pela CIDH ao final do trâmite
de uma denúncia tornam o conceito de “reparação
integral” palpável, delineando-o.
De
acordo com o entendimento já consolidado da Corte IDH, com o
qual se afinam os doutrinadores do Direito Internacional, a
reparação integral pressupõe a satisfação plena da vítima
pelas violações sofridas e pode ser constituída por medidas
de diversas naturezas, como o pagamento de certa quantia
(reparação pecuniária), a entrega de determinado bem, a
realização de obras que tenham repercussão pública (reparação
simbólica), o reconhecimento formal por parte do Estado de
sua responsabilidade pelas violações praticadas, a investigação
dos fatos que geraram as violações, a identificação dos
responsáveis e a punição dos mesmos, sempre de acordo com a
legislação interna de um pais, entre outras alternativas de
reparação.
Alguns
exemplos de reparação integral propostos pela CIDH são
ilustrativos para o entendimento desse conceito.
Caso
Carandiru 11.291 – Relatório 34/00 – 13 de abril de 2000
Neste
caso, a CIDH recomendou ao Estado brasileiro:
1.
Realizar uma investigação completa, imparcial e efetiva a
fim de identificar e processar as autoridades e funcionários
responsáveis pelas violações dos direitos humanos
assinaladas nas conclusões deste relatório.
2.
Adotar as medidas necessárias para que as vítimas dessas
violações que foram identificadas e suas famílias recebam
adequada e oportuna indenização pelas violações definidas
nas conclusões deste relatório, assim como para que sejam
identificadas as demais vítimas.
3.
Desenvolver políticas e estratégias destinadas a
descongestionar a população das casas de detenção,
estabelecer programas de reabilitação e reinserção social
acordes com as normas nacionais e internacionais e prevenir
surtos de violência nesses estabelecimentos. Desenvolver,
ademais, para o pessoal carcerário e policial, políticas,
estratégias e treinamento especial orientados para a negociação
e a solução pacífica de conflitos, assim como técnicas de
reinstauração da ordem que permitam a subjugação de
eventuais motins com o mínimo de risco para a vida e a
integridade pessoal dos internos e das forças policiais.
4.
Adotar as medidas necessárias para o cumprimento, no presente
caso, das disposições do artigo 28 da Convenção (Cláusula
federal) relativas às matérias que correspondem à competência
das entidades componentes da federação, neste caso o Estado
de São Paulo.”
Conforme
se depreende das recomendações transcritas, a CIDH
determinou medidas de caráter individual, como a indenização;
e outras de natureza social, como o desenvolvimento de políticas
de combate a superlotação das casas de detenção e o
estabelecimento de programas de reabilitação e reinserção
social.
Faz-se
necessário esclarecer que, embora a Casa de Detenção do
Carandiru tenha sido desativada, o Estado brasileiro não
adotou as medidas de cunho social recomendadas pela CIDH,
visto que jamais se empenhou na elaboração de políticas
publicas eficazes para, em última instância, atenuar o risco
à vida e à integridade pessoal dos indivíduos privados de
liberdade. Tampouco foi capaz de punir os responsáveis pelo
terrível episódio sobre o qual trata o caso em comento. De
fato, a única providência tomada foi o pagamento da indenização
devida a alguns familiares das vítimas.
Caso
Maria da Penha Maia Fernandes 12.051 – O Relatório 54/01
foi publicado em 4 de abril de 2001
Neste
caso emblemático de violência doméstica, a CIDH teceu as
seguintes recomendações:
“1.
Completar rápida e efetivamente o processamento penal do
responsável da agressão e tentativa de homicídio em prejuízo
da Senhora Maria da Penha Fernandes Maia.
2.
Proceder a uma investigação séria, imparcial e exaustiva a
fim de determinar a responsabilidade pelas irregularidades e
atrasos injustificados que impediram o processamento rápido e
efetivo do responsável, bem como tomar as medidas
administrativas, legislativas e judiciárias correspondentes.
