Pagina Principal  

Relatórios
 

É de suma importância o estabelecimento de mecanismos de controle do cumprimento das decisões dos órgãos internacionais de proteção dos direitos humanos, visto que devido ao caráter político das mesmas (em maior ou menor grau) não há poder coercitivo propriamente dito. Ao analisar os casos de violações de direitos humanos ocorridas no Brasil que o CEJIL patrocina atualmente perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, percebe-se desafios e obstáculos diversos com relação à implementação das recomendações da CIDH, principalmente por conta da burocracia inerente às atividades do Estado brasileiro. Com relação aos obstáculos citados, nos últimos anos, o Estado, em muitos casos, tem alegado que o pacto federativo pressupõe que os estados federados assumam a responsabilidade internacional solidária pelas violações verificadas no interior de seus territórios, o que tem atrasado em muito a adoção das medidas de reparação determinadas pela CIDH.

 

Efeitos práticos das decisões dos órgãos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos

Beatriz Affonso*

Rita Lamy Freund**

 

 1. Introdução

O Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) é composto por dois subsistemas distintos de responsabilização internacional do Estado. O primeiro, cujos principais instrumentos normativos são a Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, apresenta como órgão principal a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). O segundo, que, além dos instrumentos supra referidos, tem como fundamentação legal a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (CADH), é composto pela CIDH e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH).

O primeiro subsistema é aplicado aos Estados Membros da OEA que não são parte da CADH ou que, mesmo sendo parte, não tenham reconhecido a jurisdição obrigatória da Corte IDH. A estes países devem-se aplicar os dispositivos de proteção dos Direitos Humanos previstos na Carta constitutiva da OEA e na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, incumbindo à CIDH a tarefa principal de auferir se houve ou não violação de algum desses dispositivos, bem como de recomendar as reparações necessárias.

O segundo subsistema, previsto na CADH e formado pelo trabalho integrado da CIDH e da Corte IDH, envolve apenas os Estados Partes desta convenção.

Os casos que tramitam na Comissão Interamericana de Direitos Humanos são submetidos a um procedimento previsto na CADH e no Regulamento da CIDH.

De acordo com os artigos 41 e 44 da Convenção Americana, a CIDH tem a função principal de garantir a observância e a defesa dos direitos humanos no Continente Americano e, nesse sentido, está apta a receber petições, com denúncias ou queixas de violação, encaminhadas por qualquer pessoa ou grupo de pessoas, bem como entidade não-governamental legalmente reconhecida em um ou mais Estados Membros da OEA. Observe-se que a qualquer indivíduo, não somente à vítima, é facultada a possibilidade de peticionar à CIDH, denunciando violação dos direitos humanos de terceiros. Quanto às denúncias inter-estatais, a CADH tornou-a facultativa, de modo que a competência da CIDH para receber e examinar as comunicações em que um Estado Parte alegue ter um outro Estado Parte cometido alguma violação está condicionada à declaração expressa de ambos de reconhecimento de tal competência.

Uma vez acionada, a CIDH analisará se as condições de admissibilidade previstas na CADH se encontram presentes na petição recebida. Tais condições estão previstas no art. 46 e dizem respeito a aspectos como esgotamento prévio dos recursos internos, ausência do decurso do prazo de seis meses para a representação, ausência de litispendência internacional e ausência de coisa julgada internacional. Para ser declarada admissível, a petição deverá, além cumprir com todos os requisitos do artigo 46, versar sobre fatos que indiquem violação de algum dos dispositivos previstos na CADH, não ser manifestamente infundada, e não consistir em reprodução de alguma outra petição já analisada pela CIDH.

Passada a fase de admissibilidade, esta, por sua vez, reconhecida no chamado Relatório de Admissibilidade, uma das opções a serem seguidas é o ingresso na fase conciliatória. Dispõe o art. 48, f, da CADH que, uma vez admitido o caso, a CIDH se colocará a disposição das partes a fim de se chegar amistosamente a uma solução, sempre respeitando, contudo, os direitos nela reconhecidos. Cabe ressaltar que, apesar de constituir o meio mais defensável para a solução de controvérsias internacionais, o acordo deve revestir-se de uma cautela especial quando relacionado à violação de direitos humanos. Isso porque, diferentemente do que se observa nos outros litígios internacionais, os interesses em jogo nestes casos não pertencem apenas ao Estado presente na controvérsia, mas representam valores de um conjunto de nações, estes, por suas vez, expressos no instrumento internacional que se alega ter violado.

