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Pelo menos 70.000 pessoas saíram em passeata, enquanto outras 20.000 protestavam contra o chamado “muro da vergonha”

"Bem-vindos à revolução!" Com essa frase, uma das principais

lideranças do movimento antiglobalização no Canadá, Maude Barlow, encerrava a Conferência dos Povos das Américas, em Quebec, no dia 21 de abril, falando para um público de 12.000 pessoas. A Conferência dos Povos teve início no dia 16 de abril, com o Fórum das Mulheres, e incluiu seis outros fóruns, sobre direitos humanos, agricultura, trabalho,

 

educação, comunicação e meio ambiente. Ao mesmo tempo, 34 chefes de Estado se reuniam a portas fechadas para negociar a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). 
A principal resolução da Conferência dos Povos foi não produzir uma carta de recomendações, emendas ou cláusulas sociais para a ALCA. O Fórum de Direitos Humanos, por exemplo, concluiu que os acordos de livre comércio são incompatíveis com a defesa dos direitos fundamentais. Portanto, decidiu rejeitar a ALCA como um todo. Ao final de cinco dias de debates, foi publicada a seguinte declaração: “Nós, delegadas e delegados da Segunda Conferência dos Povos das Américas, afirmamos nossa oposição ao projeto da Área de Livre Comércio das Américas que vem sendo negociado conjunta e secretamente pelos chefes de Estado e o Fórum dos Empresários das Américas”.
Desde seu início em 1994, o processo de negociação da ALCA tem sido marcado por fortes protestos, organizados por redes internacionais de sindicatos, movimentos sociais, ONGs e organizações estudantis. Mas as manifestações em Quebec superaram as expectativas até mesmo dos organizadores, pois contaram também com o apoio da população local. Ao final da Conferência dos Povos, pelo menos 70.000 pessoas saíram em passeata, enquanto outras 20.000 protestavam contra o chamado “muro da vergonha” – uma cerca de 4 quilômetros de extensão, construída no centro de Quebec, para isolar o local da reunião oficial, e que se tornou o principal símbolo do processo antidemocrático das negociações sobre a ALCA.
Durante três dias e três noites, o centro de Quebec parecia um campo de batalha, cercado por policiais, helicópteros, e infestado de gás lacrimogêneo. O efeito do gás – que fazia arder os olhos, nariz, garganta, até que perdíamos a visão e a respiração – chegava até dez quarteirões de distância do “muro”. A forte repressão aos protestos gerou indignação entre os moradores de Quebec, que passaram a apoiar os manifestantes, auxiliar os feridos por balas de borracha e por bombas de gás lacrimogêneo.
Os estudantes, que representavam a maioria das pessoas na “linha de frente” dos protestos, estavam muito bem preparados. Eles dividiam as manifestações em três grupos: a linha verde, onde se protestava de forma pacífica; a linha amarela, onde era organizada a desobediência civil, também pacífica; e a linha vermelha, onde, basicamente, se enfrentava a polícia. Ao mesmo tempo, havia equipes de segurança, primeiros socorros, e também grupos culturais, responsáveis pela música, pelas performances e teatro de rua. 
O jornal local Le Soleil chamou o evento de “Woodstock dos Povos das Américas”. Ao contrário da imagem difundida por muitos meios de comunicação, esse grande movimento de oposição ao chamado “livre comércio” não era formado por “vândalos” ou extremistas. A grande maioria dos manifestantes era de estudantes universitários, sindicalistas e representantes de organizações da sociedade civil, com uma análise sofisticada das políticas neoliberais.
As principais críticas à ALCA se referiam ao poder de dominação dos Estados Unidos na América Latina, a começar por seu produto interno bruto (PIB), que representa 71 por cento de todo o continente. Além da dimensão econômica, as disparidades entre Estados Unidos e os países latino-americanos englobam as escalas de produção, as diferenças tecnológicas, de infra-estrutura e o poder militar. 
Se aceitarem a ALCA, os países latino-americanos serão obrigados a cumprir as determinações da Organização Mundial do Comércio (OMC) sobre acordos comerciais, o que significaria adotar tarifa zero para 85 por cento de seus produtos, em um prazo de dez a quinze anos. Hoje, a tarifa média no Brasil é de 14 por cento. Essa determinação teria um efeito bem menor para os Estados Unidos, que já adotam uma tarifa baixa, de 2,6 por cento, para os países do Mercosul. Porém, o governo norte-americano possui outros meios para impedir as importações, como no caso do aço do Brasil, que foi taxado em 142 por cento, como punição por uma acusação infundada de dumping (venda de produtos a preço de custo ou abaixo do preço de produção). 