3.
Adotar, sem prejuízo das ações que possam ser instauradas
contra o responsável civil da agressão, as medidas necessárias
para que o Estado assegure à vítima adequada reparação
simbólica e material pelas violações aqui estabelecidas,
particularmente por sua falha em oferecer um recurso rápido e
efetivo; por manter o caso na impunidade por mais de quinze
anos; e por impedir com esse atraso a possibilidade oportuna
de ação de reparação e indenização civil.
4.
Prosseguir e intensificar o processo de reforma que evite a
tolerância estatal e o tratamento discriminatório com
respeito à violência doméstica contra mulheres no Brasil.
A CIDH recomenda particularmente o seguinte:
a)
Medidas de capacitação e sensibilização dos funcionários
judiciais e policiais especializados para que compreendam a
importância de não tolerar a violência doméstica;
b)
Simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de
que possa ser reduzido o tempo processual, sem afetar os
direitos e garantias de devido processo;
c)
O estabelecimento de formas alternativas às judiciais,
rápidas e efetivas de solução de conflitos intrafamiliares,
bem como de sensibilização com respeito à sua gravidade e
às conseqüências penais que gera;
d)
Multiplicar o número de delegacias policiais especiais
para a defesa dos direitos da mulher e dotá-las dos recursos
especiais necessários à efetiva tramitação e investigação
de todas as denúncias de violência doméstica, bem como
prestar apoio ao Ministério Público na preparação de seus
informes judiciais.
e)
Incluir em seus planos pedagógicos unidades
curriculares destinadas à compreensão da importância do
respeito à mulher e a seus direitos reconhecidos na Convenção
de Belém do Pará, bem como ao manejo dos conflitos
intrafamiliares.
[...]”
Novamente,
identifica-se aqui a presença de várias medidas que
ultrapassam a vítima, fixadas com o intuito de alterar o
contexto que propiciou a ocorrência das violações.
Lamentavelmente,
o Estado mostrou-se bastante ineficiente diante deste cenário,
visto que o autor do crime somente pode ser capturado devido
aos esforços envidados pela própria vítima para localizá-lo,
diante da falta de diligência do Poder Judiciário. Além
disso, as medidas reparadoras de caráter individual também não
foram atendidas, porquanto a vítima não recebeu qualquer
reparação simbólica ou material. O caso encontra-se em um
longo processo de negociação entre as partes (vítima,
representantes da mesma – CEJIL e CLADEM – e Estado),
dentro do qual apresentam-se uma série de obstáculos burocráticos
e, por vezes, ideológicos.
No
caso José Pereira, 11.289, o Acordo de Solução Amistosa foi
firmado em 18 de setembro de 2003. Este caso foi levado ao
conhecimento da Comissão Interamericana pelo CEJIL e pela
Comissão Pastoral da Terra (CPT) e teve significativa
repercussão nacional. É o único caso brasileiro submetido
à CIDH em que se obteve uma solução amistosa, conforme já
mencionado em artigo da edição anterior,
sendo certo que o Estado brasileiro assumiu a responsabilidade
internacional pelas violações praticadas contra a vítima.
Como
no caso em apreço não houve a elaboração do relatório de
mérito, vez que se logrou uma solução amistosa, os termos
do acordo celebrado balizam-se pelas normas e princípios
internacionais, bem como pela jurisprudência do Sistema
Interamericano.
Nessa
linha, pactuou-se o reconhecimento da responsabilidade por
parte do Estado, medidas pecuniárias de reparação, o
julgamento e a punição dos responsáveis individuais, e
medidas de prevenção, tais como modificações legislativas,
medidas de fiscalização e repressão ao trabalho escravo e
medidas de sensibilização contra o trabalho escravo. A
indenização prevista foi paga, porém somente após a
promulgação de ato normativo contendo tal previsão. No
entanto, até o momento, o Acordo de Solução Amistosa não
foi plenamente cumprido.