Caso as partes logrem chegar amistosamente a um acordo, a CIDH deverá elaborar o relatório previsto no artigo 49, contendo uma breve exposição dos fatos e da solução alcançada. Este relatório será encaminhado aos peticionários, bem como aos Estados Partes da CADH e, posteriormente, transmitido ao Secretário Geral da OEA para publicação. Mas o papel da CIDH nos casos em que se alcança a solução amistosa não deve se resumir à elaboração do relatório. À CIDH cabe verificar se, de fato, os termos do acordo estão fundamentados nos princípios do Direito Internacional dos Direitos Humanos, e, uma vez publicado o relatório, fiscalizar o cumprimento de tal acordo, garantindo, inclusive, que ele seja capaz de solucionar o conflito.

Caso não seja alcançada a solução amistosa, CIDH passará a deliberar sobre o mérito do litígio. Esta fase se encerra com a elaboração de um relatório, no qual a CIDH exporá os fatos e suas conclusões, atestando a existência ou não de violação à CADH. Neste momento, portanto, a CIDH tem duas opções: a) declarar a inexistência de qualquer violação e, neste caso, o requerente não possui nenhum recurso disponível, ou, b) declarar a ocorrência de alguma violação, formulando as proposições e recomendações que julgar adequadas.

O relatório previsto no art. 50 é, então, enviado aos Estados interessados, sob caráter confidencial. No caso de constatação de violação de direitos humanos, os Estados devem cumprir as recomendações constantes no Relatório dentro de um prazo a ser fixado pela CIDH, observado o limite máximo de três meses. Se, no limite do prazo concedido, o tema não tiver sido solucionado, a CADH prevê duas opções para a CIDH: a) submeter o caso à Corte IDH, se o Estado em questão aceitou a jurisdição obrigatória; e, se a CIDH julgar conveniente no caso concreto, b) emitir o relatório previsto no art.51[1]. Posteriormente, em decorrência do não cumprimento da medidas recomendadas no prazo estabelecido, a CIDH pode decidir publicar este relatório.

Caso estas medidas não sejam implementadas pelo Estado, a CIDH pode propor ação de responsabilidade internacional contra o Estado por violação de direitos humanos perante a Corte IDH.

2. Reparação Integral

É certo que as decisões dos órgãos internacionais de proteção aos direitos humanos têm por escopo a reparação integral das vítimas de violações de tal natureza. A finalidade última que se busca com a aplicação da reparação integral é a reconstituição da situação anterior à violação.

Com efeito, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos busca o mesmo fim ao elaborar suas recomendações no âmbito de um determinado caso submetido a sua apreciação. Nesse sentido, as recomendações da CIDH tem por objetivo satisfazer os anseios de quem as pleiteia, porém, mais do que isto também possui uma finalidade social, isto é, um fim coletivo que ultrapassa a vítima. Isto se deve ao fato de que uma violação decorre de uma série de fatores provenientes do contexto em que a vítima se encontrava.

Nessa lógica, a reparação unicamente individual seria insuficiente, uma vez que não se prestaria a prevenir futuras violações fomentadas dentro daquele mesmo contexto. Entretanto, se a decisão da CIDH também abarca medidas de reparação coletiva ou social, isto implica em alterações estruturais na realidade de um Estado, seja por meio de políticas públicas, seja mediante posturas diferenciadas que passam a ser assumidas. Assim, torna-se possível a obtenção de modificações no contexto em que ocorreram as violações e a prevenção de novas ocorrências.

Portanto, a idéia de reparação funda-se em dois pilares distintos: a remediação da condição pessoal daquele indivíduo que foi vítima de uma violação de direitos humanos e a prevenção para que as violações cometidas não se repitam.

Cumpre salientar que o conceito de reparação integral é teoricamente abstrato, de modo que sua tradução em ações certas e determinadas somente pode ser obtida diante de um caso concreto, após a análise do contexto em que as violações foram praticadas e dos efeitos gerados pelas mesmas. Dessa forma, as recomendações formuladas pela CIDH ao final do trâmite de uma denúncia tornam o conceito de “reparação integral” palpável, delineando-o.