Outra conseqüência prejudicial para as empresas brasileiras seria a abertura da concorrência pública para empresas estrangeiras nos setores de serviços. Além disso, a ALCA causaria o aprofundamento da desregulamentação financeira, através da limitação do controle do Estado sobre o capital especulativo. Em suma, a ALCA prevê a abertura de fronteiras para mercadorias, capitais e bens de serviço, mas não para os trabalhadores.
Um dos pontos mais polêmicos na negociação da ALCA refere-se à propriedade intelectual, principalmente em relação à indústria farmacêutica e à biotecnologia. As regras de proteção de patentes previstas na ALCA são ainda mais restritas que as da OMC. Essas regras exerceriam grande impacto, por exemplo, no programa brasileiro de combate à Aids. O uso de medicamentos genéricos pelo Brasil para o tratamento da Aids levou a poderosa indústria farmacêutica norte-americana, através da administração de George W. Bush, a recorrer à OMC, apesar dos enormes benefícios comerciais já concedidos aos Estados Unidos. Desde 1996, quando entrou em vigor o acordo sobre patentes na OMC, os Estados Unidos patentearam 510 medicamentos e o Brasil patenteou 36. Nesse mesmo período, as importações de medicamentos pelo Brasil passaram de 25 milhões para 1,2 bilhão de dólares, o que significa um aumento de 5.000 por cento. De 1994 a 1997, o déficit na balança comercial brasileira, somente em relação ao setor farmacêutico, foi de 1 bilhão de dólares.
As vantagens comerciais da ALCA para os Estados Unidos incluem também o setor agrícola. Em relação a esse ponto, o governo norte-americano aceita eliminar alguns subsídios à exportação, mas insiste em manter os subsídios internos. Aliás, de 1990 a 2000, os subsídios agrícolas nos EUA triplicaram. Ao mesmo tempo, o governo brasileiro tem diminuído os subsídios, principalmente para os pequenos e médios produtores, responsáveis pela maior parte da produção de alimentos para consumo interno. A implementação da ALCA colocaria em risco a segurança alimentar na área e facilitaria o controle da produção de sementes por grandes multinacionais como a Monsanto. 
Portanto, para os países latino-americanos, o que está em jogo nesse acordo é o próprio direito de definir sua estratégia de desenvolvimento e de proteger suas indústrias. Alguns dos argumentos mais contundentes contra a ALCA têm sido expressados pelo embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, ex-diretor do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais do Itamaraty. Em entrevista ao jornal Valor Econômico, em 2/2/2001, ele afirma que “não há na política ou no direito internacional nenhum processo de negociação que tenha de ser considerado irreversível e aceito de forma passiva e submissa pela sociedade”. 
Os efeitos da ALCA podem ser projetados se imaginarmos o aprofundamento do modelo neoliberal, da dependência do crédito externo, do endividamento, da especulação cambial, da falência da indústria nacional, das perdas na balança comercial e, conseqüentemente, da exclusão social. Hoje, 36 por cento dos latino-americanos, ou 220 milhões de pessoas, vivem abaixo do nível da pobreza. A política de juros altos e salários congelados aprofunda a desigualdade social. No Brasil, 50 por cento da população mais pobre detém 14 por cento da renda e 1 por cento dos mais ricos detêm 13 por cento da renda do país. Estima-se que 32 milhões de pessoas passem fome e 300.000 crianças morram de desnutrição por ano no país. 
A eventual implementação da ALCA significaria o agravamento da vulnerabilidade social e econômica nos países latino-americanos. Portanto, o problema não está nas condições ou prazos de negociação. A ALCA precisa ser rejeitada como um todo, para que os países do hemisfério sul possam defender a soberania e os direitos de seus povos. Nesse sentido, muitas redes de organizações sociais, como o Jubileu Sul e o Grito Continental dos Excluídos, propõem a realização de um plebiscito sobre a ALCA. Essas organizações propõem também a implementação da ALPA: Área Livre de Pobreza nas Américas.

Maria Luísa Mendonça é jornalista, diretora do Centro de Justiça Global e representante da Global Exchange no Brasil.