3.
Seguimento das recomendações da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos
É
de suma importância o estabelecimento de mecanismos de
controle do cumprimento das decisões dos órgãos
internacionais de proteção dos direitos humanos, visto que
devido ao caráter político das mesmas (em maior ou menor
grau) não há poder coercitivo propriamente dito.
A
Corte IDH resguarda a competência de supervisionar o
cumprimento de suas próprias sentenças, como um dos
elementos que compõe sua jurisdição, nos termos dos artigos
67 e 68 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Já a
CIDH não possui um mecanismo de monitoramento de suas
recomendações.
Ao
analisar os casos de violações de direitos humanos ocorridas
no Brasil que o CEJIL patrocina atualmente perante o Sistema
Interamericano de Direitos Humanos, percebe-se desafios e obstáculos
diversos com relação à implementação das recomendações
da CIDH, principalmente por conta da burocracia inerente às
atividades do Estado brasileiro.
Com
relação aos obstáculos citados, nos últimos anos, o
Estado, em muitos casos, tem alegado que o pacto federativo
pressupõe que os estados federados assumam a responsabilidade
internacional solidária pelas violações verificadas no
interior de seus territórios, o que tem atrasado em muito a
adoção das medidas de reparação determinadas pela CIDH.
Ademais,
verifica-se que a necessidade de instrumentos formais,
sustentada pelo Estado brasileiro, como decretos, leis, termos
ou acordos com requisitos específicos, também confere
extrema lentidão ao cumprimento das recomendações
formuladas pela CIDH nos diversos casos.
A
título de exemplo, vale mencionar o Caso Ovelário Tames,
que já foi objeto de apreciação da CIDH e que, atualmente,
encontra-se na etapa final de negociação para a formalização
de um acordo que atenda as recomendações constantes do Relatório
Final do caso. O Estado brasileiro tem demonstrado empenho com
relação ao cumprimento das medidas inseridas no acordo
citado.
4.
Projeto de Lei do Brasil de caráter regulamentário relativo
à implementação das decisões dos órgãos internacionais
A
execução das decisões da Comissão e Corte Interamericanas
de Direitos Humanos tem sido objeto de estudos, despertando
grande interesse nos atores que o utilizam, uma vez que seu
descumprimento pode relativizar a autoridade do Sistema,
enquanto instrumento garantidor de direitos, fragilizando
ainda mais aqueles que necessitam de seu amparo.
Os
membros dos respectivos órgãos do sistema; seus usuários:
as vítimas e familiares de vítimas; as organizações da
sociedade civil e os estados vêm debatendo os aspectos da
obrigatoriedade, executividade e capacidade de monitoramento
das decisões.
O
CEJIL vem realizando uma pesquisa
em seus diversos escritórios sobre o tema. Está estudando os
casos que tramitaram e que ainda estão em trâmite perante a
Comissão e na Corte, verificando as iniciativas em âmbito
interno no que diz respeito ao cumprimento das recomendações,
da implementação dos acordos de solução amistosa e dos
respectivos ordenamentos jurídicos dos Estados Partes do
sistema interamericano.
Alguns
países já vêm desenvolvendo alguns mecanismos para
implementar recorrentes
formas de reparação, ordenadas pela Corte, e recomendações
da Comissão Interamericana.
Uma
análise preliminar indica que os estados que já enfrentam de
modo sistemático esses desafios na Corte Interamericana, com
um maior número de casos com sentenças de fundo ou medidas
provisionais, têm desenvolvido instrumentos ou se
reorganizado administrativa e judicialmente para adotar as
decisões.
No
Brasil existem atualmente iniciativas, de tipo normativo e
administrativo, sendo discutidas pelos Poderes Executivo e
Legislativo Federal.
A
Câmara dos Deputados está elaborando um instrumento legal
que tem o objetivo de regulamentar as decisões dos organismos
internacionais.