De acordo com o entendimento já consolidado da Corte IDH, com o qual se afinam os doutrinadores do Direito Internacional, a reparação integral pressupõe a satisfação plena da vítima pelas violações sofridas e pode ser constituída por medidas de diversas naturezas, como o pagamento de certa quantia (reparação pecuniária), a entrega de determinado bem, a realização de obras que tenham repercussão pública (reparação simbólica), o reconhecimento formal por parte do Estado de sua responsabilidade pelas violações praticadas, a investigação dos fatos que geraram as violações, a identificação dos responsáveis e a punição dos mesmos, sempre de acordo com a legislação interna de um pais, entre outras alternativas de reparação.

Alguns exemplos de reparação integral propostos pela CIDH são ilustrativos para o entendimento desse conceito.

 

Caso Carandiru 11.291 – Relatório 34/00 – 13 de abril de 2000[2]

Neste caso, a CIDH recomendou ao Estado brasileiro:

1. Realizar uma investigação completa, imparcial e efetiva a fim de identificar e processar as autoridades e funcionários responsáveis pelas violações dos direitos humanos assinaladas nas conclusões deste relatório.

2. Adotar as medidas necessárias para que as vítimas dessas violações que foram identificadas e suas famílias recebam adequada e oportuna indenização pelas violações definidas nas conclusões deste relatório, assim como para que sejam identificadas as demais vítimas.

3. Desenvolver políticas e estratégias destinadas a descongestionar a população das casas de detenção, estabelecer programas de reabilitação e reinserção social acordes com as normas nacionais e internacionais e prevenir surtos de violência nesses estabelecimentos. Desenvolver, ademais, para o pessoal carcerário e policial, políticas, estratégias e treinamento especial orientados para a negociação e a solução pacífica de conflitos, assim como técnicas de reinstauração da ordem que permitam a subjugação de eventuais motins com o mínimo de risco para a vida e a integridade pessoal dos internos e das forças policiais.

4. Adotar as medidas necessárias para o cumprimento, no presente caso, das disposições do artigo 28 da Convenção (Cláusula federal) relativas às matérias que correspondem à competência das entidades componentes da federação, neste caso o Estado de São Paulo.”

Conforme se depreende das recomendações transcritas, a CIDH determinou medidas de caráter individual, como a indenização; e outras de natureza social, como o desenvolvimento de políticas de combate a superlotação das casas de detenção e o estabelecimento de programas de reabilitação e reinserção social.

Faz-se necessário esclarecer que, embora a Casa de Detenção do Carandiru tenha sido desativada, o Estado brasileiro não adotou as medidas de cunho social recomendadas pela CIDH, visto que jamais se empenhou na elaboração de políticas publicas eficazes para, em última instância, atenuar o risco à vida e à integridade pessoal dos indivíduos privados de liberdade. Tampouco foi capaz de punir os responsáveis pelo terrível episódio sobre o qual trata o caso em comento. De fato, a única providência tomada foi o pagamento da indenização devida a alguns familiares das vítimas.

 

Caso Maria da Penha Maia Fernandes 12.051 – O Relatório 54/01 foi publicado em 4 de abril de 2001[3]

Neste caso emblemático de violência doméstica, a CIDH teceu as seguintes recomendações:

“1. Completar rápida e efetivamente o processamento penal do responsável da agressão e tentativa de homicídio em prejuízo da Senhora Maria da Penha Fernandes Maia.

2. Proceder a uma investigação séria, imparcial e exaustiva a fim de determinar a responsabilidade pelas irregularidades e atrasos injustificados que impediram o processamento rápido e efetivo do responsável, bem como tomar as medidas administrativas, legislativas e judiciárias correspondentes.

3. Adotar, sem prejuízo das ações que possam ser instauradas contra o responsável civil da agressão, as medidas necessárias para que o Estado assegure à vítima adequada reparação simbólica e material pelas violações aqui estabelecidas, particularmente por sua falha em oferecer um recurso rápido e efetivo; por manter o caso na impunidade por mais de quinze anos; e por impedir com esse atraso a possibilidade oportuna de ação de reparação e indenização civil.

4. Prosseguir e intensificar o processo de reforma que evite a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra mulheres no Brasil.  A CIDH recomenda particularmente o seguinte:

a)   Medidas de capacitação e sensibilização dos funcionários judiciais e policiais especializados para que compreendam a importância de não tolerar a violência doméstica;

b)   Simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o tempo processual, sem afetar os direitos e garantias de devido processo;

c)   O estabelecimento de formas alternativas às judiciais, rápidas e efetivas de solução de conflitos intrafamiliares, bem como de sensibilização com respeito à sua gravidade e às conseqüências penais que gera;

d)   Multiplicar o número de delegacias policiais especiais para a defesa dos direitos da mulher e dotá-las dos recursos especiais necessários à efetiva tramitação e investigação de todas as denúncias de violência doméstica, bem como prestar apoio ao Ministério Público na preparação de seus informes judiciais.

e)   Incluir em seus planos pedagógicos unidades curriculares destinadas à compreensão da importância do respeito à mulher e a seus direitos reconhecidos na Convenção de Belém do Pará, bem como ao manejo dos conflitos intrafamiliares.

[...]”

Novamente, identifica-se aqui a presença de várias medidas que ultrapassam a vítima, fixadas com o intuito de alterar o contexto que propiciou a ocorrência das violações.

Lamentavelmente, o Estado mostrou-se bastante ineficiente diante deste cenário, visto que o autor do crime somente pode ser capturado devido aos esforços envidados pela própria vítima para localizá-lo, diante da falta de diligência do Poder Judiciário. Além disso, as medidas reparadoras de caráter individual também não foram atendidas, porquanto a vítima não recebeu qualquer reparação simbólica ou material. O caso encontra-se em um longo processo de negociação entre as partes (vítima, representantes da mesma – CEJIL e CLADEM – e Estado), dentro do qual apresentam-se uma série de obstáculos burocráticos e, por vezes, ideológicos.

No caso José Pereira, 11.289, o Acordo de Solução Amistosa foi firmado em 18 de setembro de 2003. Este caso foi levado ao conhecimento da Comissão Interamericana pelo CEJIL e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e teve significativa repercussão nacional. É o único caso brasileiro submetido à CIDH em que se obteve uma solução amistosa, conforme já mencionado em artigo da edição anterior[4], sendo certo que o Estado brasileiro assumiu a responsabilidade internacional pelas violações praticadas contra a vítima.

Como no caso em apreço não houve a elaboração do relatório de mérito, vez que se logrou uma solução amistosa, os termos do acordo celebrado balizam-se pelas normas e princípios internacionais, bem como pela jurisprudência do Sistema Interamericano.

Nessa linha, pactuou-se o reconhecimento da responsabilidade por parte do Estado, medidas pecuniárias de reparação, o julgamento e a punição dos responsáveis individuais, e medidas de prevenção, tais como modificações legislativas, medidas de fiscalização e repressão ao trabalho escravo e medidas de sensibilização contra o trabalho escravo. A indenização prevista foi paga, porém somente após a promulgação de ato normativo contendo tal previsão. No entanto, até o momento, o Acordo de Solução Amistosa não foi plenamente cumprido.

 

3. Seguimento das recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos

É de suma importância o estabelecimento de mecanismos de controle do cumprimento das decisões dos órgãos internacionais de proteção dos direitos humanos, visto que devido ao caráter político das mesmas (em maior ou menor grau) não há poder coercitivo propriamente dito.

A Corte IDH resguarda a competência de supervisionar o cumprimento de suas próprias sentenças, como um dos elementos que compõe sua jurisdição, nos termos dos artigos 67 e 68 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Já a CIDH não possui um mecanismo de monitoramento de suas recomendações.

Ao analisar os casos de violações de direitos humanos ocorridas no Brasil que o CEJIL patrocina atualmente perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, percebe-se desafios e obstáculos diversos com relação à implementação das recomendações da CIDH, principalmente por conta da burocracia inerente às atividades do Estado brasileiro.

Com relação aos obstáculos citados, nos últimos anos, o Estado, em muitos casos, tem alegado que o pacto federativo pressupõe que os estados federados assumam a responsabilidade internacional solidária pelas violações verificadas no interior de seus territórios, o que tem atrasado em muito a adoção das medidas de reparação determinadas pela CIDH.

Ademais, verifica-se que a necessidade de instrumentos formais, sustentada pelo Estado brasileiro, como decretos, leis, termos ou acordos com requisitos específicos, também confere extrema lentidão ao cumprimento das recomendações formuladas pela CIDH nos diversos casos.

