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Maria Luisa Mendonça

 

Desde o fracasso da chamada "Rodada do Milênio", marcada por grandes protestos em Seattle, em novembro de 1999, a Organização Mundial do Comércio (OMC), e principalmente seu diretor-geral, Michael Moore, tem se dedicado a gerenciar a crise de legitimidade dessa instituição. Em recente artigo publicado na Folha de S. Paulo (23/6/2001), ele prega as supostas 'maravilhas' do livre comércio e afirma que, "Os últimos 50 anos testemunharam a maior ascensão no nível de vida na história da humanidade".

 

Na verdade, se compararmos os últimos 20 anos, que representam o período de maior expansão do modelo neoliberal, com as duas décadas anteriores, verificamos o declínio ou a estagnação da economia global. Entre 1960 e 1980, o Produto Interno Bruto na América Latina cresceu 75%. De 1980 a 1998, esse crescimento foi de apenas 6%. Na África, a renda per-capta cresceu 36% de 1960 a 1980 e, nos vinte anos seguintes, a renda da população sofreu um declínio de 15%. Mesmo nos Estados Unidos, com toda a expansão econômica, a média dos salários no ano passado era equivalente à de 1973, sendo que, de 1946 a 1973, os salários tiveram um aumento de 80%.

 

Desde sua criação em 1995, o principal papel da OMC tem sido expandir seu poder de regulamentação da estrutura comercial de 140 países, o que significa exercer uma grande influência no cotidiano de milhões de pessoas. Ao contrário da imagem difundida pelo lema do "livre comércio", a OMC possui uma complexa estrutura de regras utilizadas na defesa dos interesses das grandes multinacionais.

 

Algumas das regras mais polêmicas da OMC estão contidas no acordo conhecido como TRIPS (Trade-Related Intellectual Property Rights), que regulamenta a propriedade intelectual. Esse acordo possui uma abrangência maior do que a maioria das leis de patente dos países-membros da OMC e beneficia principalmente as grandes corporações, em especial a poderosa indústria farmacêutica norte-americana. A concentração do controle de patentes por meia dúzia de multinacionais, na área de biotecnologia, é considerada hoje uma 'terceira fase' no processo de colonização, iniciado no período das conquistas territoriais, durante os séculos XV e XIX, e passando pelo controle dos mercados financeiros por mega-investidores, nas últimas décadas.

 

Segundo a organização Médicos Sem Fronteiras, o controle da produção de medicamentos por grandes indústrias farmacêuticas, sob a proteção da OMC, representa um enorme retrocesso para a saúde pública mundial, atingindo principalmente as populações mais pobres. Estima-se que 36 milhões de pessoas estejam infectadas com o vírus HIV e menos de 500 mil têm acesso à medicamentos. Além disso, cresce o número de mortes em consequência de doenças como malária e tuberculose, principalmente por falta de acesso à remédios e tratamento adequado.

 

Os acordos da OMC representam também um grande risco para a segurança alimentar de comunidades rurais, através da possibilidade de grandes empresas controlarem patentes de recursos genéticos e conhecimento tradicional indígena em relação, por exemplo, à produção de grãos nativos como milho, arroz e feijão.

 

A resposta mais comum dos representantes da OMC à esse tipo de crítica é de que essa instituição lida com 'comércio' e não com 'desenvolvimento', e que questões como saúde e alimentação não são de sua responsabilidade. Essa postura acaba por tornar evidente o principal objetivo da OMC: defender os interesses das grandes multinacionais.

 

Desde o início das negociações da OMC em 1994, durante a Rodada do Uruguai, um dos temas principais era a abertura dos setores de serviços básicos para empresas estrangeiras, através do acordo chamado GATS (General Agreements on Trade in Services). O resultado dessa política, representada principalmente pelo processo de privatização de serviços públicos, foi o aumento do desemprego e a diminuição de investimentos em setores estratégicos da economia. Talvez o exemplo mais significativo dessa desastrosa experiência esteja acontecendo hoje no Brasil, com a grave crise energética.

 

O chamado "livre comércio", criou também regras estritas contra o controle do Estado à investimentos externos, inclusive contra a possibilidade dos governos federais, estaduais ou municipais estabelecerem leis de proteção ao meio ambiente e ao bem-estar social. Esse tipo de política tem sido aplicada através de acordos de livre comércio como, por exemplo, o 'Capítulo 11' contido no NAFTA (North American Free Trade Agreement), e que faz parte do projeto de implementação da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas).

 

Desde a implementação do NAFTA em 1994, ocorreram 17 processos de empresas contra os governos do México, Canadá e Estados Unidos. Esses processos são geralmente sigilosos e os julgamentos são fechados para o público. O caso de maior visibilidade é conhecido como 'Methanex vs. Estados unidos', no qual uma corporação canadense está processando o estado da Califórnia, em consequência da proibição do uso de substâncias consideradas cancerígenas na gasolina.

 

Esse caso ganhou repercussão, por ser o primeiro processo desse tipo contra o governo dos Estados Unidos. Normalmente, as regras dos acordos de livre comércio não são aplicadas de forma equilibrada, entre países do Norte e do Sul. Por esse motivo, as negociações da OMC vivem sob ameaça de fracasso. As únicas possibilidades de se evitar um novo impasse dentro da OMC seriam: (1) se os países industrializados deixarem de proteger suas indústrias e suas economias; ou (2) se os países 'marginalizados' se submeterem, definitivamente, às regras dos mais fortes.

 

Diante desse dilema, e dos crescentes protestos de organizações sociais contra as instituições financeiras multilaterais, a OMC dificilmente terá condições de superar sua crise de credibilidade. Hoje, essa instituição encontra dificuldades até mesmo para encontrar um lugar 'seguro' para suas reuniões. A próxima reunião ministerial da OMC será realizada em Qatar, de 9 a 13 de novembro. Se você não sabe onde fica Qatar, não se preocupe. Pouca gente conhecia esse pequeno reinado no Golfo Pérsico, antes da OMC o descobrir.

 

n Maria Luisa Mendonça é jornalista e diretora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.