No
ano 2000, foi apresentado um projeto de lei, pelo então
Deputado Federal Marcos Rolim, que visava tratar da produção
de efeitos, no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro,
das decisões da Comissão e da Corte Interamericana de
Direitos Humanos. Esse projeto foi arquivado antes mesmo de
ter sido colocado em pauta para votação.
Em
dezembro de 2004, o Deputado Federal José Eduardo Cardozo fez
nova proposição do projeto
que resgatava a proposta inicial, efetuando uma modificação
que entendeu necessária. A nova versão contemplou o sistema
global, ampliando essa disciplina da produção de feitos das
decisões no âmbito interno também para os tratados e convenções
da Organização das Nações Unidas.
O
eixo do projeto se refere à proposta de definição de um
meio legal para viabilizar a implementação das decisões.
Para tanto, determina “que a União assuma a responsabilidade pelo pagamento das indenizações,
quando assim for decidido pelos organismos internacionais”.
O artigo 2° regulamenta o instrumento pelo qual a União
assumirá a responsabilidade do pagamento das decisões de caráter
indenizatório, decidindo que as mesmas passarão a se
constituir títulos
executivos judiciais sujeitos à execução direta contra
a Fazenda Pública Federal. Garante, no entanto,
que a União possa ser ressarcida dando faculdade a mesma de “entrar com ação regressiva contra, pessoas Físicas ou Jurídicas,
privadas ou públicas, responsáveis direta ou indiretamente
pelos atos ilícitos que ensejaram a decisão de caráter
indenizatório”.
Esse
conjunto de artigos assegura que diferentemente do que vem
sendo aplicado atualmente a União possibilite o pagamento prévio
das indenizações, inclusive em casos cuja violação é
considerada um crime estadual e não federal, determinando
ainda, que sejam respeitados os valores fixados pelos parâmetros
já estabelecidos pelos mecanismos internacionais. No entanto,
garante que a União possa ser ressarcida pelo violador
posteriormente ao pagamento da indenização determinada.
Soma-se
aos instrumentos propostos um sistema privilegiado de
pagamento, tendo em vista que determina para efeitos legais
que o crédito seja de “natureza alimentícia”, uma vez
que o mesmo dispõe urgência e prioridade, e ainda quando
recebido, mesmo que contestado posteriormente como indevido, não
é passível de restituição. Esse status
o caracteriza como privilegiado em relação aos outros créditos
de natureza judicial ou patrimonial.
A
análise superficial do citado projeto indica que o mesmo não
cria um sistema diferenciado para a implementação das decisões
dos órgãos internacionais, mas procura enfrentar obstáculos
já conhecidos
que têm dificultado, ou mesmo impedido, a pronta viabilização
dos pagamentos das indenizações, por meio de uma
alternativa, cujos instrumentos legais já existem. O projeto
parece tentar alcançar uma composição favorável de
institutos legais e administrativos que já existem para
assegurar os pagamentos.
A
questão que se coloca, ainda que se perceba a tentativa de
solucionar os impedimentos que ora existem, é a fila para o
pagamento de precatórios, ainda que alimentícios. Por fim,
entende-se que o projeto assegurará o pagamento, ao vinculá-lo
a estruturas do Poder Executivo Federal; no entanto, não pode
assegurar a celeridade do pagamento às vítimas ou dos seus
familiares.
Ainda
em trâmite no Congresso Federal o projeto de lei deverá ser
apreciado pelas Comissões de Direitos Humanos e Minorias,
Relações Exteriores e Defesa Nacional, assim como pela
Comissão de constituição da Câmara dos Deputados antes de
ser votado.
Atualmente,
o projeto está na Comissão de Direitos Humanos e Minorias e
o relator designado é o Deputado Orlando Fantazzini,
ex-presidente da citada Comissão, que está elaborando uma
emenda substitutiva ao projeto de lei apresentado pelo
Deputado José Eduardo Cardozo.