A título de exemplo, vale mencionar o Caso Ovelário Tames[5], que já foi objeto de apreciação da CIDH e que, atualmente, encontra-se na etapa final de negociação para a formalização de um acordo que atenda as recomendações constantes do Relatório Final do caso. O Estado brasileiro tem demonstrado empenho com relação ao cumprimento das medidas inseridas no acordo citado.

 

4. Projeto de Lei do Brasil de caráter regulamentário relativo à implementação das decisões dos órgãos internacionais

A execução das decisões da Comissão e Corte Interamericanas de Direitos Humanos tem sido objeto de estudos, despertando grande interesse nos atores que o utilizam, uma vez que seu descumprimento pode relativizar a autoridade do Sistema, enquanto instrumento garantidor de direitos, fragilizando ainda mais aqueles que necessitam de seu amparo.

Os membros dos respectivos órgãos do sistema; seus usuários: as vítimas e familiares de vítimas; as organizações da sociedade civil e os estados vêm debatendo os aspectos da obrigatoriedade, executividade e capacidade de monitoramento das decisões.

O CEJIL vem realizando uma pesquisa[6] em seus diversos escritórios sobre o tema. Está estudando os casos que tramitaram e que ainda estão em trâmite perante a Comissão e na Corte, verificando as iniciativas em âmbito interno no que diz respeito ao cumprimento das recomendações, da implementação dos acordos de solução amistosa e dos respectivos ordenamentos jurídicos dos Estados Partes do sistema interamericano.

Alguns países já vêm desenvolvendo alguns mecanismos para implementar  recorrentes formas de reparação, ordenadas pela Corte, e recomendações da Comissão Interamericana.

Uma análise preliminar indica que os estados que já enfrentam de modo sistemático esses desafios na Corte Interamericana, com um maior número de casos com sentenças de fundo ou medidas provisionais, têm desenvolvido instrumentos ou se reorganizado administrativa e judicialmente para adotar as decisões.

No Brasil existem atualmente iniciativas, de tipo normativo e administrativo, sendo discutidas pelos Poderes Executivo e Legislativo Federal.

A Câmara dos Deputados está elaborando um instrumento legal que tem o objetivo de regulamentar as decisões dos organismos internacionais.

No ano 2000, foi apresentado um projeto de lei, pelo então Deputado Federal Marcos Rolim, que visava tratar da produção de efeitos, no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro, das decisões da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Esse projeto foi arquivado antes mesmo de ter sido colocado em pauta para votação.

Em dezembro de 2004, o Deputado Federal José Eduardo Cardozo fez nova proposição do projeto[7] que resgatava a proposta inicial, efetuando uma modificação que entendeu necessária. A nova versão contemplou o sistema global, ampliando essa disciplina da produção de feitos das decisões no âmbito interno também para os tratados e convenções da Organização das Nações Unidas.

O eixo do projeto se refere à proposta de definição de um meio legal para viabilizar a implementação das decisões. Para tanto, determina “que a União assuma a responsabilidade pelo pagamento das indenizações, quando assim for decidido pelos organismos internacionais”[8]. O artigo 2° regulamenta o instrumento pelo qual a União assumirá a responsabilidade do pagamento das decisões de caráter indenizatório, decidindo que as mesmas passarão a se constituir títulos executivos judiciais sujeitos à execução direta contra a Fazenda Pública Federal. Garante, no entanto, que a União possa ser ressarcida dando faculdade a mesma de “entrar com ação regressiva contra, pessoas Físicas ou Jurídicas, privadas ou públicas, responsáveis direta ou indiretamente pelos atos ilícitos que ensejaram a decisão de caráter indenizatório”.[9]

Esse conjunto de artigos assegura que diferentemente do que vem sendo aplicado atualmente a União possibilite o pagamento prévio das indenizações, inclusive em casos cuja violação é considerada um crime estadual e não federal, determinando ainda, que sejam respeitados os valores fixados pelos parâmetros já estabelecidos pelos mecanismos internacionais. No entanto, garante que a União possa ser ressarcida pelo violador posteriormente ao pagamento da indenização determinada.

Soma-se aos instrumentos propostos um sistema privilegiado de pagamento, tendo em vista que determina para efeitos legais que o crédito seja de “natureza alimentícia”, uma vez que o mesmo dispõe urgência e prioridade, e ainda quando recebido, mesmo que contestado posteriormente como indevido, não é passível de restituição. Esse status o caracteriza como privilegiado em relação aos outros créditos de natureza judicial ou patrimonial. 

A análise superficial do citado projeto indica que o mesmo não cria um sistema diferenciado para a implementação das decisões dos órgãos internacionais, mas procura enfrentar obstáculos já conhecidos[10] que têm dificultado, ou mesmo impedido, a pronta viabilização dos pagamentos das indenizações, por meio de uma alternativa, cujos instrumentos legais já existem. O projeto parece tentar alcançar uma composição favorável de institutos legais e administrativos que já existem para assegurar os pagamentos.

A questão que se coloca, ainda que se perceba a tentativa de solucionar os impedimentos que ora existem, é a fila para o pagamento de precatórios, ainda que alimentícios. Por fim, entende-se que o projeto assegurará o pagamento, ao vinculá-lo a estruturas do Poder Executivo Federal; no entanto, não pode assegurar a celeridade do pagamento às vítimas ou dos seus familiares.

Ainda em trâmite no Congresso Federal o projeto de lei deverá ser apreciado pelas Comissões de Direitos Humanos e Minorias, Relações Exteriores e Defesa Nacional, assim como pela Comissão de constituição da Câmara dos Deputados antes de ser votado.

Atualmente, o projeto está na Comissão de Direitos Humanos e Minorias e o relator designado é o Deputado Orlando Fantazzini, ex-presidente da citada Comissão, que está elaborando uma emenda substitutiva ao projeto de lei apresentado pelo Deputado José Eduardo Cardozo.

Em setembro do presente ano, foi realizado, em Brasília, o Encontro Nacional de Direitos Humanos, que contemplou um Grupo de Trabalho que discutiu o  “Estado Federal e a Implementação dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos”[11]. Nessa ocasião, o CEJIL informou às outras ONGs e autoridades públicas presentes sobre o processo de elaboração de lei,  descrito acima, e solicitou formalmente ao Deputado Orlando Fantazzini que possibilitasse a participação da sociedade civil organizada na discussão e proposição de idéias para o projeto substitutivo que está sendo elaborado pelo seu gabinete. As instituições que lá estavam foram prontamente convidadas por ele a conhecer o primeiro rascunho da emenda substitutiva em reunião em seu gabinete com sua assessoria.

A emenda substitutiva se diferencia substancialmente do Projeto de Lei 4.667/04, tanto no foco central das preocupações relacionadas à implementação das decisões dos órgãos internacionais, como nos instrumentos a serem criados para efetivação das mesmas.

Em primeiro lugar, volta a restringir o projeto ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos, excluindo de sua redação o Sistema Global (ONU) antes ampliado pelo PL 4.667/04.

No que diz respeito ao pagamento das indenizações, atribui responsabilidade compartilhada entre União, Estado e Município, sem definir como será esse processo ou por qual via serão efetivamente pagas; determina apenas que os mesmos “empenharão esforços”[12]. O artigo 3º, como no projeto inicial, prevê o ressarcimento da União por meio de ação regressiva, quando a mesma se responsabilizar pelos pagamentos, devendo recebê-los por essa via judicial ou, como autorizada no parágrafo único, ao “descontar do repasse ordinário das receitas destinadas aos entes federativos os valores garantidos para o cumprimento das decisões”.

Curiosamente, o artigo 2º da Emenda Substitutiva se assemelha muito ao Artigo 2º do Decreto do Poder Executivo n.º 4.433, de 18 de outubro de 2002[13], que instituiu uma Comissão de Tutela  dos Direitos Humanos, no âmbito da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, na época subordinada ao Ministério da Justiça. A emenda também propõe a criação de um órgão inter‑ministerial. Em ambos documentos o artigo 2º regulamenta a competência dos órgãos propostos.

Restringiu-se o objeto de trabalho das citadas Comissões ao acompanhamento das decisões da Corte Interamericana, entendendo serem tais decisões as únicas a necessitarem de regulamentação interna para implementação efetiva. Apenas no inciso terceiro do artigo 2º, dos dois documentos, é que aparecem referências à inclusão da competência para fazer sugestões também nos casos “submetidos à apreciação da Comissão Interamericana”.

A Comissão Interministerial proposta pelo gabinete do Deputado Orlando Fantazzini regulamenta a composição do trabalho de diversos órgãos do Poder Executivo Federal, que já estão envolvidos individualmente nos processos de implementação de decisões, dando um caráter de obrigatoriedade ao trabalho conjunto, em total concordância com a Comissão de Tutela proposta pelo Poder Executivo e até o momento não implementada.

Por fim, a comparação entre os projetos revela que as diferenças residem no objetivo que os mesmos vislumbram. Enquanto o eixo central do PL 4.667/04 procura estabelecer como deve ser o pagamento das indenizações previstas pelas decisões dos órgãos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, ao estabelecer os instrumentos legais que prontamente garantirão o pagamento dessas indenizações pela União, bem como quais serão e como deve ser elaborada uma alternativa legal eficiente; a Emenda Substitutiva propõe a criação de um órgão do Poder Executivo, buscando fortalecer os esforços para plena implementação das decisões, sem determinar responsabilidade direta pelo pagamento devido ou instrumento legal a ser utilizado para tanto.

5. Conclusão

Diante dos temas ora abordados, conclui-se que a implementação efetiva das decisões[14] da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e da Corte IDH, proferidas ao final do trâmite dos casos apreciados por tais órgãos, e cuja finalidade máxima consiste na reparação integral, é a garantia da proteção dos direitos fundamentais das vítimas e o instrumento fomentador de mudanças nas estruturas sociais e institucionais dos Estados Partes. Tal implementação também tem a capacidade de transformar os contextos em que ocorreram as violações de direitos humanos, assegurando, dessa forma, que as mesmas violações não se repitam. Este é o último recurso de justiça ao alcance dos habitantes do Continente.

Portanto, é fundamental que a Sociedade Civil Organizada, usuária ou não do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, acompanhe todas as iniciativas dos Poderes Executivo e Legislativo Federal. Dito acompanhamento pode se dar por meio do monitoramento do processo de elaboração de texto legal, assim como do trâmite no Congresso Nacional dos instrumentos propostos, uma vez que os mesmos serão criados com o fim de implementar as decisões dos organismos internacionais, lembrando-se que os mecanismos em referência terão um papel determinante na garantia dos direitos das vítimas atendidas por essas instituições.



* Diretora do Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional - Brasil (CEJIL). O CEJIL é uma organização internacional de defesa e promoção de direitos humanos no Continente Americano, cuja principal atividade é o litígio de casos perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

** Advogada do CEJIL/Brasil.

[1] Atualmente, há 20 casos brasileiros em trâmite perante a CIDH que já tiveram uma decisão de mérito (relatório do artigo 51 da CADH) e apenas 1 no qual se obteve uma solução amistosa.

[2] O Caso Carandiru foi apresentado à CIDH pelo CEJIL e a Comissão Teotônio Vilela (CTV), em 22.02.94.

[3] O Caso Maria da Penha foi encaminhado à CIDH pelo CEJIL e pelo CLADEM, em 20.08.98.

[4]O Brasil e o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos”, Liliana Tojo e Ana Luisa Lima. Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, 2004.

[5] Ovelário Tames pertencia a comunidade indígena Macuxi e foi assassinado por policiais em Roraima. O caso foi denunciado, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos pelo Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (CEJIL) e pelo Conselho Indígena de Roraima (CIR).

[6] reflexão comparada que deverá estar disponibilizada em uma publicação no próximo ano.

[7] 15 de Dezembro de 2004 – Projeto de Lei n° 4.667.

[8] Justificação do Projeto de Lei n°4.667.

[9] Artigo 3° do Projeto de Lei n°4.667.

[10] Como foi citado acima, acordo de Solução Amistosa e recomendações de Relatórios de Fundo, não foram efetivados pelas dificuldades que impõe o Pacto Federativo, no qual alguns Estados da Federação se recusam a efetivar as reparações integrais recomendadas pela Comissão Interamericana.  

[11] Entre os resultados dos grupos de trabalhos apresentados para o plenário ao final do encontro, em formato de relatório, destaca-se a seguinte conclusão: “é necessária a imediata elaboração, mediante amplo debate com a sociedade civil, de norma definidora de medidas adequadas para o cumprimento integral  dessas decisões e recomendações...”

[12] Emenda Substitutiva Global (PL n.º 4.667/04), Parágrafo único do Artigo 1º

[13] Elaborado pelo Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, publicado no Diário Oficial da União em 21 de outubro de 2002.

[14] O conceito de decisões é utilizado no presente artigo de uma forma abrangente e inclui as recomendações da Comissão Interamericana.