Em
setembro do presente ano, foi realizado, em Brasília, o
Encontro Nacional de Direitos Humanos, que contemplou um Grupo
de Trabalho que discutiu o
“Estado Federal e a Implementação dos Tratados
Internacionais de Direitos Humanos”.
Nessa ocasião, o CEJIL informou às outras ONGs e autoridades
públicas presentes sobre o processo de elaboração de lei,
descrito acima, e solicitou formalmente ao Deputado
Orlando Fantazzini que possibilitasse a participação da
sociedade civil organizada na discussão e proposição de idéias
para o projeto substitutivo que está sendo elaborado pelo seu
gabinete. As instituições que lá estavam foram prontamente
convidadas por ele a conhecer o primeiro rascunho da emenda
substitutiva em reunião em seu gabinete com sua assessoria.
A
emenda substitutiva se diferencia substancialmente do Projeto
de Lei 4.667/04, tanto no foco central das preocupações
relacionadas à implementação das decisões dos órgãos
internacionais, como nos instrumentos a serem criados para
efetivação das mesmas.
Em
primeiro lugar, volta a restringir o projeto ao Sistema
Interamericano de Direitos Humanos, excluindo de sua redação
o Sistema Global (ONU) antes ampliado pelo PL 4.667/04.
No
que diz respeito ao pagamento das indenizações, atribui
responsabilidade compartilhada entre União, Estado e Município,
sem definir como será esse processo ou por qual via serão
efetivamente pagas; determina apenas que os mesmos “empenharão
esforços”.
O artigo 3º, como no projeto inicial, prevê o ressarcimento
da União por meio de ação regressiva, quando a mesma se
responsabilizar pelos pagamentos, devendo recebê-los por essa
via judicial ou, como autorizada no parágrafo único, ao
“descontar do repasse ordinário das receitas destinadas aos
entes federativos os valores garantidos para o cumprimento das
decisões”.
Curiosamente,
o artigo 2º da Emenda Substitutiva se assemelha muito ao
Artigo 2º do Decreto do Poder Executivo n.º 4.433, de 18 de
outubro de 2002,
que instituiu uma Comissão de Tutela
dos Direitos Humanos, no âmbito da Secretaria de
Estado dos Direitos Humanos, na época subordinada ao Ministério
da Justiça. A emenda também propõe a criação de um órgão
inter‑ministerial. Em ambos documentos o artigo 2º
regulamenta a competência dos órgãos propostos.
Restringiu-se
o objeto de trabalho das citadas Comissões ao acompanhamento
das decisões da Corte Interamericana, entendendo serem tais
decisões as únicas a necessitarem de regulamentação
interna para implementação efetiva. Apenas no inciso
terceiro do artigo 2º, dos dois documentos, é que aparecem
referências à inclusão da competência para fazer sugestões
também nos casos “submetidos à apreciação da Comissão
Interamericana”.
A
Comissão Interministerial proposta pelo gabinete do Deputado
Orlando Fantazzini regulamenta a composição do trabalho de
diversos órgãos do Poder Executivo Federal, que já estão
envolvidos individualmente nos processos de implementação de
decisões, dando um caráter de obrigatoriedade ao trabalho
conjunto, em total concordância com a Comissão de Tutela
proposta pelo Poder Executivo e até o momento não
implementada.
Por
fim, a comparação entre os projetos revela que as diferenças
residem no objetivo que os mesmos vislumbram. Enquanto o eixo
central do PL 4.667/04 procura estabelecer como deve ser o
pagamento das indenizações previstas pelas decisões dos órgãos
do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, ao estabelecer
os instrumentos legais que prontamente garantirão o pagamento
dessas indenizações pela União, bem como quais serão e
como deve ser elaborada uma alternativa legal eficiente; a
Emenda Substitutiva propõe a criação de um órgão do Poder
Executivo, buscando fortalecer os esforços para plena
implementação das decisões, sem determinar responsabilidade
direta pelo pagamento devido ou instrumento legal a ser
utilizado para tanto.
5.
Conclusão
Diante
dos temas ora abordados, conclui-se que a implementação
efetiva das decisões
da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e da Corte
IDH, proferidas ao final do trâmite dos casos apreciados por
tais órgãos, e cuja finalidade máxima consiste na reparação
integral, é a garantia da proteção dos direitos
fundamentais das vítimas e o instrumento fomentador de mudanças
nas estruturas sociais e institucionais dos Estados Partes.
Tal implementação também tem a capacidade de transformar os
contextos em que ocorreram as violações de direitos humanos,
assegurando, dessa forma, que as mesmas violações não se
repitam. Este é o último recurso de justiça ao alcance dos
habitantes do Continente.
Portanto,
é fundamental que a Sociedade Civil Organizada, usuária ou não
do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, acompanhe todas
as iniciativas dos Poderes Executivo e Legislativo Federal.
Dito acompanhamento pode se dar por meio do monitoramento do
processo de elaboração de texto legal, assim como do trâmite
no Congresso Nacional dos instrumentos propostos, uma vez que
os mesmos serão criados com o fim de implementar as decisões
dos organismos internacionais, lembrando-se que os mecanismos
em referência terão um papel determinante na garantia dos
direitos das vítimas atendidas por essas instituições.
Diretora do Centro pela Justiça e pelo Direito
Internacional - Brasil (CEJIL). O CEJIL é uma organização
internacional de defesa e promoção de direitos humanos
no Continente Americano, cuja principal atividade é o litígio
de casos perante o Sistema Interamericano de Direitos
Humanos.
Advogada do
CEJIL/Brasil.
Atualmente, há 20 casos brasileiros em trâmite perante a
CIDH que já tiveram uma decisão de mérito (relatório
do artigo 51 da CADH) e apenas 1 no qual se obteve uma
solução amistosa.
O Caso Carandiru foi apresentado à CIDH pelo CEJIL e a
Comissão Teotônio Vilela (CTV), em 22.02.94.
O Caso Maria da Penha foi encaminhado à CIDH pelo CEJIL e
pelo CLADEM, em 20.08.98.
“O Brasil e o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos”,
Liliana Tojo e Ana Luisa Lima. Relatório da Rede Social
de Justiça e Direitos Humanos, 2004.
Ovelário Tames pertencia a comunidade indígena Macuxi e
foi assassinado por policiais em Roraima. O caso foi
denunciado, à Comissão Interamericana de Direitos
Humanos pelo Centro pela Justiça e pelo Direito
Internacional (CEJIL) e pelo Conselho Indígena de Roraima
(CIR).
reflexão comparada que deverá estar disponibilizada em
uma publicação no próximo ano.
15 de Dezembro de 2004 – Projeto de Lei n° 4.667.
Justificação do Projeto de Lei n°4.667.
Artigo 3° do Projeto de Lei n°4.667.
Como foi citado acima, acordo de Solução Amistosa e
recomendações de Relatórios de Fundo, não foram
efetivados pelas dificuldades que impõe o Pacto
Federativo, no qual alguns Estados da Federação se
recusam a efetivar as reparações integrais recomendadas
pela Comissão Interamericana.
Entre os resultados dos grupos de trabalhos apresentados
para o plenário ao final do encontro, em formato de relatório,
destaca-se a seguinte conclusão: “é necessária a
imediata elaboração, mediante amplo debate com a
sociedade civil, de norma definidora de medidas adequadas
para o cumprimento integral
dessas decisões e recomendações...”
Emenda Substitutiva Global (PL n.º 4.667/04), Parágrafo
único do Artigo 1º
Elaborado pelo Governo do Presidente Fernando Henrique
Cardoso, publicado no Diário Oficial da União em 21 de
outubro de 2002.
O conceito de decisões é utilizado no presente artigo de
uma forma abrangente e inclui as recomendações da Comissão
Interamericana